A menina do farol



                                                         A menina do farol

 

De segunda a sexta feira eu a via. Pelas manhãs, logo cedinho, lá estava ela no farol. Franzina. Cabelo loirinho pela altura dos ombros. Olhinhos espertos, observando tudo. Vendia balas e as oferecia sempre a sorrir. A menina do farol. Com sol, chuva, frio ou calor, lá estava ela. Paula de nada é o meu nome, respondia a quem a perguntava. Só Paula. De nada. Às vezes conversávamos um pouquinho. E de pouquinho em pouquinho fui sabendo de sua vida. Gostava de estudar, mas não tinha tempo. Sabia ler e fazer contas. Só um pouco, por conta do pouco tempo que estudou. Inteligente. Esperta. Morava com a mãe doente e dois irmãos menores que ela. O pai a muito tinha ido embora. Tinha caído no mundo, dizia ela. O dinheiro que ganhava levava para casa e servia para comprar algumas coisas. Quanto era o seu lucro? Dez, quinze reais, às vezes mais, às vezes menos, o suficiente para matar a fome. Se  brincava? Ora, divertia-se no farol. A primeira vez que a vi, estava sentada à beira da calçada com seu trabalho ao lado, vários pacotes de balas e seu lazer em suas mãos, uma boneca, com a qual ela conversava como se sua filha fosse. Nunca mais a vi com sua boneca. Primeira e última vez. Mas rindo, achando graça em tudo,sempre. Ria das pessoas que por ali passavam. Tinham cada cara engraçada, dizia. Muitas vezes passavam brigando e nem se importavam  que ela ouvisse. Ela, que pensava que briga era só  na favela onde morava. Os donos de carrões também brigavam. E como brigavam. A qualquer hora. Ciranda cirandinha, vamos todos cirandar... Ela sempre cantava essa música. A mãe tinha ensinado. Cada um deve viver a vida da maneira como ela se apresenta. E será feliz, se não a comparar com a vida do outro.

De repente ela sumiu por uns tempos. Fiquei preocupada, mas não tinha o que fazer, não sabia onde ela morava.É. Eu poderia ter perguntado e não o fiz.

Mas não é que um belo dia a menina apareceu? Estava diferente, não sorria e seus olhinhos já não brilhavam tanto. Perguntei o porque, ela balançou a cabeça e correu.

Os dias foram passando e eu, absorta em meus problemas, apenas a cumprimentava, comprava suas balas e ia embora. Não percebi sua barriguinha , onde carregava sua boneca... Não percebi ou não quis? Depois de alguns dias, chamei-a para uma conversa, sem pressa. Ela disse que no outro dia sim, hoje não. Amanhã.

Sai mais cedo de casa, ansiosa por vê-la e ela já estava lá. Fomos tomar café em uma padaria. Eu nem sabia por onde começar, estava  nervosa. Afinal, aquela criança esperava uma criança. Mas, eu estava ali para ouvir sem julgar, o que ela quisesse contar. Sabe tia, minha mãe sempre dizia, filha não entre em carro de ninguém. E eu nunca entrei. Não aceite nada de ninguém e eu nunca aceitei. Mas um dia, estava chovendo muito e eu estava com a roupa molhada e com muito frio. Apareceu um homem e ofereceu carona. Eu aceitei. Não pensei em nada. Só no frio que sentia. Depois de um certo tempo ele parou o carro e disse que... Então tia. Foi isso. Nunca mais o vi. Minha mãe brigou comigo, ficou muito triste , não queria que isso tivesse acontecido comigo. Sentiu-se culpada. Depois ficou brava, por era eu quem trazia dinheiro para casa. Agora traria uma boca a mais, despesas e nem poderia trabalhar por um certo tempo. Até meu pai apareceu para me bater. Veja só. Ele só voltou por isso e depois foi embora novamente... O pai do meu filho será igual ao meu pai? E os vizinhos então,guardaram suas vidas  bem escondidas e ficaram falando tanta coisa de mim e de minha mãe, que até agora não entendi. Minha barriga está crescendo, tem um nenê aí dentro e é só isso que eu sei. Quantos anos eu tenho? Doze. Daqui a pouco tempo minha mãe disse que faço treze. Minhas palavras secaram. Eu não sabia o que dizer a ela, que atitude tomar. Respirei fundo. Não sei precisar o tempo de nosso silencio. Mas foi longo... Nos vemos amanhã, disse eu a ela. Preciso pensar um pouco. Certo?

Meu coração estava apertado, e eu fiquei pensando por que não tinha conversado mais com aquela criança. Chorei por minhas palavras não ditas, pelas coisas que não realizei. Mas o meu tempo é tão curto e eu... Eu preciso dele todinho para poder cumprir meus deveres, minhas obrigações para comigo e os meus. Muitas vezes chego ao fim do dia precisando de mais horas, não querendo que ele se acabe.  Como então dar a alguém o que me falta?

O tempo passa e é veloz, atropela meus afazeres, meus desejos, me deixa sempre a querer mais. E ela é meu próximo e só agora me dou conta que realmente nunca a vi. Só fiz minha obrigação. Curiosa que sou, quis saber de sua vida. Fui agradável, comprei suas balas e fui embora. Nada mais. Esquecia dela ao longo do dia.... Até o dia seguinte, para maquinalmente olhar para ela com meus olhos bondosos, me fazer agradável, caridosa, tão caridosa e mais uma vez comprar suas balas. Precisava reforçar em mim a bondade...Tão boa que sou. Aquela que perde  tempo com a menina do farol. E ir  embora pensando em outra coisa, tão diferente.

Por que tudo tem que ser assim?

A vida é um ver e nada fazer. É um querer e deixar para depois. É um pensar-se tão bondosa e ser tão egoísta. É um fazer o bem, esperando reconhecimento. Que alguém veja, que saiba. Será , será que se eu tivesse conversado mais vezes com ela, sua gravidez não teria acontecido? Penso que não. Então...Talvez eu precisasse tê-la a meu lado. Mas será deixariam? Como é que ficariam? Quem deles cuidaria? Também eu?E os meus, a aceitariam? E aí? E aí, fracassamos sem ao menos tentar... Deixamos que cada um cuide de sua vida, já que não temos tempo e se o temos, cuidamos dos nossos.

Mas meu coração me diz que é chegada a hora de reverter tal situação. Vou deixar-me guiar pelo coração, juntar-me à multidão que perambula pelas ruas e entre eles encontrar a sensibilidade que me falta, para discernir o que é verdadeiramente importante para meu crescimento pessoal.

Que através dessa comunhão, o meu amor se transforme em  amor incondicional, que me faça ver o outro como irmão e que me leve a proclamar a Palavra com coragem e sabedoria. Que eu esteja sempre pronta para servir ao Pai. Toda a Lei está contida numa palavra: Amarás a teu próximo como a ti mesmo. Gl 5,14

Que assim seja e assim será.

 

Heloisa P. Paula dos Reis

8 de junho de 2009

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Autor: Heloisa Pereira De Paula Dos Reis


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