O herói.



(Por Jackson Fernandes Filgueiras;Publicado originalmente em http://artigosecronicas.blogsome.com)

Ele estudou, se qualificou, se informou sobre o que realmente importava.

Com base nos seus conhecimentos, chegou a achar que tinha a solução para os problemas do seu povo. E tentou solucioná-los.

Primeiro, como servidor público. Trabalhou em algumas repartições ali mesmo no município em que nascera. Sempre dava o melhor de si.

No entanto, não parecia que estava alcançando o seu objetivo. Quer dizer, tinha certeza de que era competente, e que fazia o que era necessário. Mas não conseguia agradar ao seu povo. Chovia reclamações. Ninguém usava da palavra para elogiá-lo  não que estivesse atrás de elogios. Mas o fato é que não estava satisfazendo ao seu povo, e isso o transtornava.

Amargurado porque não conseguia uma convivência tranquila com seus concidadãos, e porque era testemunha de tanta bandalheira no governo, resolveu entrar para a política: deu com os burros nágua.

Primeiro, a filiação em um partido político. Qual deles? Ora, é óbvio: o partido mais sintonizado com a satisfação das necessidades mais básicas do povo. Mas do povão mesmo. Aí começou a via crucis. Puxa vida, todos os partidos, mas todos mesmos, têm como objetivo a satisfação das necessidades do povo; todos têm como compromisso a erradicação da pobreza e do analfabetismo. Todos têm o compromisso registrado em seus estatutos de promover a justiça social. Não dá para entender como ainda não conseguiu-se isso.

Que fazer? Diante dessa constatação, inevitável a depressão. Puxa vida! Esses nossos representantes são mesmo hipócritas. Não respeitam os estatutos de seus partidos políticos. Alguém tem que denunciar isso.

Alguém, quem?

Alguém, ora.

Só se for você. Não é você que quer salvar o seu povo da miséria e da ignorância?

Ora, não são todos os partidos?

Você já não percebeu que os políticos não respeitam os estatutos dos partidos? Não chegou à constatação de que alguém precisa denunciar essa bandalheira? Então, é você.

Eu? Mas eu preciso me candidatar.

Então! Se candidate, e denuncie essa falta de respeito.

Ma como eu vou me candidatar se vou denunciar a falta de respeito dos políticos? Se fizer isso, ninguém vai aceitar minha filiação.

Se filie a um dos partidos, e depois denuncie os outros.

E se no partido que eu me filiar também tiver desse tipo de expediente?

Aí você denuncia lá também.

Vai ser difícil.

Você é homem ou não?

Filiou-se. Denunciou a hipocrisia. Fez dela sua bandeira.

Nem seus parentes votaram nele.

Pior. Foi processado por calúnia. Fez sua campanha com seus próprios recursos (magros), sem receber doações de quem quer que fosse; mas mesmo assim, suas contas foram rejeitadas pela Justiça Eleitoral.

Como isso foi acontecer? Sei lá.

O fato é que se tornou inelegível. E por ter sido declarado inelegível, perdeu o cargo público.

Desempregado, antipatizado, não conseguia emprego na sua terra.

Foi comer o pão que o diabo amassou em uma de nossas metrópoles. Lá, era esmagado por várias forças convergentes: o preconceito em relação às suas origens provincianas, a saudade da sua terra e do seu povo, a remuneração aviltante, as humilhações na empresa.

Mas ele era  e é  persistente.

Continuou aprendendo, dentro das condições do momento.

Chegou à conclusão que, apesar de todo seu cabedal, não conseguia se expressar direito.

Então, sacrificando o parco descanso dos domingos, fez cursos para aprender a falar em público.

E surgiu um dos primeiros conflitos de consciência. É que agora ele conseguia falar igual àqueles a quem tanto ele criticava.

Será que tinha se transformado em um deles?

Não. Definitivamente não. Ele é um homem de caráter.

Agora, tinha condições de transmitir suas ideias.

E agora iria ajudar o seu povo  afinal, se fora tão apedrejado foi porque não o entenderam, e quem o havia entendido queria destruí-lo.

Passou um tempo trabalhando duro e estudando oratória, expressão corporal, fazendo análise.

Como era muito inteligente e muito preparado, com o aprendizado da metrópole  oratória, expressão corporal e outras coisinhas  começou a progredir no trabalho.

