O TEMPO E AS GALINHAS
Adoro chegar em casa e, quando ainda está claro, deitar no piso frio do terraço, ali com as minhas meninas, que ficam brincando de passear por sobre mim, até a escuridão chegar. Elas, as minhas meninas, são como pintinhos em volta da galinha. Assim eu me sinto: uma galinha-mãe com os seus pintinhos, sempre ao redor, fazendo barulhinho, piu, piu, piu, um verdadeiro piadeiro. Uma vez, em um desses momentos, enquanto eu estava estirada no chão, Rachel (a mais nova, de 2 anos e meio) pegou a sua pequena sandália e bateu com ela no meu colo, dizendo pronto, matei, pronto!. Perguntei completamente assombrada: Filha, você está achando que sou uma barata ou uma formiga?. E ela deu a sua resposta do jeito que sabe, com a risada mais linda do mundo. É que o seu passa-tempo predileto é matar formigas. Quando estou com as minhas filhas, deitada no terraço, sem fazer nada, a não ser esperar a noite chegar, aquele momento parece uma eternidade e dura mais do que contam os ponteiros do relógio.E falando em passa-tempo, temos, todos nós, uma grande tendência em querer fazer o tempo passar. Em compensação, quando o tempo passa, ficamos com a sensação de que nunca o aproveitamos como deveríamos. O tempo consome a vida e a vida o consome.Mas nem tudo está perdido, ou se perdendo, na passagem do tempo. Nós, seres humanos fugitivos do tempo, temos uma ferramenta que nos permite controlar, se não o tempo, a nossa própria existência: a consciência. A consciência nos permite conviver com o tempo através do relógio (o tempo rígido e calculado, previsível), como um sentimento (quando o tempo torna-se variável: na eternidade da aula chata de física quântica, ou no quase imediato término de todas as músicas do nosso melhor CD) e através do ponto de vista ético, sendo o tempo um bem precioso e escasso, e sua qualidade dependerá do que fizermos com ele.A obra Em Busca do Tempo Perdido, do escritor francês Marcel Proust, é composta por 7 volumes dedicados justamente à relação humana com os seus valores, entre eles, o tempo. No último volume, O Tempo Reencontrado, o autor faz várias voltas ao passado e descobre que só a memória poderá se defrontar com o tempo, e a nossa paz interior será proporcional ao que a memória encontrar na volta ao passado, ou seja, a qualidade que dermos ao tempo que nos foi dado viver.Se não somos mais do que as nossas próprias lembranças, se vivemos o agora baseados em experiências que acumulamos ao longo das nossas vidas, e se, ainda, pararmos para contar a nossa história, lembrando de tudo o que vivemos e de tudo pelo que passamos, não levaremos mais do que cinco minutos. Será que não passamos de meros cinco minutos?E se, de uma hora para outra, perdermos a memória? Essa é uma possibilidade que nos resumirá ao segundo em que vivemos dali para frente. Nem as pessoas a quem mais estimamos fariam sentido para o nosso novo eu.Outra hipótese: imaginemos que existisse uma forma de apagarmos todas as nossas memórias indesejáveis. Aquilo que nos machuca, que ainda dói, como mágica, deletado do nosso cérebro. Talvez assim pudéssemos viver uma história perfeita. Acabaríamos sendo menos ainda do que os tais cinco minutos, considerando os cortes feitos no nosso filme. No entanto, apenas teríamos as boas lembranças. Essa idéia é desenvolvida no filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças: Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) formavam um casal que durante anos tentaram fazer com que o relacionamento entre ambos desse certo. Desiludida com o fracasso, Clementine decide esquecer Joel para sempre e, para tanto, aceita se submeter a um tratamento experimental, que retira de sua memória os momentos vividos com ele. Após saber de sua atitude Joel entra em depressão, frustrado por ainda estar apaixonado por alguém que quer esquecê-lo. Decidido a superar a questão, Joel também se submete ao tratamento experimental. Porém ele acaba desistindo de tentar esquecê-la e começa a encaixar Clementine em momentos de sua memória os quais ela não participa. O nome do filme é o trecho de um poema de Alexander Pope:Feliz é o destino da inocente vestalEsquecida pelo mundo que ela esqueceuBrilho eterno da mente sem lembranças.Cada prece aceitam, cada desejo renunciado.Há um outro verso poético no filme, desta vez de Nietzsche: "Abençoados os que esquecem, porque aproveitam até mesmo seus equívocos."Para alguns, o filme é monótono. Para