Um olhar sobre a figura do Estado:



Introdução

O presente trabalho irá tratar da questão do tráfico de drogas no morro Dona Marta, Rio de Janeiro, enfatizando o aspecto da suposta legitimação da atuação dos chefes do referido morro como figuras de Estado. Tal legitimação é estabelecida e sustentada, muitas vezes, pelos discursos dos próprios moradores dessa região. O tráfico de entorpecentes é considerado relevante nessa pesquisa, pois, atualmente, se apresenta na sociedade brasileira como um fato social  na perspectiva durkheimiana -, ou seja, está generalizado e é coercivo diante da realidade carioca.

As análises feitas neste estudo visam refletir sobre a situação de empoderamento do sujeito social 'traficante' diante do sujeito social 'morador', e tecer uma breve consideração a respeito desse paradigma vigente no morro Dona Marta, bem como ampliando para os demais morros cariocas. Para tal, serão investigadas as relações de dominação representadas discursivamente por uma moradora do morro Dona Marta, e também, de um suposto chefe da região supracitada. O que se pretende nessa analise é pôr em relevo as relações sociais, sistematicamente assimétricas (Thompson, 2009, p.80), mantidas pelo uso da força e da coerção. Dessa forma, seria possível desnudar alguns aspectos de dominação, e também propor alguns possíveis caminhos para reverter este 'poder concorrente' estabelecido pelos chefes dos morros cariocas.

Este estudo está estruturado de forma progressiva, o qual começa com uma reflexão sobre o Estado Moderno fazendo uma ponte com a acepção de Estado na polis grega. Em seguida, será apresentada uma breve visão sobre Legitimidade, dentro da perspectiva de governo e soberania, a fim de contextualizar o problema social parcialmente discursivo estudado: o modo como os discursos podem estabelecer e legitimar relações de dominação e fortalecer um 'poder concorrente' diante da realidade social brasileira, em especial, a carioca nos dias de hoje. Dessa forma, será possível entender os fatos sociais 'favela', 'tráfico' e 'empoderamento' de uma visão macroestrutural para uma microestrutural, ressaltando as particularidades e vicissitudes dos discursos da população local.

Em um segundo momento, utilizando os pressupostos teóricos e metodológicos da Análise do Discurso Crítica serão analisados três depoimentos colhidos no morro Dona Marta. Por meio da análise dos modos de operação da ideologia (Thompson, 2009, p.81) e suas estratégias, será enfatizado o aspecto de legitimação e dissimulação muito recorrente nos discursos mencionados acima. Também serão estudadas algumas categorias de análise textual em ADC, como o significado representacional na categoria de transitividade e vocabulário, bem como na representação dos atores sociais no âmbito da 'favela' Dona Marta. Em seguida, se exporá algumas considerações finais sobre o presente estudo.

O corpus analisado é constituído de três excertos.O primeiro deles foi extraído de uma reportagem da impressa brasileira que trata da intenção do governo brasileiro de começar as obras do PAC  Programa de Aceleração do Crescimento  no complexo do Alemão, Rio de Janeiro. A reportagem foi exibida na televisão em 15/01/08 pelo Jornal do SBT. Os outros dois excertos foram retirados do documentário brasileiro "Notícias de uma Guerra Particular" de 1999, o qual mostra, parcialmente, a realidade do morro carioca na visão dos moradores e da policia local. Por se tratar de depoimentos já colhidos por terceiros, o primeiro de um 'traficante' e o demais de uma moradora, e de terem sido colhidos in loco; a presente pesquisa tem caráter documental.Para este estudo, somente será considerado como corpus os textos orais produzidos por esses sujeitos sociais e devidamente transcritos.

Um olhar sobre o Estado: reflexões sobre o Moderno e o Grego

Uma visão mais crítica sobre o atual paradigma de atuação do poder dos chefes do tráfico como Estado, dentro das comunidades cariocas, requer uma reflexão mais aprofundada sobre a figura do Estado enquanto instituição moderna. Assim sendo, detemo-nos, primeiramente, na tarefa de problematizar algumas características gerais sobre o Estado moderno, fazendo uma ponte com o Estado Grego vigente na maioria das Polis Gregas para, posteriormente, empreender a tarefa de compreender a complexa trama de relações sociais sistematicamente assimétricas (Thompson, 2009, p.80), o empoderamento de alguns sujeitos sociais, bem como a manutenção e a legitimação destas relações sociais por meio de discursos ideologicamente arraigados de estruturas simbólicas de dominação.

Comecemos com o conceito de Estado. O mesmo será apresentado seguindo a visão da autora Darcy Azambuja. Para ela, o Estado é uma sociedade política, pois se constitui essencialmente de um grupo de indivíduos unidos e organizados permanentemente para realizar um objetivo comum (Azambuja, 2002, p.10). Baseado nisso, o Estado tem um viés prático, na medida em que os cidadãos pertencentes a esta sociedade política se organizam coletivamente para a execução de um objetivo maior, que em grande parte dos casos é, pois, o bem-estar público dos indivíduos. Em outros casos, a associação em torno da figura do Estado não prioriza o bem-estar coletivo, pelo contrário, serve de pano de fundo para construir e manter tensões sociais hierarquizadas e sem a possibilidade de contestação, como é o caso dos regimes totalitários de extrema direita.

