Criança



CRIANÇA

Tiago Fernandes Alves

 

Vivia em seu turbilhão de pensamentos. Era uma sábia criança, cheia de ideias e ideais, cheia de sonhos utópicos e de paixões desesperadoras. Acreditava poder alcançar o infinito com a finitude de seus pensamentos aguçados, ferozes, capazes de penetrar no concreto de mentes já petrificadas pelo medo ao saber e de provocar a ira nos que acreditavam deter o poder da verdade. Foi sempre uma criança aldaciosa e irritante, sagaz e arrogante, genial e estúpida. Brincava aos saborosos ventos da inocência da arrogância, baixo um sol que lhe calentava o dia lúdico, dançando e rodopiando como um pião desgovernado pela alegria de ser ela a que gire, a esperar que o rubor do esconder do sol, entre a fenda última do horizonte, fizesse do céu sua aquerela, para que o enegrecer do céu lhe trouxesse as estrelas brilhosas, regalosas. 

E girava tagarelando canções que ela mesma criava, e isso lhe trazia um enorme prazer que beirava o próprio esquecimento. Girava em um círculo confuso, em círculos confusos, mais eram círculos. Girava e alçava voo repentinamente, fazendo do chão algo nefasto, sem sentido, melhor dizendo, sem importância, e que, em verdade absoluta, não lhe importava, afinal era apenas uma criança, uma genial criança.

A contradição era seu leme desde que nascera. Fez brotar amores e desamores aos que em suas mãos tocaram e aos que em seus lábios adormeceram seus olhares, pois eram lábois carnosos que regojitavam o prazer das palavras e a impetulância de sua sabedoria imprestável. Em verdade era uma criança genial. Sempre pronta a solucionar as questões mais desafiadoras, mesmo as que não importavam a ninguém, a nenhum ser vivo da economia e do consumismo, nem aos das festas voltadas à cultura de massa, nem aos dos movimentos políticos que fizeram da burrocracia carnavais embevecidos pelo álcool da desinformação e pela cocaína da manipulação demagógica. Á estes cidadãos de seu cotidiano e sangue, os moralistas cristãos sedentos por satanazes, os técnicos de sistemas de fabricação de sonhos de metal rumo ao progresso eterno, aos imperiosos legisladores, aos esquizofrênicos econômicos, às famílias sedadas pelo silêncio, à estes, não faziam a menor diferença. Para estes, o dançar da criança genial era tola como toda brincadeira de criança. Suas ideologias de vida basadas em diversão para idiotas irracionais eram por demais densas para poderem enxergar a suavidade da canção que a fazia girar, girar como tola.

Era um grande ser pensante. Mas esse grande ser, essa pequena genialidade, estava afogando-se em suas próprias convicções, estava desesperando-se com a luz que lhe iluminava a vida, a vida como realmente é. Via demasiado. Começou a perceber que sua dança, sua luz, iluminava a ela somente, os demais, desafiavam seus atos, contestando seu sol e seu céu.

-Desejaria ser cega, surda e estúpida ás vezes- replicou a criança a si mesma. Era demasiada a luz que lhe fazia a vida em suas mais profundas entranhas vislumbrar, e isso lhe cegava em um redemoinho de desesperação causada por seu gênio indomável, por sua perpicaz beleza de saber o que todos os demais temiam saber, a verdade da escravidão ideológica, a ideologia de ser humano, de ser racional e insano.

Para escapar de todo esse pandemônio criado por seu altruísmo inconfundível, por sua sabiência quase desesperadora, sempre saía à rua, ou ao pátio de casa, ou ao quintal para o céu buscar. Acreditava que toda aquela imensidão trazia-lhe o vazio em sua mente, paralizava um pouco suas conturbações de sábia criança. Buscava sempre o céu e as estrelas, à noite, quando todos os sonhos dos cegos se faziam emergir ela saía em busca dos seus, em seu belo arcabouço imaginativo. Buscava a paz, a harmonia do silêncio no largo vazio negro entre as estrelas.

Gozou da imponência de ser a negação de suas convicções, das convicções de tudo que é cultura e espiritual, de tudo que é místico e concreto, de tudo que lhe foi dito e de tudo que lhe foi renegado dizer.

- Olho para o céu e não encontro nenhuma estrela. Pensou a sagaz criança em voz alta, alta o suficiente para que até mesmo ela pudesse compartilhar de seus pensamentos.

- Devem ter apagado todas elas por que não as encontro em nenhuma parte.

E ali ficou, em um êxtase triste, a mirar um céu multicolor, negro, sem brilho, apenas o opaco da escuridão total que se mesclava com sua mente destroçada pela incompreensão. Tanto tempo ficou a buscar as estrelas que começou a doer-lhe o pescoço, mirando para cima, destendendo-o para um céu que dela se escondia. Logo ela que tanto o céu cultivava em suas contemplações, ali ficou, extasiada pela falta de estrelas, pela falta de brilho das cintilantes que sem nenhuma razão lhe davam alguma razão, lhe davam um pouco de alento e refúgio de sua maldita cabeça pensante.

-Deus deve tê-las apagado de mim como forma de repulsa ao que sou, à minha propriedade humana que ele tanto inveja. Pensou ela em sua arrogância mística na crença de que sabia o que era ser humana.

E ali ficou, durante horas, talvez dias, a buscar e a não encontrar.

Busca, palavra essa que faria parte de seu vocabulário em sua total eternidade viva, assim como a solidão faria, de lábios dados com ela, trocando juras de amor eterno, uma ao lado da outra, uma mais apaixonada que a outra, em uma troca de carinhos tristes e solitários.

A busca e a solidão sempre fizeram parte da vida daquela pequena criança. Em muitas de suas manhãs e despertares, o fato de estar só lhe fazia o ventre doer e retorcerem-se as tripas. O coração disparava em um rítmo cadenciado à loucura, dor de estar sempre se sentindo só. Era como uma declaração de amor calada, apenas deixava-se as mãos trêmulas e os sopapos de seu coração falarem de seu culto à solidão, não que ela a quisesse como matrimônio diário em seu trágico despertar. Mas o amor à dor era maior que sua repulsa à alegria insípida da ignorância.

