A Cartomante



Eram tempos difíceis. A casa era apenas um reflexo desses dias. As paredes estavam pardas e o assoalho gasto. A pintura da fachada era cinza e por isso combinava com tudo, que havia dentro. Os móveis, se bem que era um exagero chamar aquela parca mobília assim, estavam deploráveis. Eram uma mesa e duas cadeiras que um dia foram de fórmica branca, o sofá caindo aos pedaços e nada mais. No quarto, só o necessário, uma cama e um armário.

         Os clientes já não vinham com tanta freqüência. E eram todos pobres. Pobres querendo que eu lhes dissesse que se tornariam ricos. Pensam que faço milagres.

Os anos estavam passando depressa, a idade havia chegado e a coluna já não parava mais de doer, mesmo quando estava tão sem trabalho como agora e nem ficava mais tanto tempo sentada, a coluna doía.

 

        Ela chegou em uma tarde de maio, entrou vacilante sem sorrir. Eu a olhei nos olhos e fiz sinal para que sentasse. Era bonita, bem vestida e tinha os olhos negros e tristes. Pedi que partisse em três o baralho e que pegasse três cartas. Ela obedeceu.

       Suspirei antes de falar, depois de olhar rapidamente as cartas.

-         Está aqui por causa de um grande amor. Fique tranqüila ele a ama.

-         Mas ficará comigo?

Olhei-a  melhor, reparei na aliança de ouro na mão esquerda, nas unhas bem feitas. 

Era casada, tinha dinheiro e com certeza uma empregada, pois as unhas eram belas demais para mexer com limpeza e cozinha. Parecia à primeira vista uma mulher séria, mas intui que ela não falava do marido. Havia algo de misterioso por baixo daquela aparência bem cuidada. Será que estava preocupada em saber se o marido a amava? Não, definitivamente não. E senão era por ele que sofria só poderia ter um amante, deduzi.

-         Vejo um belo futuro para você, cheio de muito amor. Não se preocupe... mesmo tendo brigado ele voltará.

       Ela ainda sem sorrir balançou levemente a cabeça.

-         Acho que ele não me quer mais, pode ter outras mais fáceis...

       Olhei bem aquelas cartas e não gostei do que vi. Poderia um triângulo algum dia dar certo? Três nunca foi um bom número. Decidi que era melhor terminar a consulta, não gostava mesmo do que estava vendo nas cartas daquela bela mulher.

-         Engano seu. Ele a ama. Não se preocupe, tudo vai dar certo no final.

        Disse isso e fechei as cartas, ela não precisava saber tudo o que eu estava vendo de fato.

  No fundo ninguém quer saber toda a verdade.

        Ela pareceu ficar surpresa com o final da consulta, penso que achou muito rápido.    Disse-lhe quanto era ela me pagou e então se despediu com um leve sorriso nos lábios.

 

O tempo me fez fazer sempre isso, dizer o que as pessoas queriam ouvir. 

Com uma pessoa era mais fácil com outra mais difícil. Geralmente deduzia o que estava acontecendo com elas, olhando-a bem nos olhos e as cartas diziam o resto. Porém, nem sempre, como agora havia acontecido, contava o que as cartas me mostravam, poderia ser perigoso e triste.

Ela foi embora achando que tudo daria certo, melhor assim.  

      E havia faturado para a comida de uma semana. Porém, antes que a semana acabasse, em um dia pela manhã, recebi um cliente. Ele era moço, o terno tinha um bom caimento, mas não era de muito boa qualidade, pensei. Os olhos eram azuis, e o sorriso fácil. Mandei que sentasse e no momento em que o fez, lembrei-me da mulher do outro dia.

-         Por favor, corte o baralho e tire duas cartas.

      Ele olhou-me surpreso. Parecia nervoso, mas obedeceu. Olhei para as cartas e tive a certeza de quem ele era.

          -  Ela o ama muito. Estás com receio de algo. Ela o ama...

    -  Sim, eu também. Mas ficaremos juntos algum dia?

    -  Breve.

     Ele sorriu abertamente, e ficava mais bonito.   

           Deveria ser fácil se envolver com alguém assim. .Ela o fez. Ele também era sincero, a amava. Ficou satisfeito com minhas palavras.

          - A senhora acha que vai haver guerra, todos comentam e já que estou aqui, poderia dizer-me?

          - Basta haver homens que sempre haverá guerras. Cada homem tem a sua guerra particular a vencer ou perder.

     Ele olhou para mim e assentiu com a cabeça. Parecia satisfeito

           Colocou o dinheiro sobre a mesa e saiu rapidamente porta fora. Estava com pressa. Os homens sempre não estão?

     Fechei as cartas devagar e guardei o baralho no lugar de sempre.

           Depois fui até a janela olhar a rua. O dia estava bonito, mas meu coração estava triste. Já era hora de parar de ganhar a vida dessa maneira. Antes nem me importava com os outros. Agora já não era assim. Estaria mesmo a velhice chegando? Sim, mas o que mais eu poderia fazer a essa altura de minha vida, recomeçar não daria mais. Fiquei por longo tempo na janela pensando na minha vida e na dos outros.

 

No dia seguinte, era um sábado feio e chuvoso.

      Sabia que tinha que ir ao jornaleiro comprar o jornal. Andei até a esquina e ainda encontrei alguns exemplares na banca. Voltei para casa rapidamente e o coloquei sobre a mesa.Comecei a leitura devagar e passando as páginas sempre com um quê de ansiedade e pressentimento. E estava lá, na página policial. Casal fora encontrado morto e o assassino era o marido da vítima. O crime ocorrera ontem de manhã em uma casa no bairro de Botafogo. Havia um texto contando os detalhes do assassinato, mas apenas passei os olhos. Não havia nenhuma foto, não precisava. O assassino havia sido preso poucas horas depois e confessado o crime O casal seria sepultado hoje.

      E então eu vi o que estava procurando naquela reportagem Os nomes das vítimas: Rita e Camilo. Agora eu sabia os nomes dos meus últimos clientes. Aquele casal de apaixonados  que finalmente estavam juntos, para sempre.

 


Autor: Marcia Nolasco Da Cunha


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