No Princípio Era a Palavra



A meu ver, a introdução da distinção entre Juízos de Realidade e Juízos de Valor foi esterilizante para a filosofia. 1

  1. Introdução:

Pareceria muito estranho há alguns anos atrás se falar de Argumentação ou Retórica em um texto que tratasse de questões referentes à Epistemologia, isto é, sobre o conhecimento científico. A acusação seria de cometer o pecado de ferir a objetividade científica. Mesmo há pouco tempo atrás, quando falei que estava interessado em estudar as questões levantadas pela Nova Retórica de Chaïm Perelman, um amigo me disse: "É, sabia que você iria acabar trabalhando com Literatura..." Eu concordei para não ser nem antipático, nem suscitar controvérsias ou maiores explicações.

Entretanto, este tipo de estranheza me parece, no mínimo, estranho após as conclusões a que chegaram alguns epistemólogos atuais, como é o caso de Thomas Kuhn, por exemplo, com a sua concepção que dá toda importância à Comunidade Científica como meio de criação e de aceitação de certas Teorias Científicas em detrimento de outras, e que, por isso mesmo, não devem ser desprezadas noções típicas da Retórica como Auditório e Acordo. O meu objetivo neste pequeno trabalho é justificar esta "estranha" relação calcada nestas conclusões a que chegaram esses autores atuais, principalmente a relação entre a Nova Retórica de Perelman e as teorias epistemológicas de Thomas Kuhn acima citadas.

Embora Perelman não tenha citado extensivamente Thomas Kuhn em seus trabalhos (citou mais Gaston Bachelard, assim como Ferdinand Gonseth, e até mesmo Quine) numa nota singela faz perceber que ele não ignorava o trabalho desse autor:

Sabe-se como a influência neoplatônica, considerando o Sol como um reflexo ou mesmo como filho de Deus, favoreceu a aceitação, por Copérnico e por tantas outras mentes, da hipótese heliocêntrica em que "o Sol, sentado num trono real, é apresentado como governando os planetas, seus filhos, que giram ao seu redor". 2

É por esta falta de citações por parte de Perelman que se faz necessário neste trabalho destacar algumas semelhanças e diferenças entre Kuhn e Perelman, bem como as críticas de ambos ao Positivismo Lógico. Por isso mesmo, neste trabalho farei primeiramente um inventário do desmonte ou crítica da concepção do que seria científico defendido pelo Positivismo Lógico, começando por Popper, passando por Quine até chegar a Kuhn, com o fim de caracterizar bem o que está em jogo neste desmonte radical, principalmente de Thomas Kuhn, e qual a sua possível relação com a Retórica.

Esta concepção de ciência do Positivismo Lógico se caracterizava por determinar, através de algunscritérios ou estatutos, uma clara distinção entre: o que seria científico, do que seriam apenas fantasias especulativas ou míticas; de modo que, após ter feito tal distinção ou limpeza, as ciências poderiam progredir em solo pavimentado e seguro graças a esta teoria epistemológica. São estes dois conceitos que serão criticados por todos os autores que examinaremos: tanto os critérios de distinção ou justificação do que é ou não científico: o critério de cientificidade, quanto à própria concepção de progresso. Posteriormente farei uma relação deste desmonte dos estatutos do Positivismo Lógico, e sua tendência ao reducionismo, com a possível abertura ao uso da Teoria da Argumentação na teoria epistemológica de Thomas Kuhn.

  1. Os Estatutos (Critérios) do Positivismo Lógico.

Em Primeiro lugar, é interessante fazer uma pequena exposição do que seria o pensamento principal da concepção filosófica chamada de Positivismo ou Empirismo Lógico, no aspecto comum a todos os que participavam de tais pensamentos: os seus estatutos ou critérios. Por isso, inicio esta reflexão com uma citação de um texto muito relevante de Rudolf Carnap (1891-1970) que expõe tais critérios:

Teses:

  1. Somente os enunciados que possuem conteúdo factual são teoricamente significativos; enunciados (ostensivos) que não podem, em princípio, estar fundamentados pela experiência são carentes de significado.
  2. As ciências empíricas usam somente o conteúdo empírico da realidade.
  3. A filosofia usa um conceito não-empírico (metafísico) da realidade:
      1. As teses do realismo e idealismo concernentes ao mundo exterior não possuem nenhum conteúdo factual.
      2. O mesmo vale para as teses do realismo e solepsísmo acerca do heteropsicológico.
  4. Não se pode nem afirmar nem refutar as teses do realismo e do idealismo de uma ciência; elas não possuem nenhum significado científico.
  5. As pseudo-teses do realismo e do idealismo expressam não o conteúdo teórico de enunciado cientificamente permitido, mas somente a representação do objeto acompanhante; concebe-se que expressem uma certa orientação prática como ralação à vida3.

