A Caçada Inglória De 'seu' João
Hoje em dia essa estória não seria uma das mais
politicamente corretas por tratar do ato de se caçar animais silvestres. Mas
levando-se em consideração que ela se passa aqui pelas bandas de Goiás, na
longínqua década de 50 e que a carne de caça era comum na alimentação, fica bem
mais aceitável.
Seu João dos Santos, nosso personagem principal, na realidade já faleceu há
dois anos mas suas estórias continuam aparecendo. Essa foi seu filho que me
contou:
João era homem de princípios rígidos, sério, religioso – mas como bom
fazendeiro também era bom de prosa, tomava umas pinguinhas, boa gente. Um de
seus orgulhos era o de ser bom caçador. Tinha muitas estórias confirmadas
"à la Terta"
por sua esposa Dona Hilda. Só que essa ele não contava, contou pouco tempo antes
de morrer, acho que foi pra dividir o peso do fardo, que para ele era por
demais pesado.
Seu João tinha um companheiro por nome "Amirto", também respeitável
dono de fazenda da região, única testemunha / cúmplice do acontecido.
Combinaram os dois, como de costume, sair com a canoa em uma noite sem Lua para
caçar capivaras nos barrancos do Rio dos Bois. Funciona assim: No escuro, os
dois dentro da canoinha à remo, em silêncio absoluto (os dois eram
afinadíssimos), não se falava nada, somente gestos e em último caso
sussurrava-se. Vão descendo o rio e como iluminação, usavam uma lanterninha à
pilha vagabunda.
Depois de algum tempo procurando por movimentação das presas às margens do rio,
Amirto passa o facho de luz por algo que se move há uns 30 metros. Os dois se
preparam pra entrar em ação.
Vão chegando devagarinho, silenciosamente pra não espantar o
bicho, e outra vez a luz acha a presa, seus olhos refletem a luz como dois
faróis. "Não é capivara, tá muito grande - é anta João!" Anta era a
sorte grande, dividindo por dois seria carne salgada pra mais de semana...
Silêncio, técnicas de caça são bonitas de se ver, e o homem, maior predador do
planeta faz com exímia perfeição essa tarefa.
A arma: Esse é um capítulo à parte, espingarda "Lazarina" de dois canos
"troxada"com mais ou menos 1,60 m de comprimento, carregada pelas bocas
com pólvora e chumbo.
Primeiro tiro: "Bum", certo no alvo. O bicho estrebuchou no mato, no
alto do barranco. Foram aproximando a canoa da margem e "bum",
segundo tiro, também certeiro. Amirto agora não faz mais silêncio, desce da
canoa e corre pra "alumiar" a enorme anta, Seu João já satisfeito
também vem atrás, recarregando a Lazarina para terminar o serviço. Amirto
embasbacado olha não acreditando e solta:
"João dos Santos, é um cavalo com sela e tudo que nós acertamos!!!"
O fato é que nas redondezas um pescador deixara seu cavalinho amarrado à uma
árvore junto ao barranco pra poder pescar.
Fez-se novamente o silêncio, mas dessa feita não para a espreita, mas para a
fuga dos dois desesperados. Voltaram à canoinha deixando o cavalinho ainda vivo
com dois tiros no pescoço, pé ante pé e com remadas leves, voltaram pra casa
sem trocar uma só palavra.
No dia seguinte Seu João estava adoentado, não se levantou cedo como de
costume, não fez a barba, não comeu, não tomou água. No mesmo dia desfez-se da
Lazarina, arma raríssima, feita por armeiros no séc XIX, vendeu pro primeiro
que apareceu. Nunca mais Seu João caçou. Amirto nunca mais tocou no assunto até
morrer. Soube-se mas tarde que o cavalo não morrera, tendo se recuperado e até
engordado. Seu João só revelou a estória para seu filho que hoje me contou
desse jeitinho.
Autor: Leonardo Jansen
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