O LIVRO



O LIVRO

 

            Abriu o livro e lembrou o que disse a velha sentada na calçada... Você poderá ficar rico... Aqui diz como. Ser rico era algo que lhe atraia. Mas ele sabia que o tal livro era proibido... Como poderia ter conseguido? O livro? Sim, pois se era proibido, deveria ter sido difícil de achá-lo, mas não: ele conseguiu encontrá-lo na primeira loja de artigos exotéricos que encontrou.

            Em meio a incensos, cristais, mensageiro dos ventos, duendes, fontes aquáticas, gnomos, bichinhos, coisinhas e coisinhas cujo único objetivo era o incentivo à exploração das forças ocultas. Viu o livro... O título? Apenas, O Livro. Era aquele mesmo, o que ele estava procurando. Onde ele encontraria poderes, dentre os quais, o de se tornar um afortunado, um dono do seu próprio destino, um deus dentro dele mesmo. Essa sensação de onipotência cresceu gradativamente, na medida em que folheava o livro... Fechou rapidamente. Se aquele era o livro proibido e poderoso ele deveria levá-lo consigo rapidamente, quase que escondido. Aproveitou para comprar uma bola de cristal caríssima, mas muito poderosa. Pronto! Decidido: dali para frente seria mesmo um feiticeiro, famoso e rico.

            Um feiticeiro afortunado... pensou enchendo o peito. Todos iriam procurá-lo. Suas consultas seriam muito cobiçadas até pelos mais nobres. Tornar-se-ia uma celebridade exotérica. Poderia ver o futuro de qualquer um em sua bola de cristal, ou até mesmo nas estrelas... Quem sabe nos ventos... Sim os ventos. Afinal, de onde eles vêm e para onde vão? Ninguém sabe... Mas ele saberia o caminho dos ventos e poderia afirmar o destino de um homem através desse seu dom. Os sonhos seriam bobagens explícitas de enigmas facilmente decifráveis e ele não teria dúvida em qualquer que fosse o seu significado.

            No caminho de casa, inebriado em seus pensamentos mesquinhos, mas coerentes, lembrou-se da velha. Uma velha feia, quase nojenta, acabada, sem nada a não ser um lenço sujo em volta do rosto enrugado de boca sem dentes... Ela tinha o livro. Ofereceu-lhe os seus serviços... Falou do livro como se fosse um objeto poderoso que poderia fazê-lo ganhar o mundo. Ele temeu... Evitou-a. Foi embora... Mas não conseguiu esquecer o livro. E de maneira tão fácil ele, o livro, estava ali em suas mãos... No entanto, como aquela velha não fez o uso dos poderes daquela obra para benefício próprio, se ela o tinha em mãos? Já sabia! Claro! O livro estava destinado a ele... A velha certamente seria uma alma predestinada a lhe entregar aquele presente. Em sua recusa inicial em aceitar o presente, tratou de colocar o livro novamente em seu destino... E ali estava ele com, com o seu tesouro nas mãos.

            Chegou em casa ansioso, finalmente, e com uma alegria ainda contida. Ter nas mãos o poder de possuir o mundo parecia algo pesado demais, mas ao mesmo tempo possível e desejável.  Morava sozinho, recém transferido do emprego. A cidade era pequena, não havia nela grandes atrativos. Estudar os segredos daquele livro seria o seu maior passa-tempo. Já era noite. Quis ler o livro, iniciar a sua busca ao infinito e ao oculto. Era sem dúvida alguém especial. Sentiu um frio na espinha. Teve medo do invisível. Uma emoção natural, ele quis dizer a si mesmo. Tentou a bola de cristal. Concentrou-se, tateou-a, rodeando com suas mãos, dedilhando um piano imaginário em tordo daquele cristal mágico... Pediu silenciosamente às forças ocultas do universo que lhe mostrassem o futuro... Olhou bem fundo. Franziu a testa, fez um grande esforço, uma certa força física até. No entanto, nada podia ver. A bola não lhe mostrava nada, nem uma brecha de futuro sequer, ou qualquer outra coisa, que não fosse a sua beleza translúcida. Tentou mais uma vez. Olhou desfocado, fez algo como uma oração, pediu e e e... nada! Desistiu. Achou que precisaria de mais algumas horas de treino.