Após horas, talvez dias de dores no pescoço e de as estrelas buscar, sentiu a desistência tomar conta de seu corpo fatigado e de sua mente conturbada por mil pensamentos.

-Elas se foram, foram apagadas sem nenhum rancor, sem nenhuma piedade. Assim falou a pequena criança.

Baixou a cabeça fazendo o pescoço um pouco descansar. Exausta de corpo e mente sentiu a dor da solidão invadir-lhe o ventre como em todas as manhãs. Não havia nada no céu nem niguém na terra. Não havia nem a música do sopro do vento em seu rosto rijo de dor. Sentiu o mais desprezível dos tormentos no pulsar da dor em seu ventre, na contração do pânico do vazio de estar só. O céu que ela tanto venerara escondeu-se em seu próprio calabouço de escuridão e nadas, mil vezes nadas.

-Onde comforto buscarei agora se as estrelas de mim se foram e nem mesmo um beijo de despedida me deixaram, nem mesmo um último asceno de até logo. Questionou-se em um triste pesar lamentoso.

Curvou para o chão sua mirada. Olhou os pés fatigados pelo o esquecimento e desprezo causado pelo demasiado enaltecimento aos céus. Reparou em seus calos e frieiras, nas grotescas fendas que possuíam seus calcanhares. Reparou nas sandálias que levava e nos carnegões negros que haviam debaixo de suas unhas quase em estado de podridão. Pareceu-lhe pés de um outro ser que não o dela. Pareceram-lhe pés de bixo. Pés de um imundo animal que se perde em busca de estrelas que agora se faziam apagadas, engolidas pela escuridão do céu desgraçadamente só. Mas por que não sentia dor nos pés? Porque nunca havia reparado em seu estado moribundo?

-Cansei-me em transcendências aos céus e me esqueci de meu caminhar, de mim mesma. Pensou ela em um sentimento de rejeição a si mesma.

E ali ficou, em frangalhos. Não mais estrelas tampoco ela mesma. Encontrou-se em um estado de total pertencimento ao nada, a negação de tudo que para ela restara de sentido e de refúgio. E agora, olhando para si mesma, olhando para baixo, para o chão que ela tanto renegara, percebeu sua impetulância, sua arrogância, sua demasiada soberba para consigo mesma. O céu, sempre o maldito céu e nunca, nunca ela mesma. Incrível como passou dias e horas, horas, talvez dias a buscar estrelas, e nos poucos instantes em que parou para reparar em si mesma um estupor de desalento invadiu-lhe todo o corpo, desabitando o ventre para tomar-lhe conta de todo seu organismo.

E sentiu a mais absoluta das solidões. Abandonada pelas estrelas, pelo céu e pelos seus pés, esquecidos por seu louvor a transcendência, por seu medo de estar sempre só, sempre com suas convicções absolutas. A dor em seu ventre que se espalhou por seu corpo inteiro, consumido pelo esquecimento de si mesma, foi-lhe digerindo os sonhos, os únicos que possuía. A dor agora era sbstituída por um oco irremediável, incompreensível.

-A dor se foi, sinto apenas o vazio de minhas tripas, coração, mente, sonhos, razão.

Percebeu que o abandono do céu e das estrelas, que o seu abandono por si mesma, causando-lhe uma terrível dor em seu ventre, se fazia mesquinha frente ao vazio que lhe preencheu até mesmo um espírito que ela havia abandonado, escurraçado pelo poder do pensar e por seu ceticismo. O vazio invadiu a casa de seus mortos, de seus esquecimentos, de suas alegrias e tristezas, de seus amores, mil amores de mil manhãs, adentrou e derrubou sua falácia racionalizada, suas mãos convictas da vitória sobre verdades incabíveis à sua genialidade.

E gozou novamente de suas negações à tudo que almejava de pé eternamente ficar. Gozou da incompreensibilidade do vazio que se fazia dono de sua falácia poética. Abandonou a dor como a um saco de lixo e girou em passos de dança, chegando à absurda alucinação de escutar canções que ecoavam em pleno ar. Deixou a dor partir em retirada. Deixou o vazio da incompreensão preencher-lhe todos os rincões de sua existência. E dançou em um desconpassado rítmo que ela havia criado em sua demência genial.

-Bailas comigo, ó vazio que de mim se faz dono. Retiraste minha dor, minhas estrelas, meus pés desfigurados, meu céu turvo e opaco. Retiraste minhas mãos trêmulas e minha razão última à contemplação da verdade, minhas verdades. Que dances comigo e que beijes em meu ouvido a desgraça de ser livre, livre de mim mesma, livre de minhas nefastas objeções à tudo e a todos.

Rodopiou, a pobre criança, em giros cada vez mais rápidos e descontrolados. Buscou perder a consciência e perder-se de si mesma. Perder-se de seus pés fétidos, de suas mãos trêmulas, de sua razão ultrajante, de seus amores, mil amores de mil manhãs, da dor de seu ventre, da dor de seu corpo, da dor do vazio e da incompreensão. Girou e girou em um rítmo criado por ela, em uma música criada por ela, em uma dança sem escrúpulos.

De repente, em um breve instante parou de girar. A música em seu ouvido parou de beijar. Recobraram-se todas as suas mazelas e a solidão tomou-lhe o corpo por inteiro. Engoliu até mesmo os pequenos espaços ocupados por suas alucinações débeis. Parou de girar e sentiu que todo um oceano de amarguras lhe adentrou em cada poro de seu corpo fatigado pela desmesura da tristeza. A solidão incubiu-se de trazer-lhe a última derrota daquele dia mizerento.

-Ó solidão, deixa-me migrar para longe de ti, traga-me de volta as estrelas, e se de ti não puder fugir que pelo menos o absurdo de um refúgio inócuo me seja dada como um último alento para os meus lamentos.

