Bioética: Quando Começa A Vida Humana?



Atualmente, essa inquietação foge das especulações puramente metafísicas e alcança o nosso cotidiano, uma vez que o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro encontra-se em processo de julgamento de uma matéria sobre o assunto. Trata-se da Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), a qual permite a utilização de células-tronco embrionárias congeladas por mais de três anos e mediante autorização dos doadores do material genético em pesquisa e terapia, obtidas de embriões humanos produzidos in vitro e que não se prestam à utilização nos respectivos experimentos.

O STF está tratando da matéria porque o então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin 3510, de maio de 2005), a qual questiona a constitucionalidade desse artigo 5° e de seus parágrafos por entender que eles ferem os princípios constitucionais do respeito à vida e à dignidade humana. Para Fonteles, a vida humana tem início no momento da fecundação, pois "O embrião humano é vida humana", motivo pelo qual ele propõe que o citado artigo 5° seja revogado (TV JUSTIÇA, 2008, on-line).

No dia 05 de março de 2008, o ministro do STF Ayres Brito, relator da Adin 3510, defendendo a tese de que a Constituição brasileira protege a pessoa nascida, "residente, nata e naturalizada", argumentou, em voto contrário ao pedido inscrito na Adin 3510, que "não há pessoa humana sem o aparato neural que lhe dá acesso às complexas funções do sentimento e do pensar" (cf. SILVA, 2008, p. A3), levando-nos ao entendimento de que a gênese da vida humana ocorre com o sentimento e com o pensamento.

Pois bem. Segundo Regis (2005, on-line), que apresenta uma substantiva revisão bibliográfica sobre a matéria (FARIAS, 2003; PRANKE, 2004; CAPEZ, 2003; MIRABETE, 2003), na cultura ocidental há quatro teorias gerais que tentam explicar a origem da vida: 1. a teoria criacionista, segundo a qual Deus teria criado a vida na Terra; 2. a teoria panspermista, sustentadora da tese de que a vida terrestre se origina de outros planetas; 3. a teoria abiogenista (da geração espontânea), para a qual a origem da vida é espontânea e provém da matéria inanimada; e, por fim, 4. a teoria auto-organizacionista, patrocinadora do entendimento de que o surgimento da vida decorre da auto-organização de compostos orgânicos simples em macromoléculas, formadoras das protocélulas primordiais. Essas teorias não são consensuais e motivam debates e embates ininterruptos.

Porém, o que talvez esteja associado ao argumento do ministro Ayres Brito seja outro entendimento, o de que o ciclo natural da vida humana começa com o nascimento e termina com a morte. A morte, por sua vez, ocorre quando o cérebro deixa de funcionar, sendo essa morte cerebral a que ampara as doações de órgãos. Na esteira desse conceito de morte, há o entendimento utilitário-temporal de que a vida também tem início no momento em que o cérebro começa a funcionar.

A polêmica está acirrada porque, fora aquelas concepções gerais sobre a gênese da vida humana e à parte essa teoria cognotivista, relacionada à noção de que uma pessoa começa a ser quando se dá, nela, o funcionamento cerebral, existem outras posições sobre o tema, entre as quais, a dos concepcionistas, segundo a qual a concepção já dá vida a uma pessoa; a dos natalistas, para os quais a pessoa começa a existir no ato de nascer; e a dos nidistas, que defende a tese de que uma pessoa começa a existir quando há a nidação do ovo, isto é, quando se dá o começo da gravidez (SILVA, 2008, p. A3).

Em meio a todo esse esforço para se determinar quando a vida humana tem início, uma posição técnico-classificatória pode ser encontrada no âmbito do direito, segundo a qual até três semanas após o início da gestação existe ovo, da terceira semana ao terceiro mês de gestação há embrião e só no início do terceiro mês de gestação é que existe feto.

Em face desse debate, fico a pensar no paradoxo implicado nessa polêmica e que consiste no fato de todo esse esforço para se definir quando a vida começa, que é uma preocupação com aqueles que não nasceram, não se estender à vida daquelas pessoas que encontramos nas ruas, que nos estendem a mão, que muitas vezes são desrespeitadas de todas as forças em sua dignidade e que morrem à míngua ao nosso lado, atacadas pelas inúmeras misérias que perpetramos uns contra os outros. Penso, ainda, na irracionalidade das guerras, a qual não considera minimamente o valor da vida das pessoas, muito menos o de sua dignidade.

Outra coisa que me chama a atenção é o nosso cartesianismo (DESCARTES, 1999), que fragmenta a realidade e cinde o ser humano, ao ponto de possibilitar-nos essas classificações sobre o começo da vida. É como se, em alto mar, colhêssemos uma gota d'água e quiséssemos determinar quando ela passou a ser água e se ela é mesmo água ou não.

De fato, temos dificuldade de adotar a perspectiva do holos (todo). Por isso, não enxergamos o universo como a grande vida, no qual nós, os humanos, e todas as outras expressões vitais sejam consideradas interdependentes, interligadas e intervinculadas, solidárias e co-viventes. Uma postura assim nos ajudaria a entender que uma das faculdades da vida é justamente potencializar mais vida, e não estaríamos a digladiar por uma porção genética. No entanto, enquanto o cartesianismo imperar, inclusive nos assuntos ligados à vida humana, embates obtusos dessa natureza continuarão sendo o nosso prato do dia.

Referências bibliográficas

CAPEZ, F. Curso de Direito Penal, v. II. São Paulo: Saraiva, 2003.

DESCARTES, R. Discurso do método. Trad. E. Corvisieri. São Paulo: Abril Cultural, 1999.

FARIAS, S. T. O Código da Vida: Um Modelo Baseado num Mundo Ribonucleoprotéico (Dissertação de Mestrado em Genética). Universidade Federal da Paraíba, 2003.

MIRABETE, J. F. Manual de Direito Penal, v. II. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

PRANKE, P. A. Importância de discutir o uso de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos. In: Ciência e Cultura (Núcleo Temático: Clonagem), Campinas: SBPC, 2004, p. 33-38.

REGIS, A. H. de P. Início da vida humana e da personalidade jurídica: questões à luz da bioética. In: Jus Navigandi. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6462>. Acesso em: 22.03.2008.

SILVA, J. A. A questão das células-tronco embrionárias. In: Folha de S. Paulo. Tendências/Debates (Opinião), 21.03.2008, p. A3.

TV JUSTIÇA. STF julga nesta quarta constitucionalidade de pesquisas com células-tronco embrionárias. In: TV Justiça (On-line, 04.03.2008). Disponível em: <http://www.tvjustica.gov.br/maisnoticias.php?id_noticias=6236>. Acesso em: 22.03.2008.


Autor: Wilson Correia


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