Nesse sentido, o Estado moderno é uma sociedade à base territorial, dividida em governantes e governados, e que pretende, nos limites do território que lhe é reconhecido, a supremacia sobre todas as demais instituições (Idem, Ibidem, p.11  grifos meus). À sociedade  tida aqui como uma união moral de seres racionais e livres, organizados de maneira estável e eficaz (Idem, Ibidem, p.12) cabe o papel de governados, e ao Estado cabe o papel de governante. Em muitos casos, a figura de governo e Estado se confunde não tendo uma clara delimitação acerca do papel de ambas as instituições. Seguindo esse pensamento, pode-se analisar a atual constituição social de alguns morros cariocas, dominados pelo tráfico de entorpecentes, à luz dessa definição. O papel de governados cabe a população civil  sociedade -, coagida e coercivamente mantida no papel passivo de reprodutor das relações de dominação; ao passo que a atuação de Estado/governo é tomada pelos chefes dos morros cariocas, sendo que estes, muitas vezes, se imbuem do papel de provedor das necessidades básicas da organização social 'favela', como se pode verificar por meio da análise discursiva do depoimento de uma moradora do morro Dona Marta, no qual ela deixa claro que os 'traficantes' provêem segurança social diante da atuação violenta dos policias ao entrarem na favela, assim como garantem medicamentos a população. Tais fatos sugerem que a tomada para si do papel de Estado/governo por parte dos 'traficantes', abriu precedentes para a instauração de um poder concorrente tão legítimo quanto o Estado Nacional Brasileiro.

Este Estado concorrente estabelecido pela tomada de poder pelos chefes dos morros cariocas, onde há tráfico de entorpecentes, tem algumas feições de Estado moderno, como a estrutura em governantes e governados e a base territorial.

Entretanto, o atual paradigma de atuação dessa Instituição paralela tem um caráter mais próximo da definição de Estado na concepção grega, que propriamente, da definição moderna. Azambuja afirma que "os gregos, cujos Estados não ultrapassavam os limites da cidade usavam o termo polis, cidade, e daí veio 'política' a arte ou ciência de governar a cidade" (Azambuja, 2002, p.16). Nesse sentido, o poder concorrente estabelecido pelos 'traficantes' e, muitas vezes, legitimado pelos moradores, tem esse poder restrito pelos limites físicos das comunidades ou dos morros em que atuam, assemelhando-se claramente às polis gregas. Em um segundo momento, a atuação dos chefes dos morros cariocas se assemelha a mencionada Instituição Antiga pelo fato de haver dentro dos limites da favela uma espécie de "Código Consuetudinário", que é ditado pelos 'traficantes' e seguido pelos moradores. Prova disso pode ser visto quando se analisa o discurso de uma moradora do morro Dona Marta;  mais a frente será empreendida uma análise do discurso que se pretende mais completa  em um dado momento de seu discurso, ela descreve a ação dos traficantes sobre os moradores como:

(1)Se eles puderem matar, esquartejar e cortar e colocar lá 'pra' todo mundo ver como exemplo, para ninguém vacilar porque se não vai 'pra' vala.

Nesse sentido, os sujeitos sociais em situação de tráfico se colocam como Estado inclusive no que diz respeito à sanção de normas e regulamentos, em que eles mesmos formulam as leis, as executam e fazem os moradores cumprir coercivamente. Diferentemente dos Estados Modernos democráticos, os quais se baseiam em um Código Positivo, ou seja, escrito legal e legitimamente, o código nos morros é oral e, sobretudo, vivencial e transmitido via morador-morador.

Legitimidade: A soberania do Tráfico nos limites da 'favela'

Na presente subseção se empreenderá uma breve apresentação sobre legitimidade e soberania. Este tema foi considerado relevante para a compreensão holística da situação de empoderamento do 'traficante' sobre os moradores e sobre o território dos morros cariocas. Segundo Fonseca Jr., o conceito clássico de legitimidade é a adesão ao regime e ao sistema legal, o que implica em uma submissão voluntária à autoridade, à norma e ao poder (Fonseca Jr., 1998, p. 138). Nesse sentido, é lícito observar a relação dialética entre legitimidade e adesão, na qual a legitimidade, quando consensualmente estabelecida e aceita, traz consigo a adesão generalizada e sua perpetuação ao longo de um determinado regime político. Da mesma forma, uma adesão maciça de um determinado corpo de regras, ou normas de caráter geral dá margem ao estabelecimento de uma dominação legitimada, que potencialmente, pode resistir a um determinado espaço de tempo.

Contudo, é relevante questionar em que momento se estabelece a legitimação. Fonseca Jr. levanta essa questão da seguinte forma: serão os valores de determinado tempo, como a democracia, ou a expectativa de que o poder forneça bens à população (Fonseca Jr., 1998, p.138)? Para Merquior, chama-se de crática a obediência ao regime que é fruto de um cálculo de possibilidade de que o poder instalado venha a recorrer à coerção (Idem, p.139). É nesse sentido, que Merquior preconizou, que o presente trabalho adota o conceito de legitimidade; como algo exterior ao morador da 'favela' que muitas vezes se vê acuado e forçado a apoiar. A soberania será tratada como um reconhecimento da ação de um poder legitimado circunscrito a um território e uma população civil, bem como articulação de um poderio militar em defesa desse território (Idem, p.146).

Análise discursiva crítica: interiorização e legitimação de discursos hegemônicos

Nesta subseção, será analisado um trecho da reportagem que trata das obras do PAC  Programa de Aceleração do Crescimento  no morro Dona Marta, Rio de Janeiro. Esta reportagem foi exibida no canal de televisão brasileiro SBT no dia 15 de janeiro de 2008. Em um segundo momento, se estudará o discurso da moradora Jane, extraído do documentário "Notícias de uma guerra particular" de 1999. As categorias tomadas neste estudo, partindo de pressupostos teórico-metodológicos da ADC foram: representação dos atores sociais, vocabulário/significado de palavra, metáfora. No que tange aos modos de operação da ideologia, preconizados por Thompson (2009), analisar-se-á a legitimação, dissimulação e reificação.