É interessante notarmos, neste texto, algumas das características básicas dos filósofos que pertenciam a esta corrente filosófica, a do Positivismo Lógico, e as suas pretensões. Eles queriam estabelecer, em primeiro lugar, critérios claros de distinção do que teria significado ou não, e, ao mesmo tempo, do que seria científico ou não. Ou seja, tal critério teria uma função semântica e normativa, ou melhor, teria a função de estabelecer a possibilidade ou não de se considerar um enunciado qualquer como tendo ou não significado se fosse verdadeiro, isto é, seria um Princípio de Verificabilidade. Tal Princípio de Verificabilidade estabelece que para que se tenha um enunciado significativo teria ele que possuir conteúdo baseado em fatos (Dados Empíricos Imediatos). Asocorrências de tais fatos verificariam tal enunciado, e a sua não ocorrência o falsificariam. Em outras palavras, somente se pode afirmar algo que possui uma comprovação (prova) empírica que determine a sua veracidade ou não. Os outros tipos de Enunciados, sem verificação empírica, seriam apenas Literatura, ou Retórica, palavras sem sentido, cuja finalidade é simplesmente comover, e, por isso mesmo, expressar "uma certa orientação prática com relação à vida4". Coisas ligadas à mitologia, à metafísica delirante, à arte, ou seja, ao domínio da irracionalidade.

É necessário destacar que essa postura empirista dos Positivistas Lógicos, no entanto, é bastante crítica com relação à postura radicalmente indutivista, como as defendidas por Bentham ou J. S. Mill, onde o próprio domínio da Matemática e da Lógica tem seus fundamentos na experiência sensível. Os Positivistas Lógicos têm uma concepção do que seriam enunciados significativos mais próximos da concepção de Hume, e que foi depois sistematizada por Kant na sua distinção entre verdades analíticas e sintéticas.

As verdades analíticas seriam encontradas nos enunciados que possuem veracidade neles mesmos de modo necessário, ou seja, quando um predicado pertence ao sujeito sendo derivado deste, como é o caso das leis da Lógica e das resoluções matemáticas. Por isso mesmo, tais enunciados versariam sobre o domínio dos enunciados particulares e do totalmente a priori, pois, não seriam nada mais nada menos do que uma dedução derivada do sujeito. Por isso, tais enunciados, por serem deduzido do sujeito teriam que estar apenas no domínio de uma experimentação interna ao espírito humano, isto é, ser puramente racional.

Já as verdades sintéticas, por acrescentarem predicados externos ao sujeito, seriam encontradas em enunciados que necessitariam de uma comprovação exterior, por isso mesmo, externa ao espírito humano, necessitando uma comprovação pelos sentidos para se afirmarem como verdadeiras ou falsas, e, portanto, seriam totalmente a posteriori.

Diferentemente de Kant e mais próximo a Hume, os Positivistas Lógicos não crêem que seja possível que os enunciados (ou juízos) sintéticos possam ser a priori, mas dizem que todos estes enunciados sintéticos só podem ser a posteriori. Por isso mesmo, negam qualquer possibilidade de se constituir uma ciência que diga algo sobre a realidade de modo totalmente a priori, sem comprovação sensorial, como faz, por exemplo, a metafísica.

Para os Positivistas Lógicos odomínio da dedução também seria válido enquanto cumpridor de algumas funções: o de estabelecer e aplicar o Princípio de Verificabilidade para avaliar se um enunciado é científico ou não, avaliando a existência ou não de dados concretos a posteriori. Esta avaliação só pode ser feita por uma Analítica a posteriori. Neste ponto opõem-se ao que dizia Kant, pois, este via os enunciados analíticos a posteriori como sendo desnecessários, pois versaria apenas sobre coisas particulares e contingentes e que apenas confirmariam o que diz o predicado deste enunciado. Já para os Positivistas Lógicos cada enunciado particular deve se referir a um dado sensível para ser testado. Tal domínio não é apenas admitido como também colocado como o único lugar isento de qualquer contaminação de interesses extra-científicos, e, por isso mesmo, seria o único lugar onde se poderia avaliar e legislar no terreno da ciência com o fim de definir o que é científico ou não, e, portanto, aquilatar o que é significativo ou não.

