Vida De Sacristia



Vida de Sacristia

Foi antes do Concilio do Vaticano II, era ainda lá pelo meio do século XX. Quando o padre ainda andava de batina. E foi numa dessas visitas a uma das numerosas capelas do interior, que se deu o fato. Fato que me foi contado de viva voz, e é verdade pois quem me contou jura que ouviu de quem não mente. E por ser verdade, agora eu reconto...

Num domingo de manhã, logo depois da missa das oito, que terminou as nove, é que o tal padre, juntamente com sua secretária – uma senhorita muito simpática, atenciosa, coração mais precioso que uma mina de diamantes – preparavam-se para sair. Iriam para mais uma visita as capelas. Corajosamente entraram no velho jipe – daqueles que têm dois chifrinhos de madeira, feito orelha de pau, em cima dos paralamas dianteiros. E saíram saltitantes, pela estrada – vez por outra o padre se atrapalhava nos pedais, com as pernas enroladas na batina. O padre em sua austera batina e a gentil senhorita, saltitantes pelos solavancos da esburacada estrada na terra vermelha da fertilidade paranaense.

E lá se vão eles, feito missionários, entre aquele povo, muito religioso, mas quase sem religião: bom povo paranaense, que reza a vida no cabo da foice e na labuta do dia-a-dia. As atividades pastorais–missionários, na primeira comunidade, transcorreram normalmente: catequese, batizados, bate-papo sobre o tempo, confissão, missa... e novamente a estrada: poeirenta e cheia de solavancos. E isso já ia bem lá pelo meio da tarde. Em pleno calor de outubro, chegam à segunda comunidade – que alias, estava em festa da padroeira.

Nova roda de bate-papo, reunião com o apostolado da oração, catequese... mas que se interrompe para a gloriosa partida de futebol seria a Congregação Mariana (na qual jogava o padre) contra o pessoal da comissão da capela: era para estreiar um jogo de camisas. A taça seria uma leitoa assada, gostosamente recheada. O time que perdesse pagaria a despesa e todos se banqueteariam da leitoa. Essa, como se percebe, já havia perdido... a vida...

E lá vão preparativos. Como não havia vestiário o padre trocou-se na sacristia. Despiu a surrada e austera batina preta e a pendurou num humilde e enferrujado prego, que se escondia na parede, atrás da porta. A camisa ficou encabidada no encosto da cadeira, e... etc. Enquanto isso, os demais jogadores já estavam no campo; treinando alguns passes, treinando o goleiro... aquele costumeiro faz-de-conta de aquecimento.

Inicia o jogo: corre pra cá, corre pra lá, cai um aqui, outro lá na frente... passa a bola, dá cabeçada, o primeiro gol: vem logo o empate... Até que o jogo terminou, com o time do padre perdendo de três a dois. Mas já era hora da missa. O jejum eucarístico mandou que a leitoa ficasse para o ágape final. Depois da comunhão eucarística haveria a ação de graças pela comunhão na leitoa.

Tendo já tomado um bom e refrescante banho – alguns nas casas e outros no riacho de água cristalina (naquele tempo ainda existia) vitoriosos e derrotados estavam lado a lado, compenetrados nas orações (afinal de contas, tanto latim exigia alguma atenção)

Mas a secretaria começou achar estranho alguns gestos e atitudes do patrão-padre. É que ele quase incessantemente, passava a mão pelo pescoço. Coçava-se, discretamente. Enfim, estava inquieto. Coisa rara, naquele homem de temperamento rochoso.... Mas ele estava inquieto, decididamente estava!... e ela já começou a se perguntar o que teria acontecido... seria alergia? É, deve ser: o padre tomou banho na casa do seu Zé da venda. E a água vem lá do alto da serra, canalizada por longos troncos de bambu. Deve ser alergia água de bambu: Deu-se essa explicação e ficou aguardando, apreensiva... já quase inquieta também. E o padre não parava de se coçar e de passar a mão pelo pescoço... estava inquieto, quase agoniado... Ufa!

Terminou a missa o padre entrou na sacristia esfregando-se e se coçando. "Acho que peguei alguma alergia, deve ter sido a água". A secretária concorda, "eu estava observando tua inquietação; também acho que é algum bichinho da água".

Nesse instante entre coçadas e esfregadas no pescoço, já vermelho de tanto passar a mão, justamente nesse instante foram interrompidos pelo cacarejar de uma galinha choca, que fizera seu ninho bem ali, bem debaixo da parede onde o padre pendurara a batina. E, como se fossem donos da situação, ou como se fossem experientes exploradores, um verdadeiro exército de piolhos de galinha transitava livremente pela parede da sacristia.

Prof. Ms. Neri de Paula Carneiro
Filósofo, Teólogo, Historiador
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Autor: NERI P. CARNEIRO


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