Para a plena compreensão da análise discursiva feita a seguir, faz-se necessário empreenderuma contextualização e uma referenciação do momento no qual os discursos, aqui tomados como o corpus da pesquisa, foram constituídos e produzidos. Também retomaremos brevemente o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no âmbito do morro Dona Marta, bem como, o momento histórico de que data a tentativa de entrada dos representantes do governo no referido morro.

'Favelas': a Apartação Social se estrutura.

As primeiras organizações sociais brasileiras que, mais tarde, viriam a constituir as ditas 'favelas' modernas datam do período histórico brasileiro que ficou conhecido como República Velha, de 1889 até 1930. Esse período foi marcado por um relativo progresso econômico da região sudeste, fruto do sucesso que o café, enquanto commodity trouxe ao país (Vicentino & Dorigo, 2002), bem como o surto da Borracha na região amazônica que possibilitou a projeção do Brasil no cenário mundial, como exportador de produtos do primeiro setor industrial (Idem, Ibidem, 2002). Nesse sentido, o governo brasileiro da época passou a encarar a modernização do centro industrial do país  sudeste  como imperativo. São Paulo já havia iniciado sua industrialização durante o Segundo Reinado, com a Era Mauá (Barbeiro; Cantele & Schneeberger, 2005). Essa incipiente industrialização trouxe ares modernos a cidade paulista, aproximando-a a capital britânica, industrializada 100 anos antes, aproximadamente.

Entretanto, a então capital brasileira, Rio de Janeiro, ainda possuía feições rudimentares e ruralizadas. O centro da cidade se assemelhava a uma velha cidade colonial, com vielas e ruas mal organizadas e insalubres (Vicentino & Dorigo, 2002). Aproveitando-se do progresso econômico advindo do novo paradigma econômico-industrial, o governo da República Velha passou a investir na modernização e na europeização da então capital brasileira, principalmente, no tocante a arquitetura e urbanismo. Passou-se a construir edifícios com estilos ecléticos, com belas fachadas utilizando todos os materiais disponíveis na construção civil da época (Idem, Ibidem, 2002).

Mas, foi no governo de Rodrigues Alves  1902 a 1906  (Barbeiro; Cantele & Schneeberger, 2005) que o processo de modernização e europeização da capital se intensificou. Cortiços foram derrubados, habitações informais foram desconstruídas,vastos contingentes populacionais foram expulsos da capital e obrigados a viver nas áreas periféricas da cidade. Grande parte dessa população pobre posta à margem era composta de população ex-escrava, visto que a Lei Áurea havia sido assinada cerca de 15 anos antes. Essa população conservava resquícios do conformismo imposto aos escravos (Buarque, 1993), então não se criou qualquer resistência a esse movimento social centrífugo do centro para a margem periférica. Nesse momento, se instalou uma Apartação Social (Buarque, 1993) clara, confinando uma população majoritariamente pobre e indesejada em áreas delimitadas e longe dos olhos da burguesia carioca. Como conseqüência, surgem as primeiras estruturas embrionárias que originariam, anos depois, os grandes complexos de 'favelas' no Rio de Janeiro, como é o caso do Complexo do Alemão.

Atualmente, não é possível afirmar que as 'favelas' são apenas áreas de habitação. São, pois, grandes conglomerados e regiões complexamente habitadas com organizações internas, comércio, regras sociais e até mesmo um código informal consuetudinário circulando entre os moradores e chefes de morros. A análise discursiva empreendida a seguir sugere que a apartação social da população ex-escrava no contexto carioca, de alguma forma, viabilizou a constituição dos grandes complexos habitacionais  'favelas'- e mais; quando o Estado se ausenta dessa e de outras responsabilidades, conceito que Bourdieu chama dedemissão do Estado[1]no contexto neoliberal, ele (Estado) abre precedentes para a instauração e a consolidação de um poder concorrente. Este poder concorrente pode ser visto em grande parte dos morros, em que o tráfico de entorpecentes se estabeleceu e o poder de atuação do Estado, dentro desses morros, foi tomado pelos chefes do tráfico de entorpecentes e, é constantemente legitimado pelos discursos dos próprios moradores.

A instauração desse poder de Estado concorrente não aconteceu da noite para o dia. Foi um processo sócio-histórico com raízes muito profundas e de difícil desarticulação, que o governo parece não sabe podar. Prova disso, foram as obras do PAC  Programa de Aceleração do Crescimento  uma proposta do governo Lula para atingir setores chaves da economia brasileira como construção civil e transportes. A intenção do governo era 'ocupar' a região do Complexo do Alemão e colocar em prática obras de urbanização e serviços, assim como melhorias no transporte, lazer e saúde de acordo com o Jornal O Globo de 18/02/2008.

Contudo, ainda de acordo como jornal, para tentar empreender tal projeto, o governo, em um primeiro momento, teve de mobilizar a Polícia civil e militar, sem êxito, pois os chefes do morro receberam estas com violência e mortes, como afirma a Revista Carta Capital de 14/02/2008. Esse fato evidencia que atualmente, o poder concorrente dos chefes dos morros é, pois, tão consolidado que é capaz de equilibrar forças com o aparato militar do Estado Brasileiro. Dessa forma, em um segundo momento, o governo instalou nos morros a Força Nacional de Segurança (FNS), para tentar dar seguimento às obras do governo Lula. É nesse contexto social que o primeiro discurso, aqui analisado, foi produzido. Trata-se de um excerto de uma reportagem que um 'traficante' expõe seu ponto de vista sobre as obras do PAC no Complexo do Alemão, região a qual ele se coloca como chefe.