Suplicou quase em prantos a pequena criança. Sentou-se no chão que ela tanto renegou mirar. Cruzou as pernas em uma total entrega de seu corpo, um corpo fatigado pela desmesura da tristeza. Olhou para o céu novamente com uma furtiva mirada de quem busca um olhar complascente e de cúmplice. E ali estava, um céu sem estrelas, sem cumplicidade, sem rincões para a fuga da solidão que do céu se fez dona. Emudeceu-lhe aquele trágico fato opaco. Emudeceu sua poesia, sua música inconsciente, suas alucinações, suas verdades absolutas e imutáveis. Emudeceu até mesmo seus mil amores, mil amores de mil manhãs.

-Venci!

Gritou a pequena criança.

-Venci!

-Sou a negação de tudo. Neguei meus pés, minha dor e mãos. Reneguei meus passos, minhas alegrias e lágrimas. Reneguei minhas convicções, pois tudo que senti eram obras celestiais de minha mente. E minha mente não é senão a minha própria negação. Neguei quem eu era ao buscar no céu estrelas que me ajudassem a fugir de mim, e por isso deixei a podridão em meus pés brotar. Neguei a tudo e a todos por minhas convicções. Neguei o mundo e sua corja de fantoches. Neguei a deus e seus cegos discípulos. Neguei meus mil amores, mil amores de mil manhãs. E agora nego também as estrelas que de mim fugiram. Nego o céu e seu estupor soberbo. Nego o infinito e minha finitude. Nego minhas canções e meus amores, mil amores de mil manhãs.

Ergueu-se. Levantou e enalteceu seus pés putréficos. Levantou-se e beijou suas mãos trêmulas em um sinal de inteira aceitação. Lambeu os lábios e seus olhos buscaram novamente o céu que agora não mais oferecia-lhe refúgio algum. Ovacionou sua total escuridão e opacidade, seu caráter de ser um vazio incompreensível. Pisou forte seus calcanhares rachados em um chão por ela esquecido, e sentiu o sabor da poeira que ressecou-lhe as narinas. Buscou no céu novamente as estrelas e só encontrou o vazio, o frio da eternidade sem sentido. Sua boca abriu-se em um sorriso descabido e sombrio na certeza de haver-se livrado da roupagem da dor da perda de sentido, da dor do ventre e de seu corpo inteiro.

Foi aí então que emanou das profundezas de seu ser, mesmo após exortar seus mais temíveis anseios, a mais absoluta degradação possível que um ser vivo pode sentir, a devastação da solidão absoluta. Após renegado tudo e a todos, após renegar a si mesma, ao mundo, a deus, aos deuses, ao amor, mil amores de mil manhãs, foi avassaladora a reciprocidade da negação absoluta pelas mãos tristes e contundentes da solidão.

Ajoelhou-se, aos prantos, lágrimas que desciam incomformadas pela obscuridade do não-ser, de não ser nem a si mesma. Era apenas um estorvo infantil, brilhante, genial, porém incapaz de saludar um sorriso a si mesma. Ali estava, desolada por um oco opaco destemido a dobrar-lhe os joelhos, a fazer-lhe choramingar como criança que era.

E fez-se, a solidão devastadora, dona do império que era seu ser genial, que exasperava qualquer sentido de vida funesto e metafísico. Estava só. Estava nem ela mesma, nem mesmo ela, a criança genial, princípio e fim de si mesma. Rota em um espiral catatônico e frenético, em giros intermináveis de desolação e falta de ar.

Gritou à solidão seu mais alto grau de sabedoria e de desapego aos corações alheios, fez-se ouvir até a eternidade da finitude daquele ser infantil, genial, pobre, mizerenta criança.

E chorou como só um tolo sabe chorar, ajoelhada, despida de si mesma e de toda existência funesta da humanidade.

E enxarcou a terra de água salobra, e dizimou plantações, animais e espíritos. Neste dia choveu incessantemente. Maldita água salobra diziam os fugidios à tristeza. Chorou, e quando sembrou a última lágrima não buscou nem o céu nem o sorrir. E quando de novo chorou, chorou do alto de suas pernas. E a água, que da tristeza e da solidão absoluta fez-se brotar, novamente o chão encharcou. E proliferou vida e sonhos.

E de seus pés malogrados emergiram plantas e animais, espíritos e devaneios hébrios.

Agora era humana a pobre e mizerenta criança.

Não mais choveu, tampouco buscou o céu ou o sorrir.

Dançou no lamaçal da vida e cantou para a lua, a única que se fazia por si só iluminar o triste céu afogado na escuridão. Cantou para ela, bela e irradiante, que fazia inveja ao sorrir, destruindo a própria existência do existir.

E calejou seus pés putréficos que novamente a cor da vida ganharam ao contato do chão. Sentiu como eram suas ondulações em cada centímetro cúbico de terra, em cada pedra despedaçada que massageavam seus calcanhares que outra vez a lucidez dos passos encontraram. O tato da lama e das rochas, das pedras e plantinhas que ali adormeciam, como que à espera de passos que desenhassem caminhos e sentidos ao serem esmagadas pela felicidade da alegre criança que outra vez andava, outra vez possuía sons em seu caminhar.

E caminhou. Caminhou como um dromedário que vagamente vaga pelo deserto inóspito, pelas vielas do desconhecimento de por onde e aonde iria terminar aquela nova jornada, a jornada dos que enaltecem o chão, a terra, a mãe suprema de todos os seres viventes e morrentes. Caminhou na busca por algo a buscar. Caminhou como louca, a pobre criança, em um desespero que se enchia de alegria a cada passo, em cada tatear de cada pedra, de cada rocha, de cada plantinha ao ser esmagada pelo desenhar de novos caminhos. Caminhou e cantou. Caminhou e musicalisou seus passos quase harmoniosos, que ao tocarem o chão, a terra mãe fazia soar a música da superação, a música dos passos dos que sentem o chão. E cantou como música, e música tornou-se. Cantarolou o esquecimento do céu por seus lamentos. Cantarolou a soberba das estrelas que dela se esconderam. Cantarolou alto, em altíssimo som e afinação de um ouvido absoluto, em uma harmoniosa melodia que só pertence aos poetas e aos que o chão veneram. E como cantava a pequena criança. E como caminhava a pequena criança, em um rítmo descompassado, porém harmonioso, belo, o rítmo dos poetas e dos viajantes que buscam algo que buscar. Com seu canto que de longe não se fazia balbuciado atraiu um pequeno pássaro que de perto lhe seguia, ouvindo e desfrutando de suas canções e dos sons que seus pssos livres produziam.