mim esse filme é encantador, não só pela brilhante atuação dos atores, como pela idéia intrigante que ele nos traz. De repente imaginei que eu poderia excluir, ou modificar, algumas nas minhas lembranças. Isso me traria uma vida na realidade não vivida, tornando-me uma pessoa modificada. Não sei até que ponto valeria à pena perder as lembranças que me trouxeram ensinamentos. É dolorosa a idéia de repartir a vida, mesmo para apagar partes indesejáveis. Por outro lado, algo assim poderia trazer de volta a dignidade de alguém.Um outro filme, que também me emocionou: Diário da nossa paixão: fala-se de um amor de uma vida, preenchida por tantas emoções quanto dois jovens apaixonados têm direito; preenchida com recordações, separações, reencontros, escolhas, filhos e com um amor que apesar da idade não se apaga, e que se vê ameaçado pelo esquecimento. Ele todos os dias lê para a senhora partes de um livro já meio gasto, que conta uma linda historia de amor entre dois jovens (Noha e Allie), na esperança de que a sua amada relembre a sua própria história (esse é o segredo do filme), esquecida pelo mal de Alzheimer. Ao final, ela consegue relembrar durante um instante, mas, logo em seguida, volta a ficar atordoada. Os dois morrem juntos. Se, para quem perde todas as suas lembranças, é como se deparar com um mundo estranho e somente seu, para aqueles que ficaram e participaram da mesma história, ver essa anulação acontecer é como ver a morte daquela pessoa em vida. É triste, pois a vida tem um valor inestimável.Enfim, somos mesmo um resumo, Somos apenas aquilo que nos lembramos. E nos encantamos com fotografias, vídeos e outros registros para podermos relembrar o que esquecemos, trazendo de volta o que inevitavelmente o tempo tira de nós: as nossas memórias, a nossa vida. Então, qual o sentido de corrermos tão ansiosos para não deixar que a vida passe sem dela tirarmos o máximo proveito?Sentir e medir o passar das horas são iniciativas úteis, pois nos ajudam a decidir o que faremos com o tempo que dispomos. Assim, a nossa paz com o tempo será diretamente proporcional à paz que estabelecemos com nossas escolhas, nossas decisões.A mitologia ilustra bem essa angústia humana. Zeus, o mais poderoso deus do Olimpo grego, era filho de Cronos, mas nenhum dos dois conhecia esse parentesco, mantido em segredo por Réa, mãe dos filhos de Cronos. Mas Zeus só assume a posição de poder quando enfrenta Cronos e o vence em uma batalha: corta os tendões de Cronos e amarra sua cabeça aos pés, criando um círculo com o seu corpo, a partir de quando o deus do tempo passou a ser também o deus das ações repetitivas (o dia e a noite, as estações do ano etc). Ele havia sido sabiamente aconselhado a não matar o seu oponente, pois assim ele estaria matando o próprio tempo e ficaria, então, aprisionado no instante, sem futuro nem memória.Dominar o tempo, vencê-lo e conquistá-lo, torna-se um desafio na vida moderna. Todos têm 24 h no dia, mas o aproveitamento desse tempo é diferente para cada pessoa. O primeiro passo para melhor aproveitar o tempo é dado através de escolhas, com base em nossos valores e criamos uma estratégia para atingir nossos propósitos.É verdade que o presente é a única realidade prática que nos resta, mas o futuro não é algo que vai existir. O futuro existe agora. O futuro só existe no presente, e quando o futuro virar presente, deixará de ser futuro. E quando isso acontecer, ele será melhor ou pior, a depender das escolhas tomadas no presente, neste exato momento.Vivemos no presente, mas estamos arraigados ao passado, que nos ensina, e ao futuro, que nos motiva. Viver é reconhecer o tripé temporal, doce ou amargo, dependendo da consciência de cada um.Um dia eu cansei de correr atrás do tempo. Foi quando ele acabou correndo atrás de mim, e eu me pus a fugir. Até que me rendi. Aceitei a condição de viver sentada e bem acomodada no ponteiro em movimento, marcando o exato tempo. Isso a mim promove um enorme bem-estar e me possibilita uma reflexão, uma análise do que eu sou. Ai está a riqueza que temos e que pode se perder através do esquecimento...E as galinhas? Por que colocar galinhas no título deste texto. É que eu adoro galinhas, assim como a frase da saudosa Dercy Gonçalves: "Quem me criou foi o tempo, foi o ar. Ninguém me criou. Aprendi como as galinhas, ciscando, o que não me fazia sofrer eu achava bom."
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