Significado Representacional e Ideologia: Representação dos Atores Sociais

"As maneiras como atores sociais são representados em textos podem indicar posicionamentos ideológicos em relação e eles e suas atividades" (Resende & Ramalho, 2006, p.106). Nesse sentido, utilizando-se o arcabouço teórico-metodológico da ADC, é possível desnudar possíveis relações de dominação sujeito empoderado/sujeito desempoderado, bem como pôr a nu estruturas sociais repletas de ideologias que visem manter a situação de coerção e arbitrariedade de ação, como é o caso do tráfico de entorpecentes nos morros cariocas.

Os atores sociais, assim como as tensões sociais travadas e negociadas entres estes dentro do espaço de representação discursiva, podem aparecer de maneira clara, mitigada, excluída e ainda serem ausentes significativos. Tal representação depende de uma série de fatores extralingüísticos. Halliday afirma que as relações de poder já estão definidas antes mesmo da concretização da linguagem (Halliday, 1973: 65, apud).

Para fins analíticos, serão analisados, primeiramente, os atores sociais presente no Texto1  Reportagem SBT  e depois a mesma análise sistemática será feita sobre os atores sociais do texto 2  depoimento do documentário "Noticias de uma guerra particular". As categorias representacionais tomadas neste estudo foram: categorização, colocação em segundo plano, generalização e pronominalização. Há ainda um Texto 3 que não será alvo de uma análise do discurso completa; será apenas utilizado para sustentar a hipótese sócio-científica aqui levantada.

A intensa queda de braço entre a instituição Polícia e os moradores dos morros cariocas, em especial os chefes do tráfico de entorpecente, já produziu grandes acontecimentos; como exemplo, pode-se citar o massacre no Complexo do Alemão em junho de 2007, e a queda de um helicóptero da Policia Militar em outubro de 2009  dados do jornal "O Globo". Nesse contexto, e sabendo que as identidades são construídas (Fairclough, 1995), as identidades que os policias construíram perante os moradores do Dona Marta dá a entender que a atuação daqueles profissionais é violenta e, sobretudo, desrespeitadora para com os moradores. Pode ser vista, também, como uma atuação ilegítima, visto que a inclusão dos policias nos textos, está sempre ligada a ações de cunho bélico e truculento e acontecimentos de ocupação e de tomada de território, como nos exemplos a seguir:

(2) Qual é o motivo da Polícia ocupar a região?

(3) Não tem necessidade de 'botar' Polícia aqui dentro, não.

(4) (...) se a Polícia entrar de alguma maneira...?

(5) Vai morrer Polícia, Vai morrer bandido.

No trecho analisado, em todos os casos os policias são categorizados segundo sua profissão e também pela forma de atuação, entrando no âmbito da generalização, dando a entender que todos os policiais, sejam eles da esfera civil, militar ou federal têm o mesmo padrão de comportamento diante dos moradores do morro Dona Marta. Essa generalização do comportamento dos policias reflete, ao menos em parte, a visão que os moradores possuem daqueles como um grupo único e ameaçador. A noção de invasão que esses atores sociais  Polícia  construíram junto aos moradores sustenta a tese de guerra declarada, na qual o morro é uma zona de conflito, ou ainda, um território a ser conquistado pela força e pela dominação espacial. Na seção depois desta, serão analisadas algumas categorias de palavras/vocabulário que sustentam essa visão.

Já os 'traficantes' se representam ora por pronominalização  nós , ora por substantivação  bandido  como nos excertos abaixo:

(6)'É' nós mesmos que queremos fazer as obras na favela (...)

(7)Vai morrer Polícia, Vai morrer bandido (...)

(8) Porque se 'sai' nós (...)

Nesse sentido, se por um lado, os 'traficantes' generalizam os policiais enquanto profissionais e como atores sociais de mesmo comportamento, eles ('traficantes') também o fazem para si, quando discursivamente generalizam os diferentes sujeitos em situação de tráfico e de empoderamento como 'nós', ou seja, coloca todos os atores sociais em um mesmo patamar. Patamar esse construído, possivelmente, para contrapor a força que os policiais, como um grupo fechado, têm sobre os moradores do morro. Também é possível analisar essa generalização sob um viés ideológico. Segundo Thompson, unificação é a construção simbólica de uma unidade que conecta os indivíduos numa identidade coletiva, independente das possíveis diferenças e divisões que possam existir dentro do grupo, e que, potencialmente possam dissociá-lo (Thompson, 2009). Nesse sentido, é interessante notar que discursivamente, os 'traficantes' constroem uma identidade coesa e unificada para se imporem diante do invasor não legítimo. Ao fazerem isso, os chefes dos morros buscam uma identidade legitimada sobre os demais moradores. Essa identidade está diretamente relacionada a um aparato particular e concorrente que protege o morro como um ambiente paralelo e dissociado das demais regiões cariocas, com forças independentes e um Estado igualmente independente.

Logo depois, os 'traficantes' se definem como 'bandidos' (7). Esta auto-representação do 'traficante' como bandido indica uma possível internalização e reprodução de um discurso hegemônico advindo do ambiente fora das comunidades dominadas pelo tráfico de drogas, pois dentro do espaço físico do morro, os 'traficantes' se representam de uma forma diferenciada, e mais importante ainda, são representados de forma diferente pelos próprios moradores. No texto 3  depoimento da moradora Jane  a depoente representa socialmente os 'traficantes' chefes do morro de forma abrandada, e até mesmo positiva. Nas palavras dela:

(9) Ai, eu chego lá, no 'Movimento' (...)