- A que vem tanta melodia minha pequena jovem? Perguntou o pequeno pássaro.

- Estou a cantar por que outra vez busco algo que buscar, outra vez sinto meus pés o chão tocarem, respondeu a criança.

- E antes, que havia feito tu de teus passos?

- Apenas o céu busquei, apenas estrelas me importavam como último refúgio de minhas lamentações e devaneios.

- E por conta disto esquecestes teus pés, de teus passos, de teus caminhos terrenos?

- Não! Respondeu a criança quase em tom de horror. - Apenas caminhei por caminhos que de mim se econderam, caminhei por ente estrelas que não mais brilham, e meus pés ali ficaram esquecidos, putréficos, em meio aos passos que percorri nas brumas do esquecimento.

- Pois, logo eu, um pássaro, que do céu fiz-me dono, que dele desfruto em ironia e desprezo, tenho que dizer-te o quanto estúpida foste por esquecer-te do chão, da mãe terra.

- Sim, sou estúpida ao ponto de permitir que me apodrecessem os pés, pés de uma viajante de estrelas e céu turvo.

- Pois não sou tão sábio como tu, pequena, és genial, és a poetisa das sedentas de contemplação que urgem brilho, mas de modo algum permitirei-me ir sem antes dizer-te que ainda te apodrecem os pés.

- Como?

- Sim! Respondeu o pequeno pássaro que crescia em sabedoria frente àquela genialidade quase arrogante.

- Pois.....

- Ainda buscas algo que buscar. Foste tu que abandonaste teu céu e tuas estrelas e econtraste teus pés desfigurados e mórbidos por teu desprezo à mãe terra. E agora, miras tu, caminhas sôfrega em desespero musical, a cantarolar tuas canções belas e harmoniosas na esperança de buscar algo que buscar. Mas agora te sangram os pés. Eles pisam demasiado forte na terra que tu renegaste. Pisa forte e firme, tateias as pedras e esmagas as platinhas que esmorecem por teu caminho a construir, e ainda crees que pisas como deverias? Apenas aprendeste a caminhar, voltaste a andar e a cantar como pássaro que és, como pássaro que do céu se fazia dona, como a poetisa que das estrelas dependia para sorrir. E agora veja, olha para teus pés, maldita e mizerenta criança, veja como sangram, e teu sangue escorre sem o menor pudor à dor que se esconde em teu cantarolar, em tua busca por algo que buscar. Deveras crees que teu canto afinado e harmonioso como proveniente de um ouvido absoluto, e teus passos descompassados, porém harmoniosos, que fazem ao chão tocarem soar o solfejo das mais melodiosas das canções assim ocultarem tua idolatria às estrelas?

Terminadas as palavras do pequeno pássaro fez-se o silêncio dono do horizonte e de tudo que habitava a terra, céus e mares, soou alto e em bom som a opacidade da não música, do não som. Parou o vento de soprar, as árvores desatinaram em um movimento perplexamente inerte e o horizonte se desfez de tal forma que se tornou impossível discernir onde começava e onde terminava o céu. A própria existência do existir se transformou em nada como sempre havia de ser. Tudo perdeu novamente o sentido. As cores saltaram de seus lugares restando aos olhos apenas a insalubridade da escuridão sem forma, sem calor, sem textura. O ar secou de maneira ser impossível tomar fôlego para o pranto. O grande peso insuportável da solidão outra vez se fez dono do ambiente inteiro, de todo o universo, e toda vastidão inapreensível do infinito se desfez em mentiras de uma felicidade descabida até mesmo em um coração de criança, de uma pequena e genial criança. E seu coração esmiuçou-se em uma redoma de poeira e frangalhos, despedaçado até aos mínimos ímpetos que ainda restavam de força para continuar respirando, latejando como um animal atordoado, abatido pelo grito silenciado da dor.

Um único som retumbou diante de tanto desespero existencial, o som do bater das asas do pequeno pássaro que em gargalhadas e voo se despediu da mizerenta criança, que ali, jazeu em um minucioso e último canto de soluços que preparavam-na para o grandioso choro, em um mar de lágrimas que apaulariam em salobridade as platinhas que esmoreciam por seu caminhar trôpego. Urrou em um berro de criança depois de sugar todo o ar seco e irrespirável que pôde, fazendo dar movimento às árvores e às nuvens que exasperavam uma inércia própria do mundo dos mortos. Seu pranto espalhou-se pelo chão e foi bebido pela mãe terra em um suco que misturava suas lágrimas e o sangue que jorrava de seus pés, fazendo-a ajoelhar-se em uma posição de total desistência ao riso, à felicidade e à música.

Dia após dia um pequeno pássaro pousa em minha varanda, sembrando cantos e canções, fazendo desmoronar a tristeza do silêncio com seu cantarolar. Um sorriso atenta fuga em meu rosto. As paredes inexistem neste instante, e o horizonte e toda a infinitude do universo se fazem caber em minhas mãos.

Mas tagarela, o pequeno pássaro foge e alça voo ao horizonte que outra vez se faz infinito. Reina soberbo o silêncio e novamente se concretizam as paredes, e minhas mãos se cansam de sujeitar o pesado vazio da ausência.

O sol percorre seu caminho nefasto.

O vento turva o azul do céu em um rubor que anuncia o nascer da lua.

Dia após dia.

Novamente o pequeno pássaro.

Novamente sembrando cantos e canções.

Novamente o infinito em minhas mãos.

Voa, pequeno pássaro, voa que teu canto pertence aos ventos. E em cada dia após dia que me fazes a lua vislumbrar, em minhas mãos adormece o desejo de teu eterno retroceder.

