Socio-análise de ''O espelho'' (Machado de Assis)



Socio-análise de "O espelho" (Machado de Assis)

Mayara S. Nascimento

Departamento de Ciências Sociais - UFS

"O espelho (Esboço de uma teoria da alma humana)", de Machado de Assis, faz parte do volume Papéis Avulsos, livro publicado em 1982.

Refletindo sobre o indivíduo e sua alma, abordando as relações do homem consigo mesmo, porém enraizado em um solo sócio-cultural determinado. Ou seja, o conto ajuda-nos a perceber que o ser humano consiste em um corpo e vive em sociedade.

Busca compreender os mecanismos que comandam as ações humanas, sejam elas de natureza espiritual ou decorrentes da ação que o meio social exerce sobre cada indivíduo.

Seus personagens estão entre a burguesia que vive de acordo com o convencionalismo da época, Machado desmascara o jogo das relações sociais, enfatizando o contraste entre essência e aparência.

A narrativa gira em torno de um diálogo entre amigos que estão reunidos para discutirem "assuntos de alta transcendência", no qual um deles, Jacobina, formula uma teoria de duplicação da alma. Afirma que não há uma só alma, mas duas almas nos homens: a exterior e a interior. A alma exterior poderia ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto...

"Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...".

O autor inicia narrando o conto, depois possibilita a Jacobina tomar o lugar dele na narrativa. A partir daí, Jacobina propõe narrar um episódio dos seus vinte e cinco anos de idade, com o intuito de explicar a sua teoria.

Sua historia parte de quando Jacobina era pobre e foi nomeado alferes da guarda nacional. Sabia que a partir desse acontecimento sua vida iria mudar completamente. Passou então, a ser elogiado e admirado por uns, e invejado por outros. Assume um lugar privilegiado na família, é o centro das atenções de todos.

Já no início de seu relato, a expectativa da representatividade de um papel social é marcante: "Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura".

Foi convidado por sua madrinha para passar alguns dias em seu sitio no interior da cidade onde morava:

"E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda província não havia outro que me pusesse o pé adiante".

A fonte grupal, externa e posteriormente introjetada da renomeação, insinua-se de forma sutil: a mudança de status implica a mudança de nome. A vivência na fazenda será decisiva para a transformação de Joãozinho para alferes; nesse espaço, a "voz" do outro complementa e condensa o "olhar" desse outro, ocupando um papel de relevo na constituição da imagem do corpo e da imagem que Jacobina irá construir de si mesmo.

É a situação assegurada pelas conquistas sociais e materiais que permitem a um indivíduo entregar-se a relatos pessoais tão repletos de desejos, e que podem, repentinamente, deixar entrever a existência de uma alma interior.

Rodeado de mimos vindos de sua madrinha, teve no seu quarto a melhor peça da casa "o espelho". É essa peça em que Jacobina irá descobrir mais tarde a sua verdadeira identidade diante das novas situações e da nova forma de vida.

Uma pessoa enferma fez com que a madrinha de Jacobina deixasse-o sozinho no sítio. Nos primeiros dias foi tranqüilo, pois tinham escravos que o serviam, mais com a fuga de todos, Jacobina via-se realmente isolado. Sempre a espera que alguém chegasse, começou a escrever artigos.

Quando entreva no seu quarto via aquele espelho, mas nunca teve a coragem de ficar frente a ele, até que um dia, quando o tédio já tinha tomado-o viu-se frente a ele. Era uma imagem fusca, sem nitidez:

"Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento".

Veio na cabeça então de vestir a farda de alferes:

"Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior (ASSIS, 1959)"

Enfim, Jacobina revela que descobriu a sua verdadeira identidade.

Pode-se aproximar tal conto à visão pela qual Rousseau tinha do homem em sociedade: "O homem da sociedade está todo inteiro na sua máscara. Não estando quase nunca em si mesmo, quando está se acha estranho e mal à vontade. O que é, não é nada, o que parece, é tudo para ele" (ROUSSEU, pág. 207).

A boa socialização implicaria em um processo de construção do eu autônomo, não submetido à tirania que representa, aos olhos de Rousseau, a subserviência à opinião dos outros, deformada por paixões anti-naturais, como, por exemplo, a vaidade, ou congêneres: ambição, egoísmo, luxúria.

O espelho funciona como um jogo do eu/outro. Pelo reflexo do espelho a imagem refletida olha para o eu se tornando o outro que olha para o eu.

No conto se assiste à formação da auto-imagem e da autoconsciência da Jacobina não de dentro para fora, mas com suas palavras "de fora para dentro", a partir das opiniões alheias. Em Machado, Jacobina ao ver-se só, numa fazenda estranha e sem a farda costumeira de alferes, perde seu reflexo no espelho: despojado de alma que nele reflita, sua imagem é mera aparência externa e, retirada a farda, nada permanece.

Permite-nos concluir que as questões mencionas refletem até hoje na atualidade: ambigüidade, mascaração, encontro com o próprio "eu".

Ao final do conto, Machado deixou um sentido de inacabado. Porém, revela-se concretamente que o conto fala da duplicidade e ambigüidade da alma humana, revela que nada está acabado.

Referência Bibliográfica

ASSIS, Machado de. "O espelho (Esboço de uma teoria da alma humana)". RJ: Aguilar, 1994.

ROUSSEU, J. J. "O Emílio". Tradução de Sérgio Milliet. SP: Difel, 1960.


Autor: Mayara Silva Nascimento


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