O contexto maior, do qual foi tirado este excerto, refere-se ao acontecimento em que a moradora Jane foi pedir aos chefes do tráfico de entorpecentes um medicamento o qual ela, sem condições financeiras, não poderia comprar. Esse fato revela que os chefes dos morros já possuem força social consolidada, a ponto da moradora em momento de emergência, nem cogitar a possibilidade de ir ao Sistema Público de Saúde, um direito garantido, em teoria, pelo Estado e ir recorrer diretamente a figura do 'traficante' e obtendo retorno imediato às suas necessidades. Isso indica claramente que o tráfico preencheu a lacuna que o governo deixou em aberto.

A escolha por representar os 'traficantes' como um 'movimento' também pode ser posta em relevo à luz dos modos de operação da ideologia preconizados por Thompson. O 'movimento', a que Jane se refere, esconde uma forte relação de dominação entre o sujeito social 'traficante' e o sujeito social 'morador', ou nas categorias de Thompson (2009) está presente uma dissimulação.

Dissimulação ocorre quando relações de dominação são ocultadas ou obscurecidas por uma forma que desvia nossa atenção, ou passa por cima de relações de dominação existentes (Thompson, 2009). Dentro do modo de operação da ideologia dissimulação, pode-se localizar esse trecho acima na estratégia de eufemização, em que ações de dominação são valoradas positivamente.

Já a representação dos 'traficantes' pelos próprios 'traficantes', que em princípio se apresentava de forma coesa, mais a frente fica perceptível a cisma bifurcada da representação dos atores sociais que antes era em torno do "nós"  abrangendo todos os chefes dos morros  se bifurca em 'nós' (atuais sujeitos sociais em situação de empoderamento) e os 'outros' (possíveis substituidores dos atuais empoderados). Essa bifurcação fica clara na seguinte passagem do texto 1:

(10) Porque se 'sai' nós, 'vai' entrar outros e a bala vai comer do mesmo jeito (...)

O que se depreende dessa cisma bifurcada é que diante da atuação coercitiva da Polícia na região dos morros cariocas, a coesão do grupo dos chefes do tráfico de entorpecentes é, pois, necessária para impor e demonstrar a forças que esse poder concorrente exerce na região diante de um poder descredibilizado e enfraquecido, como é o poder do Estado Nacional Brasileiro, no contexto da demissão do Estado de Bourdieu[2]. Em um segundo momento, esse grupo, outrora coeso, se divide em: atuais empoderados e potenciais sucessores.

Essa noção de sucessão de poder trazida pelos/para os próprios 'traficantes' e, discursivamente representada em 'nós' e os 'outros', sugere que o Estado brasileiro se ausentou de tal maneira a ponto dos moradores do morro se organizaram em torno de uma figura, que tomou para si as atribuições de Estado, e é eleita, legitimada e substituída por eles mesmos sem quaisquer tipos de interferências por parte do Estado Nacional Brasileiro, refutando a visão a qual Bourdieu preconizou.

O chefe do morro Dona Marta, que concedeu a entrevista a qual é alvo de análise neste trabalho, não representa diretamente sua visão sobre o Estado como ator social no âmbito da 'favela' supracitada. Contudo, ele a faz indiretamente, por uma representação em segundo plano, insinuada pelo processo de pronominalização 'eles':

(11) Eles estão querendo usar as obras de habeas corpus para querer acabar com o tráfico (...)

A análise contextual permite inferir que o mencionado 'traficante' se refere ao Estado Nacional Brasileiro, pois a referenciação anterior havia sido sobre a Polícia enquanto instituição, não cabendo, sintaticamente, a pronominalização 'eles'. Outro aspecto que permitir concluir que estão se referindo ao Estado é, pois, o objeto de ação do sujeito 'eles': as obras do PAC. Nesse sentido, os policiais não realizam as obras, sendo, portanto, papel do Estado instituir as obras na região do morro Dona Marta.

É interessante também pontuar a representação, que os 'traficantes' têm como atores sociais, em oposição ao grupo da Polícia. No excerto analisado, os chefes do morro introduzem um elemento de negação 'ninguém' para si representarem como sujeitos que não realizam determinada ação que lhes é, geralmente, atribuída.

(12) Ninguém aqui mata trabalhador, ninguém vai roubar material aqui(...)

Texto 2: Atores Sociais  Coisificação e Silêncio

No texto 2, diferentemente do texto 1, quem faz a representação do tráfico e dos 'traficantes' é uma moradora, Jane, e não mais um chefe do morro. Em seu depoimento, Jane representa discursivamente os atores sociais Polícia, bem como os policiais e os 'traficantes'. Em concordância com a visão do 'traficante' do texto 1, Jane representa, por duas vezes ao longo do discurso, os policias que entram no morro segundo sua profissão, configurando uma categorização profissional:

(13) A Polícia quando entrava na favela, (...)

(14) (...) entrada violenta da Polícia.

É relevante ressaltar que todas as referências diretas feitas à Polícia são feitas acompanhadas de palavras com sentido de invasão, dando a entender que a tensão social que se trava entre Polícia e os moradores é uma tensão de guerra civil, na qual os policiais assumem o papel de soldados e os moradores e chefes do morro de população rebelde, e o espaço da 'favela' como um local paralelo a ser conquistado.

Num segundo momento, a moradora passa a discursar sobre os chefes do morro. Nessa etapa é interessante notar a forma como ela constrói a representação de ator social arraigada a elementos materiais com os quais os 'traficantes' se constituíram 'traficantes', como 'tóxico'  droga/entorpecente -, 'armas'  elemento mediador - e o 'tráfico' propriamente dito.