Seus pés, desgraçadamente derrotados pela luxúria das estrelas e pela busca incessante ao céu, empapavam de sangue o chão seco e poeirento tingindo as plantinhas em um rubor fúnebre que exalava um forte odor de ferrugem, deixando um gosto inssosso ao saboreio à mãe terra. Ajoelhada e derrotada pela explosão de tristeza que lhe corroía as entranhas, a pequena criança chorou seu sangue derramado e a falta de dor esquecida por seus cânticos e passos que clamavam uma vitória que não veio, uma vitória derrotada pelas sábias palavras proferidas pelo pequeno pássaro, e este sim um sábio que se fazia dono do ar e do céu, de todo um desprezo por um horizonte que para o pequeno estorvo lhe era tão fundamental.

- Se ainda brilham as estrelas, se o céu ainda se tinge azul celeste, por que se escondem de mim em tão clamoroso desprezo por minha pessoa, por meus sentimentos, por minha música e poesia? Como podem amanhecer e dormir sabendo que à espera encontra-se toda uma vida de lamentações e necessidades? Pensou em quase gritantes pensamentos a pequena e mizerenta criança.

E o tempo parou. O verde das árvores era o mesmo. A marcha fúnebre regia-lhe os pensamentos. As lágrimas já não satisfaziam sua tristeza. Tudo aquilo que havia sido dito, sentido, já não sentido possuía, aquilo que sentia já não lhe importava mais, e todo um sentimento de ódio por si mesma alimentou seu ser. As mesmas orações de carinho, as mesmas palavras, tudo se havia ido de modo que todos os gestos de amabilidade já não lhe atingiam o coração. Sentiu falta de si mesma e daqueles que sabia que a amavam, percebendo que suas lágrimas não haviam sido em vão. Mas a criança ainda chora por aquilo que foi dito, porém nunca expressado. As linhas das estradas se tornaram infinitas. Desejou sentir raiva, ensejou um momento de fúria, mas a tristeza lhe fascinava. Parte de seu futuro tornou-se passado e o calor que sentia do sol era apenas físico. Almejou a alegria, mas a esperança se havia ido. Porque a faziam sentir-se tão mal? Porque destruí-la? Para quê? Tentar manter-se viva era o que lhe restara.

Perdia muito sangue. Fugia dela como se não a pertencesse, como se nunca em suas veias tivesse navegado. E a dor a possuiu novamente com todo seu esplendor catastrófico, melancólico.

- Ai de mim que sou poesia, que sou música, que sou a busca por algo à buscar. Ai de mim que meus pés reneguei, deixei-os apodrecerem em uma contemplação absurda a um céu e a estrelas que de mim se esconderam.

Tocou seus pés com suas mãos e ensopou-as de sangue arredio. E como doíam-lhe as chagas abertas em seus calcanhares. Quanto sangue escorreu sem que se desse conta nem medida alguma. Viu seu sangue arrastar-se por ente os dedos de seus pés fétidos e encardidos, colorindo em vermelhidão seus calcanhares achatados e rachados pelo desuso, pela demasia de sua contemplação ao céu e por sua busca incessante às estrelas. Ajoelhada e esgotada pela explosão de choro que lhe havia consumido as entranhas, a genial criança ainda sentia as dores das sábias palavras do pequeno pássaro, o dono funesto do céu. Acreditou na descrença da vastidão de seu espírito amorfo e também esgotado pelas dores que outra vez lhe consumia as entranhas. O som estarrecedor do bater de asas e da grosseira e estúpida gargalhada do pequeno pássaro ainda ecoava em seus tímpanos quase arrebentados pelo desgaste provocado pela lucidez do silêncio que preanunciou o estrondo da solidão e da incompreensão. A dor física se fez mesquinha diante da escuridão que ensejava o mareio de seu coração tão pequeno, dilacerado em fragmentos quase irreparáveis da desolação profunda, tão desmedida que nem toda a infinitude de todos os tempos passados e dos que ainda viriam a surgir abarcariam tamanha grandeza melancólica. E pensou ser o infinito ínfimo como um beijo de adeus entre seres que conseguem amar e que se amaram em toques noturnos, entrelaçados entre as cobertas e entre os odores inebriantes da paixão inesgotável na curta madrugada. Nem mesmo todo o universo poderia compreendê-la. Logo ela, uma pequena e genial criança que tanto o céu venerou e que tanto as estrelas buscou poderia esperar um mínimo abraço que fosse do grande manto negro do mestre celestial.

E ali ficou, fitando os seus olhos escurecidos pela dor em uma mirada desvanecida aos seus pés arrebentados, ruborecidos e enlameados pela mistura de poeira e sangue. Tocou os pés e quis limpa-los, quis livrar-se da desolação através da ascepsia de seus calcanhares desgastados e rachados. Levantou-se e recobrou a consciência de si mesma. Quis entoar uma nova canção, mas ela não se permitiu fugir de sua boca ressecada pelo ar inóspito. E este voltou a soprar fraquejado e tímido como olhos de criança. Foi aí que escutou passos longínquos e ritimados, quase um convite à dança dos sábios primitivos. Olhou para todos os lados buscando a resposta de onde vinha aquela marcha tão dançante, tão rítmica. De pé, fechou os olhos e transformou-se em um ser auditivo e deixou-se levar pelo convite ao baile dos cegos que enxergam o som.

- Olá, disse uma voz que emanou não se sabia de onde e que ali já se encontrava tão cerca e tão real.

Era uma voz musical, pronunciada em uma melodia vastamente harmoniosa e doce, tão doce quanto o sussurro dos ventos que tentavam enamorar as folhas das árvores, as gigantes que veneram os céus. Falou-lhe ao ouvido em uma intimidade que nunca havia visto igual.

- Quem és? Perguntou a criança.

- Sou a quem tanto invocas, tua companheira e do pequeno pássaro que te aborreceu e desiludiu. Sou a vontade impetuosa da existência humana e da natureza. Sou a verdade da solidão e da alegria. Sou o sentido dos ventos e das folhas que tu adoras. Sou tua companheira eterna em teu caminhar e em tua contemplação silenciosa. Sou a presença, sou a onipresença em tudo e em todos, desde o infinito à morte, da dança à solidão, da grandiosidade aos pormenores. Sou o sentido de teu primeiro e último suspiro, sou o som e o silêncio.