Esse lugar privilegiado de julgamento através da análise lógica do método e da linguagem científica caberia apenas à filosofia - que deveria se contentar em reduzir tudo a esta avaliação no campo da Epistemologia se quisesse fazer algo de realmente relevante. Por isso mesmo, tal modo de filosofar ficou conhecido como Filosofia Analítica, pois suas preocupações são típicas do trabalho dos lógicos, isto é, buscar nos enunciados empíricos: validade, consistência e compatibilidade. Neste sentido Moritz Schlick (1882-1936) escreve:

A linha divisória entre a possibilidade e a impossibilidade lógica de verificação é absolutamente clara e nítida. Não existe nenhuma transição gradual entre "ter sentido" e "carecer de sentido". Tanto para um como para o outro vale o princípio: ou ditamos ou não ditamos as normas gramaticais de verificação; tertium non datur, não existe outra alternativa.

A possibilidade empírica é determinada pelas leis da natureza, porém o sentido e a verificabilidade independem totalmente delas. Tudo aquilo que posso descrever ou definir é logicamente possível - e as definições de maneira alguma estão vinculadas às leis naturais. 5

E aos possíveis críticos, que falassem algo contra esse modo de dar conta da realidade pela análise da linguagem científica e da incompatibilidade ou limitações entre as experiências sensíveis e a linguagem, Schlick diria:

As regras da linguagem constituem regras da aplicação da língua; assim sendo, deve haver alguma coisa à qual esta pode ser aplicada. A expressabilidade e a verificabilidade constituem uma e mesma coisa. Não existe antagonismo algum entre a lógica e a experiência. Não somente o lógico pode ser ao mesmo tempo um empirista, mas deve sê-lo, se quiser compreender o que ele mesmo está fazendo. 6

Assim, tudo seria reduzido à lógica formal com o objetivo de determinar, através de tais critérios formais ou Princípio de Verificabilidade, o que seria científico, e por isso mesmo significativo, verificável. Eliminando, assim, a ambigüidade do terreno da linguagem, assim como também os termos sem significado: as pseudoproposições. Por isso mesmo, tal Princípio de Verificabilidade seria também um Critério de Demarcação para reduzir o conhecimento a enunciados aprovados por tais critérios. Ou seja, há nesse modo de pensar em um profundo reducionismo da filosofia a poucos domínios considerados pelos Positivistas Lógicos como os únicos possíveis: o domínio do teste das ciências positivas  a epistemologia.

  1. Críticas de Popper e a Posição de Quine.

O reducionismo a que chegaram os Positivistas Lógicos ou Filósofos Analíticos não tardou a sofrer duras críticas; principalmente quando muitos de seus projetos totalizadores, o de realizar uma Construção Lógica do Mundo, como diz o título do famoso livro de Carnap (publicado em 1929), começou a ruir no domínio interno da própria lógica. Esta mesma lógica que teria o privilégio de realizar tal construção apresenta impossibilidade de se estabelecer como axiomatização que englobaria toda da matemática, como queriam Hilbert e Russerl, com a descoberta da teoria das Incompletudes de Gödel e as pesquisas de Church. Juntam-se a isto as críticas de Popper ao famoso Princípio de Verificabilidade.

Outra crítica também importante é a que foi citada na epígrafe deste trabalho onde se acusa o reducionismo de dissociar os juízos de realidade dos juízos de valor por Perelman, creio que ao estudar as críticas a este reducionismo por Quine, e Kuhn a sua relevância ficará mais esclarecida.

A crítica de Karl R Popper (1902-2000) ao Critério de Demarcação do Positivismo Lógico, critério este calcado principalmente na indução, trás à tona os problemas já apontados desde a época clássica de se usar enunciados empíricos (particulares ou subjetivos e contingentes) para se estabelecer leis naturas (universais e necessárias). O único modo de se superar tal problema da Indução é, segundo Popper, estabelecendo categorias a priori consensualmente aceitas: uma Lógica da Investigação Científica (como também é o título de uma das suas obras mais importantes). Esta Lógica seria uma teoria prévia determinada de modo Dedutivo, e cujos critérios assim estabelecidos determinariam inclusive o olhar, o tipo de experiência que o pesquisador deveria ter para que esta fosse considerada como científica.

Para Popper o que faz o papel de demarcação entre o que é científico e o que é pseudociêntífico é a refutabilidade empírica. Ou seja, do mesmo modo que as pesquisas necessitam de uma teoria prévia para que se estabeleçam os testes desta teoria, ela deve também refutar as tentativas de explicação de fenômenos naturais (Hipóteses ou Conjecturas), por estes testes empíricos estabelecidos e também refutáveis consensualmente. Por isso, haveria uma alternância constante de Conjecturas e Refutações em todos os lugares da Pesquisa Científica determinados dedutivamente: o Método, as Hipóteses, e os Testes empíricos responsáveis pela confirmação ou refutação de uma Teoria ou Hipótese todos eles estariam passíveis de testes e críticas, e, portanto, de serem refutados e abandonados.