(15) O tráfico, de um lado melhorou (...)

(16) (...) essas 'arma' quando entraram na comunidade, através do tóxico(...)

Da análise dos excertos é possível verificar a ausência significativa do elemento humano, em que o sujeito social em situação de tráfico é coisificado pela sua atividade  Tráfico -, pelo material com o qual ele lida  tóxico - e pelo instrumento de imposição e legitimação de seu poder na região que ele se impôs coercivamente  Armas. Nesse sentido, verifica-se que os moradores evitam sistematicamente a nomeação 'traficante', escolhendo formas alternativas  eufêmicas  para representar tais atores sociais empoderados. A norma consuetudinária, mencionada anteriormente, que parece haver nos morros cariocas é representada discursivamente, na medida em que falar sobre a figura do traficante parece ir contra a norma coerciva e contra os padrões estabelecidos no âmbito do morro Dona Marta. A moradora também representa os 'traficantes' por pronominalização em dez casos. Entretanto, a maneira mais representativa em que ela coloca os sujeitos sociais em situação de tráfico é trazendo a noção de filiação destes com o ambiente e com as tensões sociais do morro Dona Marta, trazendo uma relação pertencimento:

(17) (...) que tá sabendo que essa nova geração, essa geração, essa juventude, eles têm o espírito suicida (...)

Nesse sentido, a legitimação de atuação desses atores sociais é advinda dessa suposta filiação que eles, enquanto moradores, possuem com a comunidade. Ou seja, o 'traficante' como filho legítimo da região, além de filiações com gerações anteriores. Isso mostra uma possível cauda que possa estar a serviço da instauração e da legitimação dos traficantes como um Estado concorrente.

Significado de palavra: metáfora de guerra e a existência de fronteiras

"Os significados de palavras e a lexicalização de significados não são construções individuais, são variáveis socialmente construídase socialmente contestadas, são 'facetas' de processos sociais e culturais mais amplos" (Fairclough, 2003, apud). Nesse sentido, a escolha lexical do 'traficante' no presente excerto revela muito sobre a situação de embate entre um poder público desacreditado; e um poder concorrente cada vez mais fortalecido e legitimado. A partir da análise dos vocábulos usados no texto 1, é possível perceber uma alta densidade de elementos que remetem ao mundo do crime/cenário do crime ou ainda da atividade criminosa, como é o caso dos excertos a seguir:

(18) Qual o motivo de (...) ocupar região?

(19) Ninguém aqui mata trabalhador, ninguém aqui vai roubar material.

(20) Não tem necessidade de botar a Polícia aqui dentro, não.

(21) (...) para querer acabar com o tráfico.

(22) (...) se a Polícia entrar de alguma maneira...?

(23) A bala vai comer. Vai morrer policia, vai morrer bandido.

O uso constante de vocábulos com conotações de guerra sugerem que há, de fato, uma situação de guerra civil instalada, na qual a policia do Estado Nacional Brasileiro tenta entrar e se impor em um território que, na visão dos 'traficantes' e da comunidade, não lhes é mais legítimo. Na medida em que já há um governo concorrente, com poder e força social consolidada, há a noção de soberania do território que vai até os limites físicos da 'favela'; há um tipo de código consuetudinário entre os moradores, que lhes foi imposto pelos sujeitos sociais empoderados, bem como a noção de fronteira  entre asfalto e morro  que fica bem evidente com o uso de léxicos como "entrar", "ocupar", "aqui dentro" somente para citar alguns, além de sugerir a metáfora de guerra. Essa pressuposição de uma fronteira é confirmada pela metáfora espacial do tipo continente/conteúdo quando ele usa em 'aqui dentro'(20).

Mais a frente, o 'traficante' se utiliza de um significado de palavra que reitera a visão de Fairclough de que o significado das palavras é, sobretudo, um construto social:

(24) Eles estão querendo usar as obras de habeas corpuspara querer acabar com o tráfico (...)

Ao usar o termo jurídico habeas corpus, o 'traficante' descola o termo do seu sentido original, canônico e o recontextualiza, agregando toda uma sorte de significados polissêmicos que não estavam abarcados no sentido original. Aqui, ele pode ser tratado como significando 'justificativa', 'pretexto', 'estratégia' ou ainda outros significados que não foram devidamente apreendidos, na medida em que a real assunção de valores e a projeção da instância da enunciação do enunciatário (Barros, 1988, p.73) são desconhecidas. Entretanto, pode-se inferir também que o termo habeas corpus esteja significando passaporte. Se couber essa interpretação, a noção de fronteira e de espaços fragmentados é reforçada e reiterada confirmando, pois, a metáfora de guerra.

Texto 2: A racionalização do herói do tráfico

No texto 2, tal qual no texto 1, a densidade de elementos que remetem a metáfora de guerra é igualmente alta. Contudo, o significado de palavra neste texto, está

a serviço da construção de uma identidade próxima da visão de herói de guerra:

(25) Eles não querem saber se vão morrer ou vão matar (...)

(26) Eles querem defender a comunidade (...)

Nesse sentido, fica clara a defesa que a moradora faz da atuação dos 'traficantes' pela escolha lexical. Isso abre precedentes para a legitimação dos chefes dos morros e dos sujeitos sociais em situação de tráfico de agirem de forma violenta e desmedida, na medida em que essa identidade e a atuação são sempre respaldadas pela população. Prova disso pode ser vista se analisarmos o mesmo discurso da moradora pelo viés dos modos de operação deideologia de Thompson (Thompson, 2009). No discurso de Jane, há pelo menos dois modos preconizados pelo autor supracitado: a legitimação  pela racionalização  e a reificação  por naturalização:

(27) O tráfico de um lado melhorou; (...) porque antes de existir o tráfico, a Polícia entrava na favela (...) metendo o pé na porta (...) e já vinha quebrando tudo, (...) então essas 'arma' fez com que eles  Polícia  'entrasse' com mais cautela (...) é o lado bom das armas.

