Império: Cidadãos, escravos e exclusos



Império: Cidadãos, escravos e exclusos.

MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico, Col. Descobrindo o Brasil. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. Ed. 2004, 74p.

Rycardo Wylles Pinheiro Nogueira*

Os debates atuais que se referem às questões da exclusão social, afirmam que quase sempre, essa exclusão se dá pela cor e/ou classe social do indivíduo. Não é interessante observar apenas o contexto em que vivemos para tentar entende-las em sua totalidade, mas retroceder um pouco ao Brasil Monárquico em uma relação dialética com o presente, para assim compreender melhor como se formaram os processos que afirmaram as classes e posições sociais brasileiras, ou seja, os exclusos e os inclusos na nossa sociedade atual.

A obra de Hebe Maria Mattos abre caminhos para vertente das relações polêmicas entre a questão identidade racial, escravidão e cidadania do século XIX. Essa é também uma obra de grande importância para explicitar e desmistificar algumas questões da atualidade a respeito da discriminação racial. Este trabalho propõe colocar em análise a luta pela inclusão social por parte dos descendentes de africanos da época, que após alforriados buscavam a inclusão social na luta por seus direitos civis e políticos em meio aquela sociedade monárquica.

A primeira parte da obra vem como uma Introdução, trazendo em pauta a Independência e a constituição do Império Brasileiro Moderno e suas construções naquela sociedade, não deixando de ressaltar os porquês da permanência da escravidão no Brasil monárquico, o que nos permite perceber melhor como se deu a relação escravidão e cidadania no Império. Logicamente que havendo a constituição legal de uma nação, ou seja, de um país independente, há também a formação de uma identidade de cidadania no país. Sabe-se que nos anos anteriores o Brasil Colônia foi desenvolvido e sustentado pelo comércio e mão-de-obra escrava africana, então a idéia é a seguinte, como esse passado refletirá na formação de uma cidadania brasileira imperial?

Após o Grito do Ipiranga, o jovem país, mesmo aderindo e se estabelecendo em bases fundamentadas nos ideais liberais europeus, tem uma propensão maior ao direito à propriedade, o que implica na permanência da propriedade escrava por interesse dos proprietários escravistas, e não no direito à liberdade, ou seja, "os homens nascem livres e iguais", que era um princípio dos ideais liberais europeus. Fica bem exposto na obra que embora houvesse uma auto-afirmação de uma Monarquia Constitucional Liberal pelo fato do comércio livre, e entre outras representações populares, o que foi realmente dado prioridade na Constituição, foi ao direito à propriedade o que de certa forma o desconsiderava como liberal.

"É preciso, portanto, deixar claro que o conhecido dilema entre a assertiva de que os homens nasciam livres e iguais, reconhecida pelo liberalismo e a manutenção da escravidão, sob a égide de Constituições liberais, não foi específico no Brasil de 1822, mas se desenrolou em toda a Afro - América, inclusive nas colônias escravistas inglesas e francesas, no contexto das chamadas Revoluções Atlânticas". (p. 9,10)

Portanto, ao menos um ponto fica esclarecido, respondendo um dos motivos por que a escravidão foi prolongada no Brasil Monárquico. O interesse dos proprietários de escravos refletiu de certa forma na decisão do Príncipe português, o que serviu de proteção para permanência da escravidão, enquanto em outros países europeus de bases liberais a escravidão já estava em processo de abolição. Já que o livro aborda justamente a temática: Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico, o que importa agora é trazer aos olhos como se relacionava o papel dos cidadãos, escravos e excluídos, ou seja, escravos forros e afro-descendentes livres que quase sempre eram excluídos ou vítimas de descriminação, especialmente por parte dos portugueses absolutistas, melhor dizendo, "os branquinhos do reino".

O cidadão brasileiro logicamente era livre, dono de alguma propriedade e deveria ter de fato seu espaço social, ou seja, sua liberdade, direitos civis e políticos enquanto cidadão, muitos eram portugueses ou descendentes, talvez mulatos filhos de portugueses com escravas domésticas que eram alforriadas por seu senhor. A construção de uma cidadania com seus direitos civis e políticos já é tema da segunda parte do livro que vem como: Escravidão e cidadania.