Mas tal teoria não cairia em um total relativismo por ser cada um destes lugares refutáveis? Popper diria que o que daria estabilidade a uma metodologia deste tipo seria exatamente um acordo ou consenso de modo particular (uma decisão) e através de uma Lógica ou Dedução (justificação). Uma analogia esclarecedora é a seguinte:

Poder-se-ia, talvez, esclarecer esta importante distinção entre uma justificação e uma decisão  uma decisão alcançada em concordância com um procedimento governado por regras  com a ajuda de uma analogia: o procedimento tradicional de um julgamento efetuado pelo júri. 7

Assim como o júri julga de acordo com as leis assumidas em um acordo dedutivo prévio, e, leva em conta todos os argumentos prós ou contra que justificasse ou condenasse o réu, assim também deveria ser o procedimento científico. Por isso mesmo, nunca se poderia ter uma resolução conclusiva cabendo sempre novos recursos. Ou seja, há possibilidade de se ter graus de falsificabilidade ou verossimilhança, e que esta grau depende de uma aceitação intersubjetivo.

Esse modo bem mais aberto ao debate intersubjetivo no modo de se conceber a ciência por Popper, abriria terreno a novas revoluções bem mais radicais: como com Willard O Quine (1908-2000), e posteriormente com Thomas Kuhn.

Quine faz crítica principalmente a dois dogmas aceitos pelos empiristas modernos: o Dualismo Análise-Síntese que é o que faz uma clara distinção entre o que seria científico (sintético a posteriori) do que apenas metafísico (analítico ou sintético a priori); e o Reducionismo, e que é uma conseqüência do primeiro dogma, e que afirma que todos os campos de conhecimento são apenas possíveis pela Indução. Analisando a questão da sinomínia Quine mostra que tal distinção Análise-Síntese não existiria como ele mesmo diz:

Um enunciado é analítico quando verdadeiro em virtude de significados e independente de fatos. Seguindo esta linha, examinemos o conceito de significado que está sendo pressuposto.

O Significar, lembremo-nos, não deve ser identificado ao nomear8.

O significado é aquilo no que a essência se transforma quando, divorciada do objeto de referência, é vinculada a palavra9.

Ou seja, o valor de verdade dos enunciados analíticos não são independentes do significado dos seus termos. Isto por que no caso dos sinônimos, não se pode ser atribuído necessariamente a um termo e a outro o mesmo significado de modo simples. Por mais que pareçam ter igual significado, tal significado depende de circunstâncias exteriores aos termos. Por isso, nomear é diferente de significar.

Assim, "homem não casado" não pode significar necessariamente "solteiro", e nem a redundância de dizer que "homem solteiro é um homem que não é casado". Deste modo, tal sinomínia é deduzida de várias outras variáveis possíveis que faz com que a distinção entre análise e síntese desapareça. Ou seja, o significado depende de deduções prévias que determinam uma teoria, e esta determinará tal significado. Essa resolução Semântica é dada pela prática da constituição da linguagem por uma determinada comunidade, com o fim de manter a sua própria sobrevivência enquanto comunidade, ou seja, é pragmática.

Deste modo, a própria ciência dependeria destas deduções semânticas que se relacionam não com um termo apenas, mas com toda uma teoria previamente estabelecida de constituição desta linguagem, e para se negar parte desta teoria ter-se-ia que negá-la toda, como um corpo ou campo de forças que é composto pelos elementos centrais e que definem até a sua aparência exterior (morfológica). Assim, os testes somente se fariam no interior de uma determinada concepção científica, que seria abandonada por completo quando todo o corpo, ou campo de força se torna insustentável.

Por conseguinte, não bastaria uma analítica para determinar o que é científico ou não, seria necessário examinar todas as categorias principais que dariam a sustentação a tal teoria, isto é, é necessário o exame individual dos significados de cada ciência, e o seu corpo teórico de cada uma destas ciências como um todo indivisível.

Assim, esse tipo de teoria do conhecimento científico foi denominada de Holista porque quando uma concepção teórica começa a não mais dar conta dos seus problemas, todo o corpo da sua concepção teórica deve ser rejeitada, e não apenas partes estanques desta teoria. A conseqüência mais radical desta visão da ciência é que a concepção metafísica não pode ser ignorada neste processo de significação dos termos de uma teoria, diferentemente do que pensavam os Positivistas Lógicos.

