A LITERATURA INFANTIL E AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: reflexões a partir da Lei 10.639/03*



A sociedade brasileira, assim como as demais nações colonizadas é, simultaneamente, produto e produtora de desigualdades sociais e raciais, uma vez que nossa cultura patriarcal e eurocêntrica reflete o pensamento ocidental de supremacia da raça branca, e ao longo de mais de cinco séculos não fomos capazes de reverter uma situação que, apesar de imbricar para os afro-descendentes, a eles não se restringe, antes, se estende para uma imensa população que aqui já se encontrava quando aportaram os portugueses ainda no século XVI.Nesse sentido, e visando a reparar, pelo menos em parte, a dívida contraída para com uma parcela enorme de brasileiros e brasileiras descendentes dos negros africanos que para cá vieram como escravos, o governo brasileiro traz a público a Lei 10.639/03 alterando a Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. Dessa forma, e tendo em vista a importância de se discutir como essa Lei deve ser colocada em prática, e acreditando ser a temática Literatura Infantil parte integrante de nossas atividades pedagógicas pretendemos, neste trabalho, refletir sobre a necessidade de se incorporar nos currículos, já sob o efeito dessa Lei, a discussão sobre a forma como são tratados os negros e seus descendentes nos livros de historinhas infantis, marcadamente nos contos de fadas, uma vez que é notória a discriminação e o preconceito racial nos conteúdos dessas fábulas encantadas.Assim sendo, buscamos refletir sobre a representação do negro na Literatura Infantil, acenando com sua inserção nos currículos oficiais da Educação Básica, com ênfase à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental nos anos iniciais, uma vez que essas modalidades educacionais atendem crianças pequenas, o que favorece uma abordagem favorável às relações étnico-raciais no contexto escolar desde que são personalidades em formação.Segundo Cavalleiro (2005) a educação brasileira, visivelmente afetada pelo projeto neoliberal, torna público a ausência de uma reflexão acerca das relações raciais no planejamento escolar, o que tem impedido a promoção de relações subjetivas respeitáveis e igualitárias entre os agentes sociais que integram o cotidiano da escola. Nesse sentido, o silêncio sobre o racismo, o preconceito e a discriminação racial em diferentes instituições educacionais e a ideologia do consumo gestada de forma hegemônica, contribuem para que as diferenças de fenótipo entre negros e brancos sejam entendidas como desigualdades naturais, e o que é mais grave, constroem e reproduzem os negros como sinônimos de seres inferiores.Tais proposições justificam plenamente nossa intenção em discutir, à luz da Lei 10639/03, a importância de se identificar nas histórias infantis aspectos de racismo e preconceito, buscando incorporar nos currículos do ensino básico conteúdos que valorizem as relações inter-étnicas, considerando a diversidade cultural como um patrimônio de um povo, e desmistificando a suposta superioridade de uma raça sobre outra, e isso se estende também para a relação entre os outros brasileiros e as inúmeras etnias indígenas que povoam o território brasileiro.Portanto, o desafio que se nos apresentam são os de que estão na educação formal, mais do que em qualquer outro setor de nossa sociedade, trazer para discussão mecanismos que favoreçam, ao mesmo tempo que sensibilizem e incorporem no imaginário infantil a importância de se exercitar desde já a alteridade, e a literatura infantil, nomeadamente os contos de fadas e suas fábulas, se apresentam como possibilidade real de se inserir nas crianças valorosas e justas formas de convivência com o diferente, para que cresçam adolescentes e jovens capazes de fazer a diferença numa sociedade marcadamente preconceituosa e carente de valores éticos e morais, para que tenhamos adultos capazes de construírem uma sociedade sustentável.Com efeito, é cabível fazermos aqui uma ressalva de que, ao inserir a literatura como conteúdo didático, é importante se ater que a linguagem não é só denotação, ela é também conotação. Daí, deriva a criticidade pedagógica na proposição de temas que visualizem a construção de uma pedagogia inclusiva em palavras, ações e atitudes. Nessa perspectiva, o compromisso aqui alçado, é de que os professores se sensibilizem perante os conflitos inter-raciais presentes no interior da sala de aula e que, ao propor a literatura infantil como mais uma gama de conteúdos que abordem questões étnico-raciais, possam desenvolver uma prática pedagógica que corresponda não só aos anseios da Lei 10.639/03, pois tal posicionamento, se acatado sob o viés do fazer por fazer teria um significado mecânico e distante do discurso que prega a educação como prática de liberdade e direito de todos.
Autor: Lídia S. C. Ribeiro


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