Carnaval da Sapucaí -uma propriedade alheia
Carnaval da Sapucaí uma propriedade alheia
O carnaval brasileiro, de múltiplas facetas, espraia-se em todas as direções. Talvez seja o traço mais marcante da nossa unidade cultural. Do Amapá ao Rio Grande do Sul, da Paraíba ao Acre, durante alguns dias, as pessoas saem às ruas, para dar forma a um impulso libertário, ao qual se aplica bem o nome de carnavalidade.
Não se trata isso talvez nem fosse necessário dizer de um impulso peculiar das gentes brasileiras. A carnavalidade assim entendido o desejo impenitente de romper com a banda coercitiva do contrato social, de escapar ao assédio das normas e ao cerco das convenções representa ser, antes de tudo, um atributo humano, uma espécie de humor essencial da raça que, em última análise, parece destilar, na intimidade de cada um de nós, a nostalgia do paraíso perdido.
A partir desses contornos, creio já ser possível pretender que a carnavalidade não configura um jorro sazonal, mas uma secreção constante, diuturna, que, ao estímulo de sugestões orquestradas, costuma coagular nesta época do ano. A esse coágulo prolífico, que contagia e arrebata, dá-se o nome de carnaval.
Em suas manifestações mais puras, isto é, mais fieis ao desejo de escapar à regulação social, e retornar ao regaço da amoralidade parasidíaca, o carnaval terá sempre a mesma feição ingênua, em qualquer parte do planeta.
Nesse patamar de consideração, pouco espaço sobra às adjetivações gentílicas. Sentido rarefeito, portanto, teriam aí expressões como carnaval brasileiro, chinês ou turco.
O carnaval começa a nacionalizar-se, à proporção que se desfiguram as suas feições genéricas, vale dizer, à proporção que o lirismo inconsequente dos foliões solitários é absorvido por manifestações coletivas, padronizadas.
Fenômeno instigante esse da padronização da alegria. Fácil de dizer, no entanto, de nada valerá, se não devidamente concatenado.
O primeiro nexo aflora da percepção de que são poucos os que se atrevem a sair sozinhos por aí, vestindo uma camisa listrada, levando um canivete no cinto e um pandeiro na mão; de chupeta na boca, dizendo mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar. Esse tipo de carnaval, autônomo e solitário, imortalizado em 1937 por Assis Valente, no samba Camisa Listrada, exige qualificações especiais, exige talento, coragem, e muita independência.
O segundo nexo chama à consideração o fato de que todos, talentosos ou não, corajosos ou não, independentes ou não, aspiram a alegrar-se com a ilusão da liberdade carnavalesca.
E não é de outra fonte, senão dessa aspiração, que surgem os blocos de rua e os cordões. Os blocos e os cordões acolhem gregos e troianos. Ali, conciliam-se as diferenças individuais. É verdade que, no interior das agremiações, a personalidade do folião se dilui um pouco, em favor da uniformização dos movimentos e dos trajes. Em compensação, na leveza do anonimato, o folião consegue apropriar o seu quinhão de fantasia.
Mas dura pouco o efeito conciliador dos blocos e dos cordões. O velho impulso libertário logo percebe o engodo da alegria padronizada, e parte para exigências mais ousadas.
É quando irrompem os grandes aglomerados das escolas de samba.
Rutilas, feéricas, esplendorosas, resplandecentes, apoteóticas, as escolas de samba chegam credenciadas a, finalmente, oferecer ao folião idealista o elixir definitivo da fugaz libertação.
A expectativa é grande. A primeira escola vai desfilar. Na cabeceira da Sapucaí, tudo ainda corre de improviso. As pessoas conversam, procuram cada uma o seu lugar, e riem ao descompasso das contingências. Os lideres gesticulam, orientam os carros, aprumam as alegorias. Até que uma sirena grita o primeiro sinal de ordem: Atenção! Terminou o recreio. A partir de agora a alegria passa ao comando do puxador de samba e do ribombar das baterias.
Os foliões idealistas, aqueles que esperavam levitar na direção de seus sonhos evasivos, logo percebem que, ao invés dos descampados e das amplitudes requeridos pelo voo da imaginação, deram-lhes um corredor inarredável, um retângulo pétreo, ladeado por arquibancadas e camarotes de concreto.
Mas não há tempo para perceber mais nada. A escola começa a se deslocar. É preciso seguir a cadência, ater-se o alinhamento. É proibido atravessar o samba.
E assim aplicados, lá se vão os nossos foliões idealistas, impedidos de perceber que já não se trata de padronizar, mas de compactar a alegria padronizada.
Compactação que, no caso, significa ingerência de poder na seara do carnaval.
E o poder se insinua por toda parte, incisivo, intransigente, seja na hierarquização dos espaços, seja na classificação das platéias. O poder é uma vontade obsedante, onipresente, uma voz que não cessa de doutrinar aos ouvidos dos foliões: Vocês podem sonhar, vocês podem alegrar-se à vontade, mas terão que fazê-lo aqui, compactados, nos limites deste retângulo, em tempo rigorosamente cronometrado, conforme o regulamento dos desfiles, ao alcance das lentes da televisão, das autoridades, e de alguns espectadores anônimos, que estão logo ali adiante simbolizando o povo. Entendam de uma vez por todas que nos limites deste domínio, o carnaval não pertence ao povo. Aqui, o carnaval é propriedade nossa. Se isto não lhes agrada, se vocês insistem com essa bobagem de escapar aos grilhões dos condicionamentos sociais, tenham a bondade de retirar-se. Caiam fora, voltem pra casa, e façam como todo mundo: liguem a TV, e agarrem-se às mulheres lindas, não despreguem os olhos das mulheres lindas, pois elas, em sua colossal nudez, representam ser, além da nossa melhor mercadoria, a única válvula de escape para todos os sonhos, carnavalescos, ou não.
Autor: Osorio De Vasconcellos
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