LÂNGUIDA



Tan, tan, tan...

Batia na porta, lânguida, imprecisa.

Havia esquecido as suas chaves. Estava cansada, indisposta.

 

A empregada abre e ela, depois de despejar um sorriso aguado a quem lhe permitira a entrada, vai para o quarto e se tranca. Um banho e pensamentos. Apenas isso lhe bastava. Enquanto a água tranqüilizava as suas costas, em um deslize morno, contínuo e suave, ela lembrou-se dele, daquele homem, o seu chefe. Não tinha certeza de tudo. Como pensar algo assim? Afinal, ele era casado, ela sabia.

 

Ela era jovem, solteira, independente. Nunca se apaixonara por nenhum homem capaz de levá-la ao altar. No entanto, o tempo irremediavelmente estava correndo. Já aos trinta e seis anos, pensar em casamento é algo urgente e inevitável. Mas se não conseguiu um casamento até então, poderia contentar-se apenas com o amor sincero de um homem, mesmo que casado. É isso. Um caso, nos dias de hoje, é até aceitável, pensou ela. Nós, seres-humanos, somos, no íntimo, como animais irracionais. Os animais