Descobriu que algumas pessoas que antes o desprezavam agora o admiravam. Lógico, porque agora ele sabia expressar o que sentia.

Tomou gosto pela coisa  quer dizer, lidar com pessoas, convencê-las de que suas ideias eram boas. Convencê-las enfim.

Percebeu (ou alguém lhe disse) que convencer as pessoas é política. E decidiu que agora tinha dois bons motivos para voltar à atividade política: ajudar as pessoas, e exercer a arte do convencimento. Argumentar com as pessoas, até conseguir sua anuência, passou a lhe dar uma satisfação muito grande  não sei se pela serotonina ou pela testostesterona.

Quando achou que havia guardado boas economias, voltou à sua terra. Havia-se preparado para a curiosidade, para a indiferença, para o estranhamento, e até para a hostilidade; mas mesmo assim não foi fácil. Contudo, ele era perseverante.

Com suas habilidades de bem sucedido homem de negócio, conseguiu paulatinamente conquistar os seus concidadãos. Pacientemente, continuou com suas atividades de despachante e corretor.

Não foi fácil, mas conseguiu convencer aos dirigentes do comitê municipal de um dos partidos com representação no seu município. Mesmo assim, ainda lhe restava algum dinheiro, depois de tão dura empreitada.

Que fazer agora?

Demonstrar que sua candidatura seria indispensável para o partido.

E como conseguir isso?

Havia de traçar uma estratégia bem eficiente, pois os interesses individuais pesam mais que os coletivos, já o sabia há tempos.

E os interesses individuais dos mais poderosos são inexpugnáveis.

Ok. Ok. Mas e aí? O que vai ser?

O mais lógico é diminuir o número de poderosos.

Tá. Perfeito. Mas como?

O povo simples do interior  no mundo inteiro  foi acumulando sabedoria. Como não havia condições de fazer faculdade, guardava como verdadeiros tesouros os ensinamentos dos antepassados (e são tesouros, mesmo).

Argh! Que besteira! Que que isso significa?

Significa que o povo simples da minha cidadezinha pobre, onde Judas perdeu as botas, me deixou muitas lições. Agora, eu só preciso escolher quais os ensinamentos me serão mais úteis em cada momento.

Que besteira! Estamos falando em política. Não essa conversinha de madames. É briga de foice!

Eu sei. Sabe uma das coisas que os velhos de meu lugar gostam de dizer?

Não sei, e acho que não quero saber.

Que perfeito só Deus.

Deus? Isso existe?

Os agnósticos atestam que não há provas suficientes da sua existência.

Pois então?

Então? Não existe ninguém perfeito.

Até as pedras sabem disso. E o que que isso tem a ver com a disputa política?

Todo mundo tem algo a esconder.

Tá. Isso é de uma banalidade pueril. E aí?

E aí que, se todo mundo tem seus podres, urge descobrir quais são os podres mais podres; mais constrangedores.

Chantagem, é isso?

Argumentação. Convencimento. Diplomacia.

F.d.p.!

Quem gosta de jogar conversa fora não tem dificuldade para conseguir conhecer os segredos mais secretos (olha o pleonasmo). É só juntar as peças do quebra-cabeça. No início parece não fazer sentido, mas o jogo de xadrez também não faz (para mim).

O fato é que aquele fiscal de rendas ambicioso desistiu de se candidatar. O médico do postinho de saúde também.

Não dá pra saber quais foram os expedientes, mas sua candidatura foi sugerida pelo cacique mais influente da região.

Medo?

Sei lá!

Mas seu nome foi aprovado na convenção.

Agora, a vida real: tantos anos fora, tanta coisa nova, tanta gente nova. Como convencer o povo que era a melhor proposta?

É. Como?

Chamar a atenção!

Pendurar uma melancia no pescoço?

Não seja ridículo!

Mas é pra ser ridículo mesmo. Quer chamar a atenção sem se tornar ridículo?

Melancia no pescoço não!

Tá. Mas o que?

Ah, sei lá. O que que esse povo precisa?

Pão e circo.

Deixe de besteiras!

Pense em escolas, vai. Diga por aí que o povo precisa de educação, e de disciplina. É isso mesmo que vai propor?

Mas melancia no pescoço? !!!

Tem alguma ideia melhor?

Puxa! O que poderia ser?

Melancia no pescoço! Melancia no pescoço! Melancia no pescoço!

