Nelly Dean: A arte da narrativa feminina em Wuthering Heights



Marcos Ramos Penteado[1]

O objetivo do presente artigo é problematizar e discutir a construção do discurso feminino no romance Wuthering Heights (O morro dos ventos uivantes), de Emily Brontë, através de uma análise da personagem Ellen Dean, que também é uma das narradoras da história. Analisando a personagem citada, pretende-se estabelecer um padrão do comportamento feminino na obra, mostrando os reflexos da sociedade vitoriana na produção literária feminina, bem como estabelecer as bases para uma análise comparativa entre esta e outras personagens da mesma obra. O estudo está sendo realizado a partir da leitura e análise de textos teóricos sobre feminismo e literatura, comportamento e sociedade no século XIX (era vitoriana) e teoria da literatura (principalmente Antonio Cândido e Alfredo Bosi) em geral.

Nelly Dean é a voz do povo em Wuthering Heights. Dela emana toda a força, a sabedoria e os conselhos que a camada mais simples da população, indubitavelmente, conhece. Ela é a conselheira, a sábia, a companheira, aquela que tudo faz para manter a ordem das coisas. Com uma visão lógica e ponderada, temperada por toques, ora sutis, ora inflamados, de paixão e crença, ela conduz o leitor pelo mundo real e mágico de um amor que atravessa as raias da razão e acaba por tornar-se uma obsessão e um desejo incontrolável de vingança. Desde o início da narrativa, apresenta-se sob uma aura de realismo (embora o texto seja Romântico). Sua função é remeter as outras personagens a uma realidade física, pautada na crença no espiritual, mostrando o comportamento da sociedade do século XIX.

Como uma das narradoras da história (dividindo esse posto com Lockwood), Nelly narra a vida: de Catherine, de Heathcliff e de si mesma. A vida e os conflitos das diversas camadas da sociedade, com suas superstições, dúvidas e certezas. E essa narrativa pauta-se sobretudo no caráter comportamental da sociedade rural britânica dos séculos XVIII e XIX, regidas pelo moralismo, interesse na manutenção da propriedade por meio de uniões, desejo de vingança, orgulho, preconceitos e o desejo pelo amor. O orgulho apresenta-se desde o início da narrativa no perfil que a narradora traça de Hindley e Cathy em sua recepção a Heathcliff (BRONTË, 2000, p. 28-29). A indiferença infantil, vencida em Cathy e vencedora em Hindley, levará a uma vida de frustrações e à vingança que Heathcliff impõe às famílias Earnshaw-Linton no decorrer da trama.

Nelly Dean representa o caráter humano da narrativa, dividindo esse posto com Lockwood (WANDERLEY, 1996, p. 113). Entre o sobrenatural  o amor entre Heathcliff e Catherine, manifestado pela tormenta que aquele sofre após a morte de sua musa  e o real  o plano de vingança arquitetado e posto em prática por ele -, Nelly traz seu interlocutor e o leitor ao plano do humano. Ao mesmo tempo, faz suas incursões pelo místico, espiritual, em suas inúmeras referência aos castigos divinos pelas brincadeiras das crianças ou mesmo pela devassidão de Hindley. Nelly leva o leitor a mundos distintos. É a guia pelo físico e pelo metafísico. As recomendações e a dedicação a seus senhores e mesmo a Heathcliff  a despeito do tratamento que este lhe dá - mostram o local ocupado pelos servos. Não somente cumpre suas funções como criada, mas também como conselheira e orientadora de todos os que convivem com ela. É ela a responsável pela verdade imposta pelo cotidiano na história (idem, 119).

Mas se pensarmos ainda por esse lado, após a morte do pai e os destemperos do irmão, Nelly assume o papel de conselheira (e, por que não, mãe) de Cathy. É ela quem a aconselha diante das dúvidas que surgem quanto ao amor a Edgar e a perspectiva de um futuro desonroso ao lado de Heathcliff (BRONTË, 2000, p.54  55). A mesma Nelly abre os olhos de Cathy diversas vezes diante de suas dúvidas, e seguirá mantendo esse papel diante de Heathcliff (quando tenta dissuadi-lo daquele que será seu derradeiro encontro com Cathy viva); de Isabela, quando esta se entrega a uma vida péssima por seu casamento malfadado; de Catherine Linton, preservando-a do contato com Wuthering Heights e do plano de vingança de Heathcliff; e do próprio Lockwood, como narradora de uma história em que este se vê envolvido. Exemplificando, é a ela que Heathcliff recorre nos diversos momentos de sua vida; é nela que se refugia quando criança, quando adolescente em dúvida sobre os sentimentos de Cathy, quando adulto e mesmo quando algoz daqueles a quem ela ama. E Nelly jamais abandona esse papel em relação a ele. É a sabedoria que o povo possui levada àqueles que, embora com mais instrução formal, não possui a experiência da vida, e a devoção às pessoas que entram e saem no curso de sua vida.