  1. Thomas Kuhn, a Comunidade Científica e a Mudança de Paradigmas.

A partir destas duas concepções examinadas acima, mais abertas com respeito aos critérios de justificação: tanto o Critério de Demarcação estabelecido de modo dedutivo de Popper do que seria científico ou não, quanto o Holismo de Quine, é que Thomas Kuhn (1922-1996) irá ter solo para formular suas concepções epistemológicas. Ambas as concepções (Critério de Demarcação e o Holismo) abrem caminho para uma concepção de ciência mais ligada às determinações humanas, e que, por isso mesmo, aberta também a valores e resoluções socialmente determinadas num devir histórico. Isso porque é o Homem que qualifica e justifica, segundo tais linhas de concepções, o que é científico ou não de forma dedutiva. Por isso, tal justificativa seria instável (Popper) e tal qualificação não está dissociada de um contexto semântico que como um todo teórico determina o que é cientificamente relevante ou não (Quine). O passo além de Kuhn foi entender que ambos as teorias citadas anteriormente se encaixam num contexto da ação social e histórica de se fazer ciência.

Ao Kuhn examinar a história da ciência identifica uma instabilidade muito maior do que se pensava, quebrando o mito de que a ciência seria o único ramo do conhecimento a ter um constante e ininterrupto progresso. Segundo esta concepção, anteriormente aceita, os antigos cientistas trariam contribuições aos novos, quando suas pesquisas eram comprovadas empiricamente. No entanto, ao ele pesquisar a diferença entre a física aristotélica e a física moderna, percebe uma ruptura e uma visão que desqualifica de forma aberta Aristóteles, como tendo se equivocado redondamente quando pensava a física, ao contrário de muitas outras áreas que pesquisou com excepcional maestria. Ele cita este novo campo de pesquisa da história da ciência, como sendo uma revolução muito relevante feita por vários outros pesquisadores que levariam a esta nova compreensão de como a ciência seria feita:

A mesma pesquisa histórica, que mostra as dificuldades para isolar invenções e descobertas individuais, dá margem a profundas dúvidas a respeito do processo cumulativo que se empregou para pensar como teriam se formado essas contribuições individuais à ciência.

O resultado de todas essas dúvidas e dificuldades foi uma revolução historiográfica no estudo da ciência, embora essa revolução ainda esteja em seus primeiros estágios. Os historiadores da ciência, gradualmente muitas vezes sem ser aperceberem completamente de que o estavam fazendo, começaram a se colocar novas espécies de questões e a traçar linhas diferentes, freqüentemente não-cumulativas, de desenvolvimento para as ciências10.

Nestas suas pesquisas de história da ciência identifica também outros casos destas rupturas, o que fortalece o argumento de Quine de que há toda uma concepção teórica anterior que justifica uma teoria e lhe dá sentido ou relevância. O que Kuhn percebeu neste estudo, é que a ruptura entre este corpo teórico e a aceitação de outro é muito mais freqüente e constante do que se supunha, indo por terra o conceito de progresso cumulativo da ciência.

A esta concepção teórica anterior Kuhn chamará de "paradigma". Este quando é aceito por uma determinada comunidade científica, torna-se o padrão de justificação das teorias que aparecerem, constituindo-se no que ele chamou de "Ciência Normal". Deste modo, o progresso ou acumulação de conhecimento se daria em conformidade com o modelo ou paradigma aceito por essa comunidade, e as teorias que se confronta com tais paradigmas são rejeitadas ou marginalizadas, ou taxadas como misticismo, ou irracionalidade pela Ciência Normal.

Por isso mesmo quem está inserido no interior deste tipo de perspectiva enxerga a sua ciência, e até o seu tempo, como sendo de "progresso" e que apresenta um constate "acúmulo de saber". Enquanto que as outras épocas ou pessoas, fora deste paradigma, seriam "obscurantistas" e "supersticiosas", como pensavam, por exemplo, os positivistas com relação às outras épocas.

Porém, quando uma Ciência Normal começa a apresentar muitas brechas a críticas, o que Kuhn chama de Anomalias, e a não mais dar conta de resolver às questões levantadas pelos testes e teorias novas, ocorreria uma revolução que romperia com o antigo paradigma da Ciência Normal até então aceita. Assim, se constituiria um outro paradigma que fundaria outra Ciência Normal e o acúmulo de saber no interior desta nova perspectiva continuaria até uma nova revolução. Posto em outras palavras, as Ciências Normais teriam um comportamento similar ao de toda e qualquer atividade humana: como a política, as artes, e outras atividades humanas. Ou seja, é uma atividade também sociológica e antropológica porque depende da aprovação de uma comunidade: a Comunidade Científica.

