A TRAGICIDADE EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS



O presente artigo tem como tema A tragicidade em Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis. Nesta obra a tragédia se manifesta de várias maneiras, porém aqui procuramos nos deter na sucessão de fracassos que permearam a trajetória de vida do protagonista Brás Cubas contribuindo para que este chegasse ao final de sua vida sentindo-se um autêntico derrotado. Fizemos uma abordagem das diversas definições que a tragédia recebe visando uma breve explanação sobre os conceitos que a tragédia recebeu desde a Grécia Antiga à atualidade. Acrescentamos ainda algumas conceptualizações de tragédia na visão de Aristóteles e, posteriormente, na visão de Sófocles e Homero. Palavras-chave: Tragédia. Machado de Assis. Ironia.

INTRODUÇÃO

Optamos por trabalhar com a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas devido a tragédia achar-se habilmente trabalhada neste romance. Tivemos como ponto de partida a compreensão dos diversos conceitos para posteriormente identificá-los na obra. Nosso estudo se faz importante porque aborda uma compreensão sobre conceitos trágicos possibilitando uma melhor compreensão da obra e do fazer literário de Machado de Assis.

Após identificar de que forma a tragédia se faz presente no discurso machadiano constatamos o uso da ironia como forma de expressar a tragédia vivida nesta obra pelo protagonista Brás Cubas, o qual ao fazer uma retrospectiva de toda a sua vida percebe que não conseguiu ser bem sucedido na política, no amor, na família, no emplastro que criou enfim, em nada obteve o sucesso esperado. É dessa forma que a tragédia se apresenta na obra, através dos pontos negativos, da falta de êxito na vida do personagem principal.

A conclusão à qual chegamos foi que na visão de Machado e na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas a tragicidade se faz presente através da ironia que se caracteriza pelo humor, porém trata-se de humor que tem não o objetivo de fazer rir, mas de criticar certas mazelas da sociedade.

1. A tragicidade:

A palavra tragédia, oriunda de tragicidade, normalmente é associada a algo catastrófico, destruidor e na literatura costumamos conceituar tragédia como uma história que apresenta um final triste. Alguns consideram que qualquer história com um final triste é tragédia, já outros defendem que para uma obra ser considerada trágica deve obedecer a uma série de requisitos.

Na Grécia Antiga, onde a tragédia surgiu, era considerada algo artístico, elevado; envolvia um personagem e uma instância superior como deuses, destino ou sociedade.

Para Aristóteles a tragédia tinha um caráter mimético, pois consistia numa representação imitadora de uma ação séria, tinha um poder catártico, ou seja, provocava a purgação dos sentimentos dos expectadores.

(...) Assistindo as terríveis dilacerações do herói trágico, sensibilizando-se com o horror que a vida dele se tornara, sentindo uma terrível compaixão pelo infausto que o destino reservara ao herói, o público deveria passar por uma espécie de exorcismo coletivo. (FARIAS, 2006)

Este filósofo defendia que ao presenciar cenas de sofrimento alheio as pessoas externalizariam os seus passando a se sentir mais aliviadas, daí o motivo dos humanos apreciarem assistir ao sofrimento dramatizado. Há quem considere que Aristóteles via a tragédia dessa maneira devido ao fato dele ter sido médico, o que contribuiu para que ele entendesse a encenação dramática como um remédio para a alma, ajudando a platéia a expelir suas próprias dores e sofrimentos ao assistir a encenação. Aristóteles não se preocupou em formular conceitos sobre o trágico, porém concluiu que provocar a catarse é a intencionalidade maior (ou pelo menos deve ser) da tragédia.

No espetáculo teatral todos os acontecimentos giram em torno do herói; com base nisso Homero vê a tragédia não como algo que provoca piedade no expectador, mas como uma forma de exaltar a bravura do herói e não provocar a compaixão ou qualquer outro sentimento piedoso no público.

Os três maiores tragediógrafos da literatura grega foram Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Sófocles, em Édipo Rei, usa a tragédia para levantar vários questionamentos filosóficos e estimular no leitor/expectador reflexões acerca do destino de cada um. Um exemplo de questionamento filosófico trabalhado nessa obra é a contestação do quanto se deve acreditar nos sentidos. Em uma fala do protagonista: "Tirésias mesmo cego enxergastes", é comprovado como o empirismo não é mais visto como única fonte de coleta de conhecimentos, outro fato dentro da história que demonstra isso é que Édipo, que se achava o grande solucionador de mistérios, só tomou conhecimento do mistério que rondou sua vida depois de cego. Será mesmo que nossa vida, ao iniciar-se, já está pré-definidamente traçada?

Até que ponto devemos/podemos lutar contra nosso destino? Sófocles considera que o autoconhecimento é a ferramenta fundamental para o homem lutar contra seu destino e adquirir autonomia para controlar sua vida.