A crença no sobrenatural leva-nos à visão do povo, das camadas mais baixas do campo. É o mundo rural com suas divisões e dúvidas. Embora se mostre bastante racional no decorrer da narrativa, percebemos que Nelly é pertencente à classe que crê nos castigos divinos, na presença de almas atormentadas no mundo dos vivos e na vingança que essas almas infligem aos que lhes causaram sofrimento em vida (talvez influenciada pela companhia de Joseph, pertencente à mesma camada social). Não à toa suas advertências a Cathy  durante as diversas manifestações de desdém ao outro mundo (BRONTË, 2000, p. 56) -, quanto a Heathcliff, na ocasião de sua invocação para que Cathy o venha perturbar enquanto este viver (BRONTË, 2000, p. 113) fazem-se veementes em diversos pontos da narrativa.

A construção que Nelly faz da história de Catherine e Heathcliff faz-se a partir de sua própria visão de mundo (idem, 121). É a voz da razão, fazendo contraponto à emoção (representada por Catherine e Heathcliff). Mesmo apresentando-se dicotômica, ela não perde o senso de 'força superior que rege o mundo físico', e a esse mundo que ela recorre para explicar aquilo que ela própria não entende. Esse caráter racional de Nelly é vencido algumas vezes pela emoção (por exemplo, no encontro derradeiro entre Cathy e Heathcliff, facilitado por ela  BRONTË, 2000, p. 106 - 107). Talvez por pena das duas pessoas envolvidas, talvez pelo desejo de transmitir alento a alma atormentada de Heathcliff, tentando fazer com que este enxergue um mundo melhor, perdoando os erros que os causaram mal no passado. Nem sempre, a razão vence a emoção, e a necessidade de Heathcliff fala mais alto ao coração de Nelly. É um exemplo do caráter humano que ela possui e dá à trama.

Fato curioso sobre a personagem, em algumas versões cinematográficas do livro, Nelly é colocada tal como na obra, enquanto outras a mostram como mera figurante ou mesmo a eliminam. Pensando especificamente nas duas versões mais conhecidas (1939, com Laurence Olivier e Merle Oberon; 1992, com Juliette Binoche e Ralph Fiennes), a primeira versão elimina toda a carga dramática que Nelly possui como narradora. Sequer a apresenta, senão como mera figurante. Já a segunda versão apresenta uma narradora extra  a própria Emily Brontë. Desta vez é dado a Nelly um papel mais relevante, próximo ao que esta desempenha na narrativa. A carga dramática fica pouco a desejar comparativamente ao livro. Alguns destaques dessa análise: o caráter de conselheira, orientadora é notório nessa adaptação, juntamente com todo o misticismo que permeia o comportamento. Contudo sua relevância como narradora perde-se no texto cinematográfico, como se não tivesse importância como narradora, presente a todos os fatos e em todos os momentos; vivendo as oportunidades de observar e refletir sobre a transitoriedade da vida, as amarguras do ser humano, o orgulho que a sociedade impõe ao homem e a crueldade injustificada. Essa reflexão faz com que a narrativa seja permeada de visões críticas e opiniões que rendem grandes lições até hoje.

Finalizando, a riqueza que a personagem possui é inestimável para a obra. Todas as personagens formam, ao redor de Nelly, um círculo orbital, intimamente ligadas a ela como que por uma espécie de cordão umbilical. O caráter maternal de Nelly fica claro em todo o texto. Na ausência de uma figura materna para os irmãos Cathy e Hindley, para Heathcliff, para Isabela, Hareton e Catherine Linton. Não se vêem mães na narrativa. Sua presença é sempre interrompida em determinado ponto, sem que se conclua, ou mesmo se inicie a criação dos filhos. Nelly assume esse papel do início ao fim da vida  exemplo claro se pensarmos em relação a Cathy, Heathcliff e Catherine Linton.

Ela transita entre a paixão (Wuthering Heights) e a razão (Thrushcross Grange), levando um elemento ao outro. Assim como o cenário mostra o ponto e o contraponto, o comportamento de Nelly cumpre o mesmo papel. Ela é a ponte que une os dois lugares, opostos como o caráter do amor narrado e da própria narradora  às vezes racional, às vezes tão passional como Cathy e Heathcliff. Não à toa comparamos Nelly e o movimento yin-yang: o equilíbrio da narrativa é dado por ela e por sua presença nos diversos espaços e tempos da narrativa. A riqueza que seu ponto de vista dá à história é inestimável. Sem dúvida alguma, sem essa narradora, a história não seria a mesma.

BIBLIOGRAFIA

BRONTË, E. O morro dos Ventos Uivantes. São Paulo: Ediouro, 2000.

WANDERLEY, M. C. A voz embargada  Imagem da mulher em Romances ingleses e brasileiros do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1996.

CANDIDO, A. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2002.

BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

[1](Licenciado em Letras (Português/Inglês) pela Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL), Especializando em Psicopedagogia pela Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL), professor de Língua e Literatura Portuguesa, Inglês e Espanhol da rede privada de ensino em São Paulo  SP)


Autor: Marcos Ramos Penteado


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