Chega! Chega! Chega!

Melancia&

Chega, já disse!

Melan&

Isso!

Melancia no pescoço?

Quase isso. O povo tem uma enorme carência nutricional.

Mortos de fome, isso é que é.

Carência nutricional. Não me atormente!

Vai me matar?

Não me tente! Está certo: melancia no pescoço é válido; e o meu povo é morto de fome. Mas isso é impronunciável.

Ah! Muito bem! Agora aquele sonhador se tornou diplomático e hipócrita.

Diplomático sim.

Hipócrita.

Eu só preciso tomar cuidado com as palavras, para não ferir as pessoas. Você sabe, dizer o que pensamos não ajuda em nada.

Fingir que pensamos o contrário também não.

Pois é. Eu estou no meio termo.

Em cima do muro.

Tudo bem, em cima do muro.

Viu?

Vi. Ok. Vai querer que eu vá lá na praça e diga pra o meu povo: meus concidadãos! Eu sou um pulha, um hipócrita, um sacripantas! Vai?

Seu povo não ia entender porra nenhuma.

Pois é. Mas todos esses questionamentos me fizeram perder o fio da meada.

Que meada? Você agora faz crochê? Uiuiui.

Eu me perdi na linha de argumentação que estava desenvolvendo!

Melancia no pescoço!

Não. Melão.

Melancia!

Melão! Melão para todos.

Tá doido!

Sim. Uma loucura. Alimento para todos. Melão para todos.

Certo. Melão para todos é uma loucura.

É. E vai me dar destaque.

Como? Você vai distribuir melão para todos. Acha que vai ser admirado por isso? Vão é lhe tachar de otário.

Pode ser. Mas se eu conseguir que todos procurem pelos melões que eu vou adquirir, a coisa vai ser diferente.

Não vejo como.

Essa é boa.

É boa mesmo. Vamos discutir isso?

Ah, deixa pra lá. O caso é o seguinte: um concurso de degustação de melões.

Degustação de melões. Que palhaçada!

Por que?

Porque essa chusma não tem classe para degustar nada.

Degustar é maneira de falar. Será um concurso pra ver quem come mais melão, em menos tempo.

O que vai ter de neguinho morrendo de estupor. Aí sim, a candidatura vai pro pau mesmo.

Deixa comigo.

Tá. Deixo.

Obrigado.

Assim é que naquela cidadezinha do interior, onde havia uma incipiente fruticultura irrigada, foi promovido um concurso de consumo individual de melão. Todo o mundo queria participar  pela oportunidade mesmo de consumir a fruta, para aparecer diante de parentes e amigos, & e principalmente ambicionando o prêmio, substancioso.

Tempos depois, foi promovido também um concurso de corrida de costas. Isso mesmo. Os atletas correriam uma boa distância, sempre de costas  havia mais fiscais que concorrentes, para garantir a lisura do certame.

Depois, uma corrida de jegues, com obstáculos.

E um concurso de noivas de São João.

E um concurso de caretas  quem conseguisse a expressão mais medonha ganharia um bom prêmio.

Pelo menos, isso ajudou a que as pessoas se apresentassem mais ao natural.

Concurso pra pegador de galinhas. E pegador de bacorinhos.

E ele se tornou popularíssimo.

Tanto, que foi o vereador mais votado.

E, como havia-se tornado muito descolado, foi fácil levar a presidência da Câmara.

Nesse posto, desenvolveu projetos muito relevantes. Como o estacionamento pra cavalos (com capim de graça). E uma réplica da Estátua da Liberdade (estilizada por um artista local, pra desgosto do herói). E uma réplica da Ponte de Londres (pra sua cidadezinha respirar ares de erudição).

E as atividades culturais proliferaram.

Concursos de carpideiras. De imitadores de passarinhos. De capoeiristas. De contorcionistas. De strippers (isso é cultura, meu povo!).

Houve até um concurso de batedores de carteiras (o herói estava convencido de que os seus conterrâneos eram mais competentes que os pedantes das metrópoles).

O fato é que, depois de dois mandatos como vereador, ele conseguiu facilmente se eleger deputado estadual. Com muitos votos.

E está plenamente convencido de que pode prover as soluções para todos os problemas de todos os brasileiros.

Não duvido que um dia se eleja o Presidente da República  mesmo que numa eleição indireta.


Autor: Jackson Filgueiras


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