Por isso mesmo, a ciência dependeria de valores até mesmo externos à própria ciência, como a empatia, e preferências pessoais. Isto é, qualificativos que antes jamais se poderiam considerar como relevantes para o estabelecimento da objetividade científica. Por isso mesmo, a Argumentação retórica não pode ser mais considerada como sendo algo irrelevante, tanto para o estudo da ciência em si, quanto para a própria ciência, para que tenha consciência do seu verdadeiro funcionamento.

Por esta razão, o modo como se aceitaria uma teoria como relevante e posteriormente como novo paradigma, é revolucionário. Para uma comunidade científica se dá de modo similar a um tribunal, quando as peças do quebra-cabeças da investigação já não se encaixam mais com relação às provas que se apresentam. É então que se vê a necessidade de mudar de paradigmas.

Tal seria um jogo de competição de teorias buscando se afirmar ou sobreviver, de modo similar ao que ocorreria na natureza biológica segundo a teoria da seleção natural. Deste modo as teorias mais aptas e melhor estruturadas sobreviveriam, enquanto que as outras não atenderiam às necessidades dos momentos de crise e não se firmariam. Caindo: ou no esquecimento, ou ficando em um lugar marginal, até que se firmasse como alternativa para se tornar um outro paradigma num momento mais propício.

  1. A Possível Relação entre Perelman e Kuhn: a Teoria da Argumentação na Mudança de Paradigmas.

O texto de James Franklin apresenta duras críticas ás concepções de Ciência de Thomas Kuhn. O título do seu texto já é bastante acusativo: Irracionalismo de Thomas Kuhn. Não irei fazer uma análise detalhada deste texto, pois, não é o meu objetivo deste meu trabalho, mas há alguns pontos que achei que mereceria algum comentário.

Neste artigo o autor faz uma resenha crítica do livro lançado no ano 2000 por Steve Fuller: Thomas Kuhn: Uma História Filosófica para Nossos Tempos. São duas críticas principais de James Franklin que acho que vale a pena mencionar: a primeira, encontrada no próprio livro de Steve Fuller, de que Kuhn teria, por viver na época da guerra-fria, não levado em conta posições mais revolucionárias no plano político-social; e, a segunda crítica, do próprio Franklin, se refere ao irracionalismo do relativismo do que foi chamado de Construtivismo Social - que é a teoria da seleção natural de teorias por parte da Comunidade Científica na formação de novos paradigmas. Este Construtivismo Social, segundo Franklin, seria campeão numa "competição para escolher o pior argumento do mundo" 11.

Já que foi citado o termo "argumento" parece-me necessário uma análise de como o conceito de argumentação sofreu ao ser confundido com o termo "demonstração" no âmbito da ciência moderna. Para isso recorro a Perelman quem melhor colocou tal distinção nos últimos tempos, afirma ele:

Quando se trata de demonstrar uma proposição, basta indicar mediante quais procedimentos ele podes ser obtida como última expressão de uma seqüência dedutiva, cujos primeiros elementos são fornecidos por quem construiu o sistema axiomático dentro do qual se efetua a demonstração. De onde vêm esses elementos, sejam eles verdades impessoais, pensamentos divinos, resultados de experiência ou postulados peculiares ao autor, eis questões que ao lógico formalista considera alheias à sua disciplina. Mas, quando se trata de argumentar, de influenciar, por meio do discurso, a intensidade de adesão de um auditório a certas teses, já não é possível menosprezar completamente, considerando-as irrelevantes, as condições psíquicas e sociais sem as quais a argumentação ficaria sem objeto ou sem efeito. Pois toda argumentação visa à adesão dos espíritos, e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual12.

Nesta citação vemos a profunda diferença entre estes dois conceitos: Demonstração e Argumentação. O primeiro revela uma certa liberdade de criação lingüística, mas, ao mesmo tempo, a restrição exigida pela certeza e pela evidência. Já o segundo conceito de argumentação deve levar em conta fatores externos à própria formalização lingüística como o pensamento e as tendências do Auditório para que este possa aderir a este argumento. Ou seja, devem-se levar em conta juízos de valor. Perelman diz no início do seu Tratado da Argumentação:

A publicação de um tratado consagrado à argumentação e sua vinculação a uma velha tradição, a da retórica e da dialética gregas, constituem uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocínio, oriunda de Descartes, que marcou com seu cunho a filosofia ocidental dos três últimos séculos.