Na segunda parte da obra há uma grande problemática entre escravidão e cidadania no período imperial. Sabe-se que nesse momento o Brasil já era independente, e que a população da jovem nação se constituía de cidadãos brasileiros, ou seja, portugueses, afro-descendentes livres, e escravos que de fato não eram cidadãos, então aí que está o problema. Todos ou quase todos agora tinham uma identidade, uma nacionalidade. O cidadão brasileiro afro-descendente foi um fruto que de certa forma conseguiu enfrentar de frente o conceito de raça inferior, constituído no século XIX, pois de um modo ou de outro havia uma mestiçagem construída, ou seja, uma nova identidade. O conceito de raça não veio como uma solução para permanência da escravidão, o que de fato aconteceu nos Estados Unidos, consolidando o escravismo em algumas regiões, mas sim como um problema. É preciso lembrar que conceito de raça não vingou fortemente nos primeiros anos do Império, pois só veio ter certo significado no Brasil somente a partir de 1870. Mas isso não quer dizer que não houvesse uma forte discriminação contra os afro-descendentes. Portanto, é importante perceber que a consolidação de uma dificuldade da aceitação dos afro-descendentes como cidadãos, parte da herança católica portuguesa absolutista e do estatuto da pureza de sangue e não necessariamente um conceito de raça inferior. Talvez até inferior, mas apenas pelo fato de não serem católicos e não submissos a coroa, mas sim apenas pagãos. Já os portugueses eram católicos e submissos a coroa, o que para eles os tornavam adeptos a exercer cargos e desfrutar de seus direitos civis e políticos.

"Fazer parte do império significava tornar-se católico através do batismo; nesse sentido, a escravização dos bárbaros era bem vinda, se fosse o único caminho para seguir o rei e a verdadeira Fé. Isto é válido para escravidão africana ou para indígena legalizada através da guerra justa". (p. 15)

É possível então entender que embora existisse um conceito de raça inferior em movimento no século XIX, não foi necessariamente isso que justificou a escravidão no Brasil monárquico. Era necessário ser submisso à Fé e ao rei, e a escravidão de acordo com os ideais portugueses era um meio de tornar escravos submissos ao absolutismo e a deus. Com tudo isso já é possível observar porque a figura mestiça ficou um pouco de lado no que se refere a seus direitos de cidadão. Vejo que a religião é um dos pontos bem relevantes nessa vertente. A obra deixa bem exposta essa questão. É sem dúvida uma lógica interessante, pois as práticas religiosas dos escravos eram diferentes dos portugueses, e não fica isenta a possibilidade dos afro-descendentes terem dado continuidade a tais praticas. Isso implicava numa rotulação dos afro-descendentes que muitas vezes ou quase sempre tinham seus direitos restritos na sociedade monárquica.

Bem, o pensamento português ia a confronto com as práticas religiosas dos escravos, isso os dava o direito de escravizá-los para assim incorporá-los sujeitos à doutrina e à autoridade correta. Os mestiços mesmo sendo livres não tinham pureza de sangue o que os dava muitas vezes um direito menor perante a sociedade. Os portugueses são cidadãos livres comuns, com poucas, ou nenhuma restrição quanto aos seus direitos, já os afro-descendentes sofrem um preconceito exacerbado, o que muitas vezes os colocam na posição de excluídos da sociedade.Para melhor esclarecer isso é relevante comentar a respeito do voto censitário, onde se definiu três classes de cidadãos brasileiros:

"Para tanto adotou o voto censitário em três diferentes gradações: o cidadão passivo (sem renda suficiente para o direito ao voto), o cidadão ativo votante (com renda suficiente para escolher através do voto, o colégio de eleitores), e o cidadão eleitor ativo elegível. Nesse terceiro nível, [...] impunha-se que o eleitor tivesse nascido "ingênuo', isto é, não tivesse nascido escravo". (p. 20,21)

O que é bem visível, e não foge da temática, é que realmente havia uma classe excluída naquela sociedade. A escravidão não foi apenas um meio de sustentação de uma colônia e posteriormente de uma nação, ela foi bem mais significativa do que nos parece. Ela construiu futuramente uma classe marginalizada vitima de preconceitos. Mesmo após alforriados os negros escravos não tinham direitos de representatividade política, ou seja, não exerciam papel de cidadãos comuns. Os afro-descendentes, se filhos de escravos, nasciam também nessa condição, assim não eram ingênuos e não tinham acesso aos direitos por completo. O que se pode observar é que de um modo ou de outro a figura do negro sempre é desprezada, o negro e seus descendentes sofrem descriminações que se amontoam durante o Império.

