LEI COMPLEMENTAR E LEI ORDINÁRIA: ANÁLISE SOBRE A EXISTÊNCIA OU NÃO DE HIERARQUIA



1  Introdução

Muito se discute sobre a eventual existência de hierarquia entre Lei Complementar e Lei Ordinária.

A questão se mostra pertinente tendo em vista as inúmeras opiniões e os fortes argumentos nos dois sentidos.

A fim de esmiuçar este assunto, o presente artigo visa, em primeiro lugar, expor o que é uma hierarquia para o direito, tecendo, juntamente, um paralelo com os aspectos de diferenciação destas espécies normativas. Propõe-se ainda, ao final, o enfrentamento das correntes doutrinárias que rogam pela existência[i] ou não[ii] de submissão da Lei Ordinária em face da Lei Complementar.

2  Hierarquia, aspectos de diferenciação e análise comparativa

Hierarquia, para o direito, conforme expõe o mestre Michel Temer[iii], é "a circunstância de uma norma encontrar sua nascente, sua fonte geradora, seu ser, seu engate lógico, seu fundamento de validade, numa norma superior".

Neste contexto, abstrai-se dos ensinamentos do jus filósofo Hans Kelsen[iv] que "a norma inferior tem seu fundamento de validade na superior. Só será válida a norma inferior, se estiver em harmonia com a do escalão superior".

Sendo assim, levando em consideração os conceitos acima expostos, tem-se que a problemática da questão se resume em observarmos se a Lei Ordinária encontra ou não sua nascente, sua fonte de validade, seu engate lógico na Lei Complementar.

Neste contexto, aqueles que rogam pela existência de hierarquia entre estas espécies normativas fundamentam seu pensamento sustentando que a Lei Complementar é um tertium genus interposto entre a Lei Ordinária e a Constituição[v]. Para eles, a exigência de quorum especial para aprovação e a prévia atribuição de seu campo material dão a Lei Complementar o status de espécie normativa intermediária, posicionada entre a Lei Ordinária e a Constituição.

Por outro lado, aqueles que pugnam pela inexistência de hierarquia entre estas espécies normativas, argumentam que ambas encontram seu fundamento de validade na Constituição Federal. Para eles, todas as normas previstas no rol do artigo 59 da Constituição Federal encontram-se num mesmo plano, com exceção das emendas. Sendo assim, a Lei Complementar não é superior a Lei Ordinária, nem esta é superior à Lei Delegada, e assim por diante, de modo que a simples existência de campos materiais distintos e de quorum de aprovação especial não significa, necessariamente, hierarquia entre estas[vi].

Ad argumentandum, em complemento, é fato que a Lei Complementar tem um campo de atuação delimitado e distinto, o qual nenhuma outra sorte de lei pode se imiscuir. Também é fato que sua aprovação exige um processo de elaboração especial (maioria absoluta, nos termos do artigo 69 da Constituição Federal), que se mostra diferente, por exemplo, da maioria simples exigida para aprovação de Lei Ordinária.

Entretanto, estes aspectos devem ser observados apenas como fatores de distinção entre estas espécies normativas, não se tratando, em absoluto, de hierarquia, até mesmo porque, conforme as lições do mestre Michel Temer[vii], num sentido amplo, todas as Leis são complementares à Constituição, sendo, essa sim, nascedouro das demais espécies normativas, havendo de um lado aquelas matérias reservadas pelo próprio constituinte, merecendo, inclusive, um quorum especial de aprovação, e, de outro, aquelas que têm um caráter residual, como é o caso da Lei Ordinária, que podem disciplinar todas as matérias que não àquelas reservadas, exigindo maioria simples para sua aprovação.

É nesta esteira de raciocínio que se situa o voto do Ministro Moreira Alves, donde se abstrai que "o problema é apenas de competência, não havendo subordinação hierárquica".[viii] É por isso que a Lei Complementar é imodificável pelas Leis em geral. Não por causa de hierarquia, mas sim, porque existem âmbitos de atuação distintos. Rogar pela existência de hierarquia entre Lei Complementar e Lei Ordinária, somente pela diferença de seu campo de atuação ou pela exigência de um quorum diferenciado seria o mesmo que entender que uma Lei Municipal é hierarquicamente inferior a uma Lei Federal. Sendo assim, o que ocorre, de acordo com as palavras do mestre Pedro Lenza[ix], são apenas âmbitos diferenciados de atuação, atribuições diversas, oriundas da mesma fonte comum que coloca as espécies normativas num mesmo plano de igualdade.

Portanto, resta claro que o fato de Lei Complementar não ser modificada por Lei Ordinária não se trata, em absoluto, de hierarquia, mas sim de uma lógica inquestionável, pois uma norma ao ser aprovada por um processo legislativo especial gera, para esta, a dependência deste mesmo processo para ser modificada ou, até mesmo, expurgada do sistema. Pensar diferente geraria a flexibilização dos ditames constitucionais que traçaram um Processo Legislativo especial para determinadas matérias, o que é de todo inconcebível, mas que não evidencia, de forma alguma, o escalonamento entre as normas infraconstitucionais.

3  Conclusão

AsLeis Complementares e as Leis Ordinárias são oriundas de um fundamento de validade comum, que as coloca num mesmo plano de igualdade, sendo impossível asseverar pela existência de hierarquia, havendo apenas fatores de distinção entre estas espécies normativas.

O fato de uma Lei Complementar não ser modificada por Lei Ordinária não evidencia a existência de hierarquia. Trata-se, na verdade, de respeito aos ditames constitucionais, evitando a flexibilização dos preceitos que traçaram um Processo Legislativo especial para determinadas matérias.


Notas

[i] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Pontes de Miranda, Geraldo Ataliba, Alexandre de Moraes, Hugo de Brito Machado e etc.

[ii] Michel Temer, Celso Ribeiro Bastos, Pedro Lenza, Vidal Serrano Nunes Júnior, Celso Spitzcovsky e etc.

[iii] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, Malheiros, 19ª ed., 2003, p. 146.

[iv] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, Martins Fontes, 2008, p. 33.

[v] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves apud MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, Atlas, 24ª ed., 2009, p. 668.

[vi] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 16ª ed., 1995, p. 308.

[vii] TEMER, Michel. Elementos..., cit., p. 147.

[viii] RE 84.994-SP, RTJ 87/204.

[ix] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, Saraiva, 12ª ed., 2008, p. 369.


Autor: Diego Da Silva Ramos


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