- És música?

- Sim! Sou tudo que ama, tudo que toca, tudo que ainda virá a existir.

- E por que vens a mim? Sou apenas uma tola e pequena criança que busca algo que buscar, que te clama em meu caminhar.

- Venho para trazer-te sentido, pois em sentido vivo e na desolação do silêncio apenas transpiro ráfagas de consolo e nostalgia.

- Então dizei-me o que devo buscar? Onde devo ir? Onde devo ficar?

- Isso não te poderei responder.

- Então porque me dizes que vens para trazer-me sentido se nada tens a oferecer-me senão o som de teus passos tão ritimados e a melodia de tua voz envolvente?

- Ora pequena, se não és sentido de ti mesma então não serei eu que te o darei. Sou música, sou a metáfora que a tudo faz sentido, sou o sentido em si mesmo, só e somente só, mas nunca poderei dizer-te que caminhos tomar.

- Como assim?

- Vocês humanos acreditam que tudo faz sentido a partir de quê? Vocês representam o mundo e a si próprios através de significados, através da metáfora, da canção e da poesia. O que seria de vocês sem a metáfora? O mundo que a vocês se apresenta não passa da significação que vocês o dão.

- Então me dizes que o mundo e tudo que concebemos como realidade não existe de fato e que são meras representações nossas?

- Claro que não. Tudo que existe existe por si mesmo, vocês apenas por temor à loucura, a incompreensão do real e de si mesmos acabam tendo que representar aquilo que a vós se apresenta. Ora, eu existo por mim mesma, eu sempre estive onde nada antes havia, e sempre estarei até onde tudo deixe de ser. Vocês apenas utilizam a metáfora para não cair na loucura, na incompreensão. Por que crees que até pouco estavas chorando na busca por algo que buscar? Choravas, pois tudo que concebias deixou de fazer sentido, e por isto caíste na desesperação, no ajoelhar-se diante de si mesma, no devaneio de descobrir que tudo a que tanto esmeravas sucumbiu diante de teus olhos, o céu que de ti se escondeu, as estrelas que se apagaram perante teus olhos amorfos. Eu, pois, sou o sentido em si mesmo, sou a música e a metáfora, sou a poesia que a tudo representa e encanta. Quem ou o quê tu acreditas ser o próprio Deus? Este não é mais que a mais bela e complexa metáfora por vocês humanos criada. Pois sim, minha pequena e lacrimal criança, teu próprio Deus, seja ela qual for, não passa de metáfora, de poesia. Aquele que lhes é superior é a própria criação metafórica, a própria personificação da poesia em forma de algo transcendente, algo que vocês, que em vocês adiquiriu caráter de superioridade, mas que de vossas bocas e em vossos punhos nasceu como qualquer outra criação nefasta e bela. Pois sim minha pequena, tudo que vós representais não passa de metáfora, e eu sou a metáfora, porém não sou Deus, e este é metáfora.

- Então Deus é metáfora e não Deus?

- Sim! Pura metáfora, poesia, a criação que se passa por criador através da palavra, da metaforização.

A pequena calou-se por alguns instantes em um momento solene de pensamentos profundos agudizados pela incompreensão. Seria Deus apenas metáfora, pura e simples metáfora? Como aquele a quem ela concebeu como sendo o criador de tudo que existia e de tudo que estava por existir como sendo produto de sua própria incumbência metaforizadora?

- Então se Deus, aquele que a tudo cria, é apenas metáfora, minha representação poética da incapacidade de explicar as coisas, então quem é a morte? Ou o que é a morte? Outra representação descabida de minha incapacidade de explicação? O fim descabido e sem sentido? Não seria então Deus o fim e o princípio de tudo? Aquele que nos dá e nos tira a vida?

Outra vez o silêncio, onde só reinavam o suave pranto das folhas balançadas ao vento.

- A morte não. Esta existe como teu próprio sangue há de correr um dia por sobre as fendas do tempo. A morte é o fim em si, a mais sábia de todas as criaturas, a que tudo encerra para um novo recomeço sem fim. A mais sábia de todas, pois detém todo o conhecimento do desconhecido, toda a apatia do breu e a alegria da noite, tudo que se move ou descansa na morbidez da inércia. Ela, a mais bela das criaturas mortas, é o princípio de tudo, pois é o fim de tudo.

- Então ela é Deus? Questionou a pequena assustada.

- Não, ela é o princípio e fim de tudo, a insaciável ânsia do eterno retroceder. Ela é teu inspirar para ao mundo deflagrar tuas palavras e o fim de teu fôlego, o ponto final de teu discurso, pois tudo que dirás ou disseste passará por sua vontade.

- Ela antecede a todos nós?

- Claro, ela aqui esteve e sempre estará, mesmo antes que Deus nascesse, mesmo depois da morte deste ela já reinava impetuosa, eterna como todo conceber e como todo silêncio incontestável da solidão da ignorância.

- Então aqui eu já estive?

- Não, aqui sempre estivestes, aqui sempre estivemos, mesmo antes da própria existência, mesmo antes do som e do silêncio que o precedeu. Nada nasceu, nem mesmo Deus. Este foi criado e tornou-se criador, mas antes já habitava o infinito vazio em todos os lugares e os não lugares, pois nada existia. Porém o nada, a inexistência também é algo. É o nada que precede o tudo. O profundo sono da morte que desperta para a vida, pois se a inexistência é a antítese da existência, e se a morte é a antítese da vida, é do despertar da morte que brota a vida, e não o revés. A morte deve preceder a vida para que esta faça sentido somente por ser finita. Se tudo não houvesse de perecer nada faria sentido. As coisas só fazem sentido porque hão da acabar. Se a vida fosse apenas para ser vivida, sem o fim, sem a morte, não faria o menor sentido. A vida só é vivida porque possui um fim, e o caráter trágico que a ela é atribuído calenta ainda mais a fúria da perenidade. Por isso a morte é a mãe de todas as coisas, é ela que a tudo precede, que tudo sabe, pois dela nascem todas as coisas, todos os fatos, todas as poesias, toda música. O início de tudo é o fim.