            Tentou o livro. Lá poderia ter alguma indicação de como obter revelações através de uma bola de cristal. Ao folheá-lo viu uma receita. Leu atento: Como criar um demônio. Aiii. Sentiu certa dor emocional. Para que ele haveria de querer criar um demônio? Pensara intimamente que em O Livro encontraria números da sorte, dicas para jogos lotéricos, jogo do bicho ou até mesmo um manual de utilização de bolas de cristais, mas um demônio... Não. Um demônio era demais para ele. Mas pensando bem, um capiroto pequenininho não podia lhe causar grandes estragos. Aquele serzinho vermelho com chifres seria o seu escravo, o seu bebê e conseguia ali enxergar alguma beleza na criatura a ser elaborada... O diabinho lhe seria útil. Poderia dizer-lhe os resultados de jogos de azar, ou de futebol (sim, por que não?), o futuro, o oculto... Poderia até lhe dar uma mãozinha e realizar seus caprichos. Fazer pãozinho de queijo a partir de pedrinhas... Sua barriga roncou. Ele sabia que, sendo o escolhido, o destinatário universal de O Livro, não poderia ter medo do oculto. Ele seria o dono do mundo. Afinal, ele possuía um sinal em forma de folha no ombro esquerdo e ouviu quando criança o que a sua avó disse baixinho à sua mãe... Na verdade ouviu por alto. Quase não entendeu... Mas sabia que ele era especial. Que ele seria um afortunado. E o momento estava prestes a chegar.

Assim prosseguiu com a leitura da receita.

Pegar um ovo e fazer um pequeno furo. Escrever com sangue na casca os dizeres: aqui está se formando um demônio... Uuuuiiii. Mais um frio na espinha. Continuou, entretanto, sem deixar de lado a frieza proporcionada por sua coragem.

Envolver o ovo com esterco. Deve feder, pensou inevitavelmente, quebrando um pouco da magia daquele ritual de leitura. Retomou.

Guardar o ovo envolvido em esterco em um local escuro. No cantinho detrás do guarda-roupa, ele já tinha um lugar. Prosseguiu.

Diariamente alimentar o demônio com o seu próprio sangue, fazendo um pequeno corte no dedo mínimo, e perfurando a camada de esterco até alcançar o furo feito na casca do ovo. Assim o demônio crescerá...

Tomado por um impulso, pânico, desespero e nojo, fechou o livro e guardou longe. Não queria mais saber de tudo aquilo. Ficou com medo. Como conseguiria dormir ali, sozinho? Não conseguiu apagar a luz... Estava tarde. Queria a sua mãe... E se conseguisse ver o demônio mesmo com os olhos fechados e ele se mostrasse por através de suas pálpebras? E se ele fosse chupar o seu dedo mindinho durante a noite para se alimentar? E se o bichinho do mal estivesse debaixo da cama? E se ele estivesse atrás da porta? E se ele puxasse o seu pé?

O medo tomou conta de toda a sua alma. Como uma criança, se espremeu por debaixo dos lençóis. Perdera o sono. E assim, bem protegido, ficou durante horas daquela noite. Pensou na velha. Teve medo. Pensou na bola de cristal. Teve medo. Pensou no pequeno cramulhão. Teve medo... Sabia, tinha certeza: não conseguiria dormir.

Teve uma idéia: abriu a geladeira. Uma garrafa de vinho tinto suave ainda pela metade. A sua salvação. Tomou todo o líquido ali contido, através de goladas seguidas e incontroladas. Ótimo! Já estava zonzo... Naquele estado, poderia até aparecer um demônio de carne e osso de dois metros na sua frente que ele daria uma bela gargalhada, achando que a fantasia era engraçada. Foi dormir, finalmente, capotando na cama, sem lençol, sem medo, sem nada. Sentindo-se meio idiota, riu. Dormiu.

No dia seguinte, acordou com um pouco de dor de cabeça. Aos poucos recobrou a memória. Levantou-se de súbito. Juntou todos os artefatos exotéricos adquiridos na noite anterior, amarrou-os em um saco e quis jogá-los no lixo. Mas não fez isso. Foi ao trabalho. A sua rotina voltaria ao normal. Foi esquecendo as suas fantasias, deixadas ao longo do caminho, enquanto caminhava pela rua para a sua jornada. Passou pela loja naturalmente, sentindo uma dor aguda no seu bolso pelos valores despendidos naquele local na noite anterior.

No final de semana seguinte viajou para a sua cidade natal. Deu o tal livro de presente a uma tia sua, velha e bruxa, que adorava esse tipo de brincadeiras, quando foi visitá-la dizendo: Lembrei da Senhora, tia. A bola de cristal passou a ser adorno ornamental da casa da sua mãe. Até hoje, ao visitá-la, ele sente medo em olhá-la.

Até hoje, também, ninguém enricou. E o seu sinal no ombro esquerdo continua lá... É, agora para ele, apenas uma herança de sua bisavó paterna. Melhor assim.

 

 

Renata

25/03/2010


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