A partir do autoconhecimento, é possível encontrar forças em si mesmo e, assim, não será mais necessário que a cidade seja fechada, pois quando o homem conhece a si mesmo, ele entende o homem, e,portanto, aceita os xenos (estrangeiro), passando a ter o novo conceito de humanidade. (FARIAS, 2006)

Para Sófocles o autoconhecimento se manifesta, metaforicamente, quando Édipo Rei fura os olhos com um alfinete tirado da roupa da mãe/esposa passando então a compreender tudo o que aconteceu.

1. 1 A tragédia no discurso machadiano:

Em Machado de Assis, a tragédia se manifesta através do humor (atrelado ao pessimismo, à amargura, ao ódio do gênero humano, à irritação que lhe causava o espetáculo da vida) e da ironia. Normalmente este escritor apresenta uma visão pessimista da vida, tratando das amarguras, da hipocrisia, do ódio, enfim, de sentimentos negativos do ser humano; o humor, no discurso machadiano, tem uma significação social. Para ele o homem não exerce domínio sobre sua vida, pois esta é determinada por fatores externos e as boas ações escondem sempre alguma intenção impura. Concluímos, portanto, que para Machado de Assis o trágico é manifestado através da ironia.

1.2 A tragicidade na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas

A obra Memórias Póstumas de Brás Cubas faz parte do Realismo, movimento literário surgido no século XIX e procura retratar a realidade tal qual ela é. Trata da análise de características do homem, o qual é dotado de sentimentos mesquinhos, gananciosos e carrega constantemente o tédio e a dor consigo, segundo o ponto de vista realista.

O Realismo retrata a vida contemporânea. Sua preocupação é com homens e mulheres, emoções e temperamentos, sucessos e fracassos da vida do momento. Esse senso do contemporâneo é essencial ao temperamento realista, do mesmo modo que o romântico se volta para o passado ou para o futuro. Ele encara o presente, nas minas, nos cortiços, nas cidades, nas fábricas, na política, nos negócios, nas relações conjugais, etc.Qualquer motivo de conflito do homem com seu ambiente ou circunstantes é assunto para o realista. (COUTINHO, 2002,10)

Ao analisar esta obra notamos a presença da tragicidade com certo tom de ironia nos dramas vivenciamos por Brás Cubas, pois este apresenta durante toda a narrativa uma visão pessimista da vida, da sociedade e das pessoas próximas a ele. A ironia se disfarça de tragédia logo no inicio da obra quando o defunto Brás Cubas justifica que a causa da sua morte foi o emplastro, invenção criada por ele a fim de curar a melancolia da humanidade; e a primeira cobaia de sua experiência foi justamente ele. A sua grande invenção que poderia tê-lo tornado famoso, um grande nome da medicina teve como resultado sua própria morte.

Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanho e tão profundos me influiu se enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplastro Brás Cubas. (...) Assim a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos - amor da glória. (Memórias Póstumas de Brás Cubas, p.12)

Na obra Memórias Póstumas de Cubas o protagonista conta toda a sua história de vida destacando os fatos que mais lhe marcaram bem como o motivo de sua morte. Trata-se de um narrador onisciente que manifesta as tragédias de sua vida ironizando os acontecimentos e as pessoas.

1. As intenções da tragicidade

Em Édipo Rei a tragédia é utilizada para levantar críticas filosóficas que terminam com uma lição de moral compatível com os interesses morais da época tratada. Um fato que demonstra isso é que Édipo, o qual se considerava um decifrador de mistérios, só descobriu o grande mistério que atormentava sua vida quando ficou cego. Inclusive, notamos aqui uma ironia que acompanha a tragicidade da história.

1.1A tragédia em Machado de Assis

A tragédia em Machado de Assis está constantemente atrelada à ironia, a qual se manifesta, algumas vezes, através do humor e é utilizada por Machado para criticar aspectos da sociedade como o preconceito, a ganância, a hipocrisia. Podemos perceber a ironia expressa no trecho onde Brás Cubas vai pedir Virgília em casamento ao passo que seu relógio cai no chão e ele se depara com seu antigo amor: Marcela. Esta aparece doente com o rosto repleto de bexiga (sinais de varíola).

Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher cujo rosto amarelo e bexiguento não se distinguia logo. Deveria ter sido bonita, mas a doença a deixara com marcas terríveis. Não a conheci logo, era difícil; ela, porém, conheceu-me apenas lhe dirigi a palavra. Era Marcela. ( Memórias Póstumas de Brás Cubas, p. 19)

Esta passagem da obra é uma simbologia manifestada pela queda do relógio, ou seja, às vésperas de viver um novo amor Brás Cubas volta no tempo e revê o amor da passado que aparece desfigurado pelo sofrimento.