Tendo já observado a situação da classe considerada cidadã, da escravidão e da classe excluída, posso agora trazer em relação a terceira e a quarta parte da obra que vem como: Um Certo Conselheiro Rebouças e Conselhos mais radicais. Essas duas partes irão ressaltar principalmente a representatividade da classe afro-descendente na política, uma conquista árdua de espaços na sociedade, porém, significativa para a ascensão dos mestiços na cidadania imperial. No capitulo segundo discorre um pouco da vida e das idéias de Antonio Pereira Rebouças que se tornando rábula teve um reconhecimento considerável diante do Império. Defendia os direitos de cidadania dos afro-descendentes livres, sejam eles forros ex-escravos ou ingênuos. Não se opôs contra a escravidão, defendia o direito à propriedade e não à liberdade. Antonio Pereira Rebouças era também deputado o que significa que havia um ato prático de sua parte para o reconhecimento dos cidadãos afro-descendentes. . O fato de ser um advogado respeitado e uma figura considerada perante as autoridades implicava na sua decisão a favor da Constituição Imperial.

"O discurso de Rebouças, portanto, uma vez liberto o ex-escravo nascido no Brasil automaticamente tornava-se cidadão brasileiro, com todas as suas prerrogativas civis e políticas. E assim afirmava porque considerava que apenas o direito de propriedade legitimava a escravidão. Deixando de ser propriedade, o escravo (através da alforria) tornava-se também plenamente cidadão". (p. 43)

Bem, embora Rebouças fosse um representante dessa classe excluída de afro-descendentes livres, levava ainda em conta que a escravidão é um direito a propriedade. Não demonstra na obra que ele fosse abolicionista, mas sim um defensor dos direitos civis e políticos dos novos cidadãos brasileiros.

Já em outro momento, na construção de outros ideais mais radicais que haviam de se manifestar posteriormente, próximo a um momento onde o conceito de raça já se mostrava no Brasil, surge uma figura carregada de ideais abolicionistas radicais. Luis Gama era negro como Rebouças, porém, suas idéias foram um pouco mais além das idéias de Rebouças. Político, advogado de prestígio e perante o Império e a sociedade, defensor da abolição, Luis Gama foi bem mais extremo quanto à questão da escravidão, pois defendia o direito a liberdade ao invés do direito a propriedade.

"Na trajetória de Luis Gama tem-se claramente o encontro de duas tradições: a de luta contra a discriminação racial, privilegiada pelo conselheiro, com a da paixão abolicionista, que seria vivida pela geração seguinte. [...] Luis Gama enfatiza o direito a liberdade, em detrimento do de propriedade, fazendo dos tribunais uma frente de luta abolicionista". (p. 57,58)

Um paralelo entre estes dois juristas afro-descendentes é mais que necessário para entender como se davam as resistências contra os interesses cidadãos e escravistas. O que a obra traz em foco é a análise da "gangorra em que se equilibrava o dilema entre propriedade e liberdade" (p. 60) no Brasil Império. O desfecho da obra busca além de mostrar um pouco de como se deu o conceito de raça no Brasil, traz o racismo e a exclusão social à reflexão. As diferenças e os valores do ser não podem ser reconhecidos pela cor ou pela classe social do individuo, mas sim pelas atitudes que são tomadas. É mais que necessário observar essa obra,refletir no presente e entender como foram construídos ao longo dos anos os conceitos e preconceitos da nossa sociedade atual.

*Universitário de História da Faculdade de Educação, Ciencias e Letras do Sertão Central (FECLESC), da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Autor: Rycardo Wylles Pinheiro Nogueira


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