INDIFERENÇA



Eu na manicure, fazendo as unhas das mãos e pés enquanto me preocupo com a cor que devo escolher dessa vez. Vermelho?, é o que indaga a manicure, como quem quisesse sugerir, implicitamente emitindo uma opinião. Lourdes era o nome daquela mulher, que aniquilava tão bem as minhas cutículas  que não são poucas nem fáceis. Uma negra grande, com cabelos alisados e sorriso límpido. Muito bonita e talentosa no manuseio do alicate bem amolado. Não, é o que respondo, justificando preferir uma cor mais discreta. Não busco mais chamar atenção através da aparência.Continuamos naquele ritual, unha por unha, após a difícil escolha da cor. Havia ali uma mosca. Realmente ela existia e é digna de registro. E ela estava me incomodando continuamente, cada vez que tocava a minha perna direita. O tempo todo ali, sem poupar-me dos seus beijos repugnantes. Sempre me pinicando, encostando, chamando a minha atenção. A mosca de fato me incomodava de maneira profissional. Eu não queria notar a sua existência. Preferia pensar em algo que me fizesse esquecê-la, mas não conseguia ser indiferente a tal mosca. De fato, a mosca persistia e ali estava ela, querendo que eu reconhecesse a sua existência, o seu papel como um ser vivente a que ocupa a Terra. Na verdade, se aquela mosca não fosse tão insistente em me atacar, a sua existência a mim passaria despercebida. Mas o seu objetivo de vida foi alcançado.Certas pessoas simplesmente não existem. Pessoas que vivem em outros mundos, diferentes do nosso. Pessoas invisíveis, excluídas e não lembradas. São pessoas-moscas. Diariamente nos deparamos com elas e preferimos nem notar a sua existência: aquele pedinte no semáforo; o mendigo que dorme na rua; aquela mãe rodeada de filhos descalços, à espera de mais não se sabe quantos, que pede comida; doentes esquecidos, que pedem licença para continuarem existindo; pais de família que não conseguem alimentar seus filhos; velhos, crianças exploradas, descamisados, enfim. São inúmeras as pessoas-moscas. E elas estão ali, quietas e esquecidas, vivendo na sua indiferença lhes dada em posse. Até o mosqueiro começar a dar sinal de sua existência, insistentemente invadindo nossas vidas. Como querendo nos colocar em nosso lugar, nos roubam, assaltam, seqüestram, matam, destroem. Repetidamente gritam: Estamos aqui e sabemos que vocês não nos querem. Mas continuaremos aqui a irritá-los. E passam a invadir os nossos carros, roubando os nossos pertences, jogando ao chão o que não interessa, mostrando ao seu modo que também são indiferentes aos nossos sublimes sentimentos carregados de sensibilidade, quando preferimos enxergar as borboletas do mundo às moscas que nos cercam, enquanto não nos incomodarem.Certo autor que trata de ética disse que é totalmente irrelevante e desnecessário o sentimento puro e genuíno que temos ao nos depararmos com uma criança carente que gasta toda a sua infância, inocência e todas as horas dos seus dias trabalhando nos semáforos das cidades. Esse é um papel que cabe aos anjos e não a nós. Esse sentimento de nada vale se simplesmente não tomarmos uma atitude. E as moscas continuarão sendo moscas, a nossa volta, às vezes caladas, às vezes registrando a sua existência ao seu modo, nos tocando onde mais nos incomoda.Terminadas as mãos, Lourdes expressa: Gostei dessa cor, mas prefiro vermelho em você. Aquela mosca ainda em mim. Respondo: Da próxima vez uso vermelho, digo em consolo.Ao terminar os pés, aguardo quem me levaria para casa. E lá vai Lourdes atender outra ciente. Vai pintar de vermelho?, pergunta ela. Responde a cliente: Hoje vou pintar claro. Indignada, a manicure continua o seu trabalho, se questionando sobre o motivo da preferência pelos tons claros, se o vermelho estava ali, vivo, totalmente disponível, lindo e intenso, como só o vermelho é capaz de ser.Vou embora e deixo aquela mosca, agora, finalmente, indiferente para mim, depois da demonstração do total desinteresse por parte daquele ser na minha tranqüilidade no meu momento de embelezamento pessoal, e da sua falta de temor ante a minha irritação. Para aquela mosca, a minha existência ou o meu papel como ser vivente é totalmente irrelevante, desnecessário e indiferente.
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