2.2. As intenções da tragédia em Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Na obra em análise a tragicidade tem a intenção de ironizar certos fatos da vida e, conseqüentemente, levar o leitor a refletir sobre os possíveis dramas existenciais da vida quando chegamos à velhice e nesta obra temos as respostas: melancolia, hipocondria (estado nervoso que torna o doente triste, com desânimo para enfrentar a vida) bem como o medo da morte. Também fazem parte da velhice as recordações dos bons e maus momentos analisando sobre o que realmente valeu à pena e o que não valeu. É exatamente sobre isso que Brás Cubas relata no último capítulo:

Este último capítulo é todo das negativas. Não alcancei a celebridade do emplastro, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas:__Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (Memórias póstumas de Brás Cubas, p.152)

Indiretamente o leitor é induzido a refletir sobre estas temáticas, pois todos esses posicionamentos diante da vida adotados pelo personagem sempre produzem identificação com a vida de cada leitor. Brás Cubas é o personagem que representa o juiz inflexível e irônico de si mesmo e da humanidade, que nos faz refletir sobre a vida e a morte, sempre contemporâneo. Portanto, a intenção da tragédia em Memórias Póstumas de Brás Cubas é levantar críticas acerca de temáticas sociais.

Durante o desenvolvimento do presente trabalho percebemos os diferentes conceitos que a tragédia recebeu na antiguidade grega, na visão de Aristóteles, Homero, Sófocles em Édipo Rei, como se caracteriza a tragédia em Machado de Assis, na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas. Com base no que foi exposto, conclui-se que a tragédia, independente do conceito, teve em todas as temáticas abordadas a mesma intencionalidade: expor críticas, tocar as emoções do platéia(no caso da visão de Aristóteles sobre a catarse na encenação dramática) ou do leitor, levantar questionamentos filosóficos induzindo o indivíduo a refletir sobre variados assuntos da vida; o que variou apenas foi o contexto e a época.

No presente artigo nos propomos a identificar traços da tragédia e suas intenções Memórias Póstumas de Brás Cubas do autor Realista Machado de Assis. Nesta obra a tragédia se manifesta de diferentes maneiras, sobretudo, no personagem protagonista Brás Cubas, um defunto autor que faz uma retrospectiva de toda a sua vida marcada por pessimismo e revestida por uma sucessão de fracassos. Podemos constatar isso em todas as dimensões de vida do personagem: no amor, na família, na política, na tentativa de criar o emplastro, dentre outras

Fizemos este estudo com base nos diversos conceitos de tragédia abordados por Aristóteles, Homero, Sófocles em sua obra Édipo Rei e na visão machadiana explícita na obra.

Chegamos à conclusão de que em Memórias Póstumas de Brás Cubas a tragicidade é manifestada através da ironia e em certos momentos adquire certo tom de humor, não como objetivo de fazer rir, mas que induz à reflexão, utilizado para levantar vários questionamentos filosóficos sobre dramas existenciais, reflexões sobre a morte, recordações da velhice enfim, assuntos inerentes a todos os seres humanos. O próprio Brás Cubas, defunto autor da história, apresenta-se constantemente irônico, porém sua ironia é uma forma de expurgar o pessimismo presente em sua pessoa e isso fica explícito no final do livro quando ele afirma que não teve filhos, não casou, não conseguiu tornar-se político, não obteve êxito na sua tentativa de tornar-se celebridade através do emplastro que inventou.

Após tudo isso Brás Cubas ironiza toda a sua vida concluindo que a ausência destes êxitos contribuiu para que ele não tivesse a infelicidade de comprar o pão com o suor de seu rosto. E por fim ele afirma que ficou quite com a vida, uma vez que esta não lhe propiciou grandes coisas, porém ele também não produziu, não deu grandes contribuições a ela.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda, 2007.

FARIAS, Alyere. Prof. Dr. José Helder Pinheiro. (Orientador) Universidade Federal de Campina Grande-UFPB. Publicado em 2006. Disponível em: http:www.letrasvirtual.com.br . Acesso em: 04 de mai. 2009

COUTINHO, Massaud. A análise literária. 11ª Ed. São Paulo: cultrix, 1999


Autor: Licilange Alves


Artigos Relacionados


Machado De Assis: MemÓrias PÓstumas De BrÁs Cubas Na VisÃo De Roberto Schwarz

A Classe Dos Clássicos

As Principais Semelhanças E Diferenças Entre O Personagem Brás Cubas, Saulo De Tarso E O Apóstolo Paulo

A Santa Casa De Misericórdia De Santos

A Novidade Literária Machadiana Assentada Na Personagem Brás Cubas

O Realismo E As Artes

Resenha Do Filme 'memórias Póstumas De Brás Cubas'