Com efeito, conquanto não passe pela cabeça de ninguém negar que o poder de deliberar e de argumentar seja um sinal distintivo do ser racional, faz três séculos que o estudo dos meios de prova utilizados para obter a adesão foi completamente descurado pelos lógicos e teóricos do conhecimento. Esse fato deveu-se ao que há de não-coersitivo nos argumentos que vêm ao apoio de uma tese. A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quando a solução necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo13.

O que se percebe nestas palavras é que de modo nenhum o conceito de racionalidade pode ser limitado ao conceito de evidência. Creio que seja exatamente este tipo de confusão que caracteriza as críticas de filósofos da ciência com tendência a um critério mais rígido de demarcação. Perelman deixa bem claro em suas análises que o fato de não ser certo, ou evidente um determinado modo de pensar, isso não significa de modo nenhum irracionalidade, mas sim um tipo de racionalidade que foi relegada a um segundo plano pela ciência moderna desde Descartes. Caberia aos novos estudiosos completar tal lacuna. Sobre isso acrescenta:

A lógica teve um brilhante desenvolvimento durante os cem últimos anos, quando, deixando de repisar velhas fórmulas, propô-se analisar os meios de prova efetivamente utilizados pelos matemáticos. A lógica formal moderna constituiu-se como o estudo dos meios de demonstração de seu campo, pois tudo quanto é ignorado pelos matemáticos é alheio à lógica formal. Os lógicos devem completar a teoria da demonstração assim obtida com uma teoria da argumentação. Procuraremos construí-la analisando os meios de prova usados pelas ciências humanas, o direito e a filosofia; examinaremos argumentações apresentadas pelos publicitários em seus jornais, pelos políticos em seus discursos, pelos advogados em seus arrazoados, pelos juízes em suas sentenças, pelos filósofos em seus tratados.

Nosso campo de estudos, que é imenso, ficou inculto durante séculos. Esperamos que nossos primeiros resultados incentivem outros pesquisadores a completá-los e a aperfeiçoá-los.

Por este projeto de estudo de Perelman vejo as afinidades entre Kuhn e Perelman como sendo muito mais profundas, não creio que se limitariam à mera análise dos argumentos da epistemologia de Kuhn, pois, como vimos há uma íntima relação entre este e a ampliação do conceito de racionalidade advogada pelo primeiro. A idéia de que uma concepção de ciência tem que em algum período ser aceita pela Comunidade Científica implica necessariamente que não é apenas a racionalidade do tipo demonstrativo que está em operação na aceitação de um paradigma, mas o mesmo tido de acordo existente entre o sujeito e o Auditório (no caso a Comunidade Científica). Ou seja, o tipo de acordo da racionalidade argumentativa. Por isso mesmo, como diz a epígrafe no início do trabalho os filósofos modernos fizeram uma indevida distinção entre juízos de valor e juízos de realidade.

Mesmo porque para Perelman não faz sentido qualquer tipo de resolução apenas individual, mesmo nas nossas deliberações íntimas é a algum tipo de Auditório que se refere. Sobre isso ele diz:

O acordo consigo mesmo é apenas um caso particular do acordo com os outros. Por isso, do nosso ponto de vista, é a análise da argumentação dirigida a outrem que nos fará compreender melhor a deliberação consigo mesmo, e não o inverso. 14

O Mundo Ocidental Moderno (Burguês) nos criou a idéia equivocada de uma individualidade mental ou social, e o transplantou ao mundo intelectual e científico, criando a falsa idéia de uma aquisição individual de verdades científicas, que se imporiam necessariamente a toda a Humanidade. Ou como diria Perelman: ao Auditório Universal.

Perelman vê neste conceito de que a racionalidade é também plasmada com o Auditório a necessidade de se estabelecer também diferentes tipos de Auditórios, que estaríamos consciente ou inconscientemente nos reportando. Seja nas argumentações corriqueiras: quando se reporta a um Auditório Particular (como nas conversas informais do dia a dia); seja nas argumentações de um grupo de especialistas: quando se reporta a um Auditório de Elite (Auditório que não tem a menor preocupação de se reportar a outro Auditório, ou ser interpelado por ele - é o caso de uma junta médica ou de perícia de técnicos); seja no discurso sério que tem pretensão de universalidade, como o discurso do filósofo, do político ou do cientista que se reportaria ao Auditório Universal.