- Me quitastes os pés! Lamentou a pequena criança, atônita por sua nova descoberta, arrepiaram-se os pêlos de seu corpo, eriçaram-se pelo pavor de enxergar a morte como mãe, como fonte de toda beleza da vida.

- Teu próprio Deus só faz sentido porque a morte temeis, ou você acha que ele faria sentido em uma vida eterna? Vocês seres humanos só acreditam naquilo mais que temem, na dúvida, na incompreensão, na morte, por isso recorrem a Deus, por isso inventaram Deus, a poesia humana, a música humana, a filosofia humana. Tudo nasce do temor de vossas arrogâncias de a tudo querer compreender. Imagem e semelhança do criador?

Após a irônica pergunta ouviu-se uma estrondosa gargalhada que fez atiçar ainda mais os ventos. As folhas, que até então dançavam como escorregadias gotas de pranto se estremeceram com o novo golpe de jarradas de ventos sacudidos pelo som do desprezo. Pensou ela que Deus estaria em algum lugar mirando-la com um sorriso zombeteiro, a espera de tragá-la aos pormenores de sua ira vingativa. Seria realmente possível que nada por ela concebido na verdade não existia? Seria possível que tudo fosse apenas representação? Mas, e o amor? E a paixão? Pois até ali apenas de lamentações havia alimentado-se seu corrompido e destroçado coração infantil. Pensou por um longo tempo onde o tempo não se fazia passar, sobre o amor e sobre as dores da paixão. Se tanta dor sentiu na incompreensão será que poderia amar? Será que o amor seria tão forte e empírico como a dor? E lembrou-se de seus mil amores, mil amores de mil manhãs. Olhou para suas mãos fatigadas pela desistência, pelo eterno giro descompassado do carrossel das paixões escaldantes, e lembrou-se das palavras ditas em seu ouvido em uma manhã de sacrifícios amorosos...

Sujeitarei tuas mãos e como uma criança farei o tempo esvoaçar em um contentamento descabido.

Sorrirei como só um tolo sabe sorrir.

Me desvencilharei de mim e, o tempo esvoaçado, me encontrará impunemente perdido em tuas mãos.

Te presentearei meus pensamentos, minha pouca fala, minha mentira sinceramente louca e funesta, minha ansiedade e a calmaria de teu mar.

Em posse de tuas mãos serei a posse de tua carne sedenta de seduzir-me.

Caminharemos juntos e cochicharemos bobagens em longos e estúpidos sorrisos de criança.

A lua nos conduzirá à um mundo só nosso, um lugar nenhum, onde passos giram infinitos desabrigados da própria existência.

E sonharei sonhos contigo.

Castigaremos injúrias um ao outro.

 Setenciaremos nosso fulgor.

Nos imortalizaremos em juras de amor.

Te pedirei um beijo, soltarei tuas mãos e te abraçarei.

Sentiremos ambos os corpos.

Nos harmonizaremos em uma canção só nossa.

Dançaremos e tu serás meu eterno refrão.

           De volta às tuas mãos tentarei recobrar a existência de um eu que se perdeu em ti.

Retomará, o tempo, seu lugar triste e inexorável, retornará com toda sua fúria             impetuosa, declamando o fim de todo diamante e de toda fantasia de criança.

Retornará para dizer-me saudade.

   Retornará para dizer-me te quero.

   Buscarei tuas mãos novamente.

            Buscarei esvoaçar e perder.

            Buscarei outra vez a criança.

E pela primeira vez esqueceu-se da solidão, esqueceu-se das desilusões filosóficas e das dores provocadas pelos desalentos da incompreensão. Deixou submergir no esquecimento aquele sábio que lhe cantava, com sua bela voz melódica as verdades de um mundo que não mais existia, apenas nas construções metafóricas da incapacidade humana. Esqueceu-se das dores no ventre em seu triste despertar. Esqueceu-se da dor da demagogia, da moralidade escárnio das elites, dos provimentos do sistema econômico, da insistência de um eterno desenvolvimento civilizatório. Esqueceu-se do pequeno e sábio pássaro e da dor em seus calcanhares. Esqueceu-se da fome dos insasiáveis burocratas e do breu do céu que dela as estrelas se haviam escondido. Esqueceu-se até mesmo da lua, mesmo que a observasse com um sorriso em seu rosto minuciosamente lapidado como o pouso reconfortante de uma folha seca em uma poça de água. Respirou profundamente e o cheiro issosso da triste mistura de sangue e poeira adentrou em suas narinas, porém em seu cérebro a mensagem da desesperação não lhe surtiu efeito tamanho era sua conformidade com a sensação de alívio dígno dos que um dia já amaram.

E novamente o vazio tomou posse de seu fatigado corpo. Só que o esquecimento total de toda significância e significação possíveis lhe protegeram contra todo tipo de dor inefável. Continuava a lembrar de seus mil amores de mil manhãs. Sentia o odor de cada beijo, de cada cangote perfumado pelas substâncias químicas da sedução, de cada pelo que se eriçava em cada toque que se conformava em um cio eterno, eterno até quando durasse a noite inteira e mais uma manhã. Lembrou-se das palpitações em seu coração que ansioso pulsava errante em um saboroso desejo quase incontrolável de amar uma vez mais e mais uma vez. Lembrou-se da pressa em tirar a roupa em uma desesperação louvável somente aos que amam a desperação da paixão, da necessidade explosiva do gozo, do beijo insandecido que dilacera o lábio alheio, da barba e unhas que arrancam da têz sua mais nobre camada, onde adormecem os pelinhos dourados que desenham na pele caminhos tortuosamente hipnotizantes e sedutores, onde os cheiros das indústrias de perfume e do feromônio lutam pela hegemonia da dominação do olfato. Lembrou-se dos lugares inóspitos que aconchegavam seus amores às escondidas da civilização. Lembrou-se do cheirinho de mato, do cheiro da chuva que caia nas plantas fazendo levantar um olor de terra molhada como um brinde pela vitória do saciar-se como um animal. Lembrou-se de quase tudo, lembrou-se de quase todos os seus mil amores de mil manhãs. Sim, o vazio havia chegado, porém não lhe surtiu efeito, pois as lembranças são a mais sublime condição da solidão.