(28) Porque antes do tráfico existir (...)

(29) Essas armas quando entraram na comunidade (...)

No excerto número 27, a moradora se utiliza da racionalização em seu discurso e "constrói uma cadeia de raciocínio que procura defender, ou justificar, um conjunto de relações de dominação como dignas de apoio" (Thompson, 2009, p.82,83). Nesse sentido, mais uma vez é possível verificar a situação parcial que os moradores se colocam diante da dicotomia Polícia/Tráfico, posicionando-se a favor dos sujeitos sociais em situação de tráfico e os legitimando. Já nos números 28 e 29, a ideologia do discurso de Jane pode ser posto em relevo segundo o modo da reificação  naturalização , segundo o qual "os processos são retratados como coisas (...) de um tipo quase natural, de tal modo que seu caráter social e histórico é eclipsado" (Idem, 2009, p. 87).

Mitigação: Modalização epistêmica e redução da força ilocutória

Nesta última subseção, será abordado o tema da mitigação, como mecanismo de diminuição da tensão comunicativa e redução da força ilocutória em um discurso. Na análise lingüístico-discursiva foi possível desvelar algumas representações que indicavam a presença de relações sistematicamente assimétricas (Thompson, 2009), bem como representações que contribuíam para sustentar e legitimar o empoderamento de sujeitos sociais em situação de tráfico e chefes de morros como figuras de Estado.

Aqui, no entanto, falaremos sobre a modalização como recurso de abrandamento discursivo. Segundo Dias, a modalidade epistêmica reduz por parte do falante, ou seja, abranda o grau de comprometimento com a verdade que esta sendo enunciada. Baseado nisso, é possível observar tal modalidade no seguinte discurso:

(30) Eles estão querendo usar as obras de habeas corpus para querer acabar com o tráfico, coisa que é quase impossível nesse mundo.

Ao utilizar o modalizador 'quase', o 'traficante' enfraquece a força ilocutória de uma afirmação que, potencialmente, poderia ser categórica. Ao dizer 'quase impossível', ele reduz o risco para ele, preservando sua face enquanto falante, com o fato do tráfico ser, atualmente, difícil de ser dissociado, mas não impossível. Ao fazer isso, ele abre precedentes para uma possível interpretação de que, assim como toda hegemonia é instável (Resende & Ramalho, 2004) o tráfico como fato social generalizado e coercivo (Durkheim) também tem suas falhas e brechas, por onde pode vir a reviravolta e a desconstrução desse paradigma de dominação e coerção sobre a população civil e sobre os moradores dos morros cariocas da atualidade.

Considerações Finais

O tráfico, atualmente, se configura nas 'favelas' cariocas como um fato social durkheimiano, visto que tem sua atuação generalizada nos morros e sendo exterior aos moradores, se configura como coercivo por excelência. Aqueles que não aderem voluntariamente, ou mesmo involuntariamente, a esse fato social podem sofrer sanções. Tais sanções variam entre legais e espontâneas (Costa, 2001); as legais se relacionam com o código positivo vigente em determinada sociedade e em determinado regime político, já as espontâneas se relacionam com posturas que os sujeitos sociais daquela cultura podem assumir diante de uma ação fora do 'normal'. Olhando especificamente para a situação de tráfico, o fator 'sanção' não é positivado; é, pois, consuetudinário, visto que se transmite pelos costumes e vivências, bem como pela oralidade morador/morador.

Entretanto, essa força coerciva que os chefes do tráfico exercem, e mais ainda, esse poder que eles tomaram para si não é absolutamente maciço e sem falhas. Ao admitir que seja "quase impossível" acabar com o tráfico, sem afirmar categoricamente que é impossível, o próprio 'traficante' reconhece que há algum tipo de falha ou brecha. Nesse sentido, o tráfico, e questões advindas dele, não são tal qual Althusser preconiza aparelhos ideológicos hermeticamente fechados, nos quais o sujeito não tem condições de reagir e modificar a situação vigente  sujeitos assujeitados. Pelo contrário, ele abre precedentes para uma mudança, em que nessas brechas é possível encaixar um discurso contra-hegemônico; já que a linguagem  o discurso  constitui o social, os objetos e os sujeitos sociais (Resende & Ramalho, 2006, p.18/19) e é constituída por estes, mantendo uma relação dialética, que pode estar a serviço da mudança completa de paradigma. Esse fato reforça a idéia de discurso, intrinsecamente, ligado à sociedade.

Dessa forma, pode-se pensar em mudanças sociais advindas de, entre outras coisas, de mudanças de discursos. Contudo, não é possível pensar em mudança paradigmática sem pensar na posição dos moradores das regiões em situação de tráfico, ou seja, sem pensar na posição do agente, na sua própria agência (Rajagopalan, 2002, p. 204). Quem oferece resistência é um sujeito, valendo-se de sua condição enquanto agente de sua própria ação (Idem, Ibidem). Nesse sentido, é licito colocar o papel que os moradores têm de assumir na mudança e no desempoderamento do sujeito social em situação de tráfico, na medida em que estes não vão querer, de forma alguma, dividir seu poder coercivamente adquirido, muito menos perdê-lo por completo. Portanto, qualquer iniciativa que venha redundar em mudanças no status quo terá de vir, (...), de baixo para cima (idem, p. 212). Uma mudança paradigmática do porte que é apresentada aqui, não se constitui nem se institui da noite para o dia. É, pois, um longo processo. Parte deste processo perpassa pela educação de novas gerações. Nesse sentido, Rajagopalan propõe a empowerment education, que objetiva desenvolver formas de resistência a injustiças, e com os próprios esforços melhorar condições de vida e recuperar a dignidade (Idem, 206). Este pode ser um caminho a percorrer.

