CLARICE E EU



Tenho um livro que recebi de presente de mim mesma. Eu estava indo a um treinamento do Banco na sede, em Fortaleza, quando, durante a escala no aeroporto de Recife, resolvo passar o tempo em uma livraria no próprio aeroporto. Fiquei ali alguns minutos, peguei algumas revistas e livros que certamente me chamaram a atenção. Enfim, eu estava apenas matando o tempo e a minha curiosidade. Até que, já quando eu realmente iria deixar aquele recinto, um livro me chamou especialmente a atenção. Inicialmente admirei a beleza de sua capa, extremamente delicada e encantadora nos seus tons pastéis. Em seguida o nome de Clarice Lispector saltou aos meus olhos, como alguém que certamente eu sabia ser uma das nossas maiores escritoras, mas que eu não conhecia, pelo pouquíssimo que conheço nos meus quase vinte e seis anos. O livro se tratava de uma reunião de crônicas publicadas por aquela escritora no Jornal do Brasil, nos sábados de agosto de agosto de 1967 a dezembro de 1973. A Descoberta do Mundo. Esse era o livro e que livro!Embora eu tenha apreciado imediatamente aquele livro, eu ainda assim iria embora sem levá-lo. Mas ele não me deixou. E nas duas vezes que eu já estava saindo do local, ele me chamou. Na verdade o livro gritou para que eu pudesse levá-lo comigo. Como o destino quis, tive que voltar para acalmá-lo e acabei ganhando-o de presente, de mim mesma, com dedicatória e tudo. E cada vez que eu me aprofundo nesse mundo de descobertas, mais é difícil largá-lo. Ele foi o meu melhor presente, materialmente falando. Contudo, é um presente além do que se diz material: ele atinge em cheio a minha alma. Posso explicar.De início, o texto que me divertiu e fez valer à pena ter me dado aquele presente foi o intitulado Uma história de tanto amor, publicado em 10/08/68. O texto conta a história do amor incondicional de uma menina por duas galinhas, Pedrina e Petronilha. Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheio de galinha viva não é de se brincar, conta Clarice. Que história deliciosa! Associei-a de cara a uma colega  e amiga  que ganhou uma galinha quando trabalhávamos em Sapé, no interior da minha Paraíba, e batizou-a de Valéria Cristina, nome de extremo bom gosto, numa demonstração sublime de carinho, sendo dois nomes para uma só galinha. A coitada, de tão magra, morreu de velha, sem satisfazer ninguém com o seu sabor. A não ser o galo, quem sabe...Em seguida, outros e outros textos me proporcionaram bastante prazer - em diferentes níveis, mas sempre prazer  tais como: O medo da eternidade, As maravilhas de cada mundo, O primeiro beijo ou Cinco relatos e um tema (este último trata de cinco versões para a morte noturna e literalmente envolvente de várias baratas intrusas, oriundas do andar de baixo, quando mergulhadas numa fórmula de açúcar, farinha e gesso: triunfal!).Mas um texto foi, com toda a certeza que há no mundo, feito para mim, pode acreditar: As três experiências, de 11/05/1968. Clarice começa assim: Há três coisas para as quais nasci e para as quais eu dou a minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. Daí a escritora discorre sobre seus maravilhosos pensamentos. Mas o que ela fez para mim foi simplesmente dizer o que eu mais sinto: E nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo (...). É que não sei estudar. E para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Ah, como Clarice conseguiu chegar tão intimamente em mim? Escrever é prazer e não esforço. Afinal, não há esforço em senti prazer. Quando escrevo me dispo de qualquer personagem, passando a ser apenas eu e eu mesma. Ponho para o papel tudo o que enche o meu coração, e me alivio. Não há o que temer quando exponho as minhas palavras através de minhas mãos. Elas já estão vivas, prontas dentro de mim. Escrever, sim, me faz amar os outros e a mim mesma. Escrever é algo despretensioso, que me faz crescer, me faz forte, e já virou um vício que veio na primeira crise existencial (à dos 25 anos). Escrever, sim, me faz voar.Já sobre os nossos filhos, Clarice está cheia de razão quando fala que nós os criamos mesmo para o mundo. Para que voem com suas próprias asas, e descubram o seu mundo. Eles levam uma parte de nós através da descendência.Clarice diz no texto que sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte, mas que pode me trair e me abandonar (...). Em escrever não tenho nenhuma garantia. Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer.Mas na verdade, não se morre quando se escreve. Basta perceber Clarice indo ainda mais fundo quando encerra o texto com as seguintes palavras: Se é verdade que existe uma reencarnação, a vida que levo agora não é propriamente minha: uma alma me foi dada ao corpo. Eu quero renascer sempre. E na próxima encarnação vou ler meus livros como uma leitora comum e interessada, e não saberei que nesta encarnação fui eu que os escrevi. Ah, Clarice! Não precisa haver reencarnação. Você já renasce cada vez que é lida. O fato é que agora carrego em mim um pouco de sua alma, que me foi dada ao corpo e que sou eu a leitora interessada, ou uma das tantas e tantas, que escreveu os seus textos para mim, sem saber que fui eu que os escrevi. Essa é a mágica da leitura. Ela que nos presenteia com vida, mesmo depois da morte. Ela que nos faz descobrir o mundo.
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