Porém, é necessário destacar que por ser este Auditório Universal o tipo de auditório que pretende se reportar todas estas classes de pessoas, incluindo o cientista, cabe uma análise mais detalhada sobre a universalidade de tal Auditório Universal. Essa universalidade não significa de modo nenhum a necessidade de uma verdade absoluta. Perelman fala em verdades que são definidas como se fossem para a humanidade toda, mas que podem para um outro grupo de concepção ontológica diferente ser outra ou mesmo ser admitida outra verdade em outro momento. Sendo assim delimitado tanto por juízos de valor, quanto por juízos de realidade.

Vejo neste conceito de Auditório Universal algo muito esclarecedor do processo de construção de um paradigma e sua aceitação. Pois, todo aquele que formula teorias científicas levam, desde o início de sua nova teoria em consideração o Auditório e toda a sua tendência em aceitar determinados tipos de provas, ou como dizia Aristóteles sobre o que seria necessário tanto para convencer quanto para comover tal Auditório: apelar tanto por provas técnicas, quanto por coisas que fossem em direção ao éthos (eqos)(uma junção de valores e costumes comuns a uma sociedade que lhe confere uma tendência ou recusa de certas argumentações) do Auditório com a qual deve se confrontar ou contribuir. Quanto mais forte estiver este éthos mais impenetrável estará para novas idéias e hipóteses. Percebo que no caso do Thomas Kuhn é este éthos que determina até mesmo o valor das provas técnicas para a ciência. Mas todo este combate de idéias se dá num e mesmo método: o Argumentativo.

  1. Considerações Finais.

Após fazer um inventário dos critérios defendidos pelos diferentes tipos de epistemologias desde o Positivismo Lógico, passando pelos críticos de seus critérios baseados na Indução, como Popper que abriu a possibilidade de uma delimitação puramente dedutiva e crítica da ciência. Posteriormente analisamos o modo de Quine conceber a delimitação do conhecimento científico. Este entende tal delimitação como sendo determinada como um todo teórico único (como um corpo) que interpretaria todas as teorias no seu interior. Após estas aberturas na epistemologia à dedução e à um conceito de um corpo teórico que determinasse todos os conceitos da linguagem científica, possibilitou, ao Kuhn estudar a história das ciências, que ele visualizasse que tais corpos teóricos seriam descartados freqüentemente por revoluções similares ao que ocorre em outras áreas das Ciências humanas, e das artes. Isso porque as determinações dos critérios de cientificidade são determinados pelas Comunidades Científicas que acolhem ou recusam as hipóteses.

Isso abre a possibilidade de se entender à relevância para a ciência de outro tipo de racionalidade, desprezada por três séculos: o da Racionalidade argumentativa ou Retórica. Por ser o principal resgatador desse tipo de racionalidade na atualidade, as contribuições de Perelman podem ser muito esclarecedoras, no sentido de apontar a relação existente entre aquele que propõe a teoria (orador) e o seu auditório (Comunidade Científica) com o seu éthos ou tendência, e revelar a complexidade de tal relação e os seus acordos.

Quanto ao meu amigo eu responderia: "Estudo literatura sim, afinal, no princípio não era a palavra"?

  1. Referências Bibliográficas:

CARNAP, Rudolf. Pseudoproblemas na Filosofia. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Coleção Os Pensadores).

FRANKLIN, James. Thomas Kuhn's Irrationalism. www.newcriterion.com 2000.

FULLER, Steve. Thomas Kuhn: A Philosophical History for Our Times, University of Chicago Press, 2000.

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

______________. The Copernican Revolution, Cambridge, Mass. 1957.

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

______________. Tratado da Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2002 (Coleção Justiça e Direito).

QUINE, Norman. Dois Dogmas do Empirismo. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Coleção Os Pensadores).

SCHLICK, Moritz. O Fundamento do Conhecimento. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Coleção Os Pensadores).

1 PERELMAN, Chaïm. 1997 p. 39 Palestra na reunião do Instituto Internacional de Filosofia em Oxford, 1962 - Resposta a A. J. Ayer.

2 Idem p.343 Cf. Thomas. S. Kuhn. The Copernican Revolution, Cambridge, Mass. 1957, p. 130.

3 CARNAP, Rudolf. 1980, p.168.

4 Idem, p. 168.

5 SCHLICK, M. 1980 p. 95.

6 Idem, p. 96.

7 POPPER. 1980 p. 70.

8 QUINE, W. O. 1980, p. 231.

9 Idem, p. 232.

10 KUHN, Thomas. 2001 p. 21-22.

11 FRANKLIN, James. 2000

12 PERELMAN, Chaïm. 2002 p.16.

13 Idem. p.1.

14 PERELMAN, Chaïm. 2002 p.46.


Autor: Edilson Trigo


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