Referências:

Bibliográficas

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Virtuais

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http://www.youtube.com/watch?v=L20aQ96CX6g  Acessado em 6 de janeiro de 2010.

Notícias de uma guerra particular, VIDEOFILMES, Brasil, 1999. Diretor: João Moreira Salles; Produtora: Kátia Lund.


[1] Pierre Bourdieu, em sua obra A miséria do Mundo (apud), cunhou a expressão 'demissão do Estado' ao afirmar que as idéias de bem-estar social e de serviço público são minadas no contexto de generalização do Neoliberalismo (Resende, 2005). Nesse sentido, a idéia de bem-estar social volta à esfera privada, ou seja, é incumbência do próprio sujeito social, bem como das instituições a que ele pertença ou possa vir a pertencer como é o caso da família e da 'comunidade' (Idem, 2005).

[2] Como forte argumento de que no neoliberalismo, o Estado de isenta de uma parcela considerável de atuação e passa, muitas vezes, a ter um papel simbólico encontra-se na obra de Thomas Friedman, considerado o papa do neoliberalismo. Em "O mundo é plano"  2005 -, Friedman preconiza 10 forças que achataram o mundo e tornaram os países iguais (p.98). O sexto deles é o chamado offshoring  realocação de um setor de uma grande companhia em outra unidade exterior a essa, geralmente essa realocação ocorre em outro país  uma espécie de terceirização de serviços. Em breves palavras, Friedman considera offshoring como uma prática que aproxima e cria um achatamento entre os países. Entretanto, ela peca ao não considerar a assimetria advinda desse processo. Se há alguém que terceiriza, há, por outro lado, alguém que é terceirizado sem que o Estado tome conhecimento desse movimento. Nesse sentido, é interessante analisar a extensão dessa dita 'demissão', pois em um primeiro momento, o Estado deveria se 'ausentar' somente na esfera econômica, mantendo o controle sobre as demais áreas. Contudo, essa 'demissão' se estende a diversas outras áreas como saúde, segurança e políticas públicas.

Texto 1

TRAFICANTE:

- Qual é o motivo da Polícia ocupar a região? Ninguém aqui mata trabalhador; ninguém vai roubar material aqui; que "é" nós mesmos que queremos fazer as obras na favela. Não tem necessidade de "botar" Polícia aqui dentro, não. Eles estão querendo usar as obras dehabeas corpus para querer acabar com o tráfico, coisa que é quase impossível nesse mundo.

JORNALISTA:

-Quer dizer se a Polícia entrar de alguma maneira, "pra" dar início a essas obras?

TRAFICANTE:

- A bala vai comer. Vai morrer "polícia", vai morrer bandido, e o crime não vai parar. Porque se sai "nós", "vai" entrar outros e a bala vai comer do mesmo jeito, "mano".

Fonte: Reportagem exibida no Jornal do SBT no dia 15/01/08. Excerto extraído da reportagem que trata das obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento  Programa do Governo Federal Brasileiro) no complexo do Alemão, Rio de Janeiro. Reportagem: Monica Puga; Imagens: Gelson Domingos; Auxiliar: Alex Oliveira.

http://www.youtube.com/watch?v=L20aQ96CX6g

Texto 2

JANE:

- O tráfico, de um lado melhorou; do outro lado não. Porque antes de existir o tráfico, a Polícia quando entrava na favela, ela, ela já entrava "metendo" o pé na porta da sua casa, e já, já vinha quebrando tudo, então essas "arma" quando entraram na comunidade através do tóxico fez com que eles (Polícia) "entrasse" com mais cautela, entendeu?

Eles andam com medo, que "tá" sabendo que essa nova geração, essa geração, essa juventude, eles têm o espírito suicida. Eles não querem saber se eles vão morrer, ou se vão matar. Eles só, eles só, eles querem defender a comunidade dessa entrada violenta da Polícia. É o lado bom das armas. Agora, o lado negativo, o lado cruel das "arma" é que quando eles têm que cobrar seja das pessoas lá de baixo, "seje" da nossa comunidade, eles não vão medir. Eles não querem saber se é menor, se não é, entendeu?

Se eles puderem matar, esquartejar e cortar e colocar lá "pra" todo mundo ver, como exemplo, para ninguém "vacilar" porque senão vai "pra" vala. Eles são "capaz" disso.

Fonte: Depoimento extraído da obra "Notícias de uma guerra particular", VIDEOFILMES, Brasil, 1999. Diretor: João Moreira Salles; Produtora: Kátia Lund.

Texto 3

JANE:

- A minha filha passa mal, assim, na madrugada, ou eu, entendeu? Ai, eu passei na farmácia, às vezes, eu levo um dinheiro, assim, "pra" poder comprar o remédio, mas o remédio é o triplo daquilo que eu "tô" na bolsa. Ai, eu chego lá no Movimento  "Minha filha tá doente, eu preciso (...)", "Cadê a receita?", "Tá aqui.", "Me dá"  daqui a meia hora o remédio "tá" chegando.

Fonte: Depoimento extraído da obra "Notícias de uma guerra particular", VIDEOFILMES, Brasil, 1999. Diretor: João Moreira Salles; Produtora: Kátia Lund.


Autor: Renan Kenji Sales Hayashi


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