Sentiu-se só, porém apaixonada. Sentou-se, curvou a cabeça vagarosamente como quem se prepara para uma longa jornada pela meditação. Baixou a cabeça e iniciou uma respiração mais controlada na busca de sentir toda a musculatura de seu peito inchar e secar. Um turbilhão de pensamentos lhe adentrou em cada expirar e em cada inspirar. Pensou então nas estrelas novamente. Por que se haviam escondido?      

Recobrou a consciência perdida em si mesma. Do turbilhão restaram apenas os cacos da loucura. Tentou esquecer-se dos fracassos convictos de sua pessoa e adentrou em casa. Atravessou a porta que se fazia densa, pesada por demais, como se a engolisse toda em uma boca que lhe gritava derrota. Ao entrar em casa deixou em derrota louvável as estrelas que dela se haviam escondido. Tentou não mais pensar. Tentou esquecer-se das dores e das derrotas, da solidão deixada pelo vazio das estrelas escondidas. Por quê? Ela não sabia e a incompreesão era por demais um castigo sem fim. Como não poder compreender as coisas? Era uma derrota horrível para aquele ser pensante e brilhante. Em seu turbilhão de respostas e questionamentos não havia a mínima sobra, um mínimo resquício de algo a pensar sobre o ocorrido. Logo as estrelas, logo as estrelas que ela tanto venerava. E aquele pássaro? Que fazia ali? Não seria eu mesma? Pensou a pequena criança.

Ao entrar em casa seguiu em passos castigados até deparar-se com um velho espelho que jazia dependurado na parede do corredor que ficava entre a porta do banheiro e de dois quartos. Pela primeira vez teve a impressão de susto ao se olhar, ao se encarar consigo mesma no espelho. Não era um susto por sua feição que envelhecia incontestavelmente pelas maliciosas e pesadas mãos do tempo, e sim pela escuridão de sua áurea. Parecia que toda uma energia de inestimável densidade opaca lhe envultava. Sentiu um peso enorme lhe assombrar as costas, o peso inconstestável da incompreensão.

Novamente os pesados pensamentos em turbilhões ascendentes, descendentes, verticais e horizontais que perscrutavam toda sua cabeça genial. Rebatiam e se retorciam em um movimento de dor impávida. Pensou, olhou com mais atenção o seu semblante desgastado por pensamentos lucidamente loucos. Beijou-se ao espelho como que em uma demonstração de saudade de si mesma, saudade daquela criança que feliz bailava e cantava em uma afronta à dor, à infelicidade, ao desconhecido, pois tudo para ela lhe era conhecido dentro dos limites de sua mente brilhante. Olhou para trás e deparou-se com as pegadas marcadas pelo sangue de seus calcanhares que sangravam, jorrando um sangue que não lhe era conhecido. Logo seu sangue, seu próprio sangue, seu cheiro de ferrugem peculiar, seu aspecto de morte e pânico, seu sabor azedo lhe pareciam as marcas mais distintas dela mesma. Logo seu próprio sangue, seiva de sua seiva. Um mar que lhe corria dentro de suas veias e artérias lhe parecia estranho. Teve nojo de si mesma. Sentiu repúdio de seu ser demasiadamente humano. Um ser que sangra e mente. Um ser que sangra e morre. Um ser que sangra e falha. Um ser que sangra e fede. Um ser que sangra e se equivoca. Um ser que sangra e que tropeça em seus próprios pés. Um ser que sangra, mas que da natureza se faz caçoar. Um ser que sangra e que cospe em seu próprio sangue. Um ser que sangra e mancha a terra de vermelho.

Completamente atordoada por si mesma, a criança volta seu olhar para o espelho e se depara com um ser humano que ela era. Passou a mão nos calcanhares, levou-a à boca e provou de seu sangue extranho. Teve ânsia de vômito e sentiu que era humana. Sentiu a arrogância de sua genialidade esvair-se em cada trago de sangue, em cada rangido de dentes que mascavam os restos de terra de seus calcanhares que o chão pisaram, e que ali se configuravam em uma mescla de terra e sangue deliciosa. A prepotência, que antes lhe franzia o nariz, torceu-lhe o estômago dando-lhe reviravoltas e torções ao êxtase da dor profunda da indigestão. Como é difícil tragar a si mesma! Pensou o pequeno e estúpido estorvo.

Em movimentos que mais lembravam uma minhoca sendo fulminada por um calor terrível lambeu o chão para limpá-lo, retirando-lhe todo o vestígio de sangue que havia. Retornou à porta de seu quintal e o céu estava negro como o mais puro breu. Nada de estrelas. Nada de estrelas. Dirigiu-se até seu local preferido. E dali, do centro do pátio, sentou em uma reverência à natureza. Seus pés pararam de doer. Sua cabeça parou de rodopiar alucinadamente. Suas mãos pararam de tremular. Todo o peso desapareceu. A incompreensão sumiu por ser assumida como fato real de uma vida real de um ser real. Sou a incompreensão de mim mesma! Pensou a linda criança. Burra e estúpida, mentirosa em sua ciência que se pretende deus, arrogante em sua ineficácia teórica, delirantemente equivocada não mais buscou as estrelas que dela se haviam escondido. E o céu abriu-se em um luxuoso amanhecer. Todas as cores lhe abraçaram em um inestimável fulgor de sensasões inefáveis. Seus pés cicatrizaram. Beijou a terra e começou a cantar e a dançar na mais pura harmonia com a incompreensão de ser ela mesma.

 

 

 

 

 

 

 

Em homenagem a Níobe,

A tecelã que me defez e me refez em cada sorriso seu,

Em cada silêncio de sua bela boca,

Em cada desmesurado mergulho em seus olhos,

Em cada toque seu que se perpetuou em meus pensamentos.

 

 

 

Janeiro 2009


Autor: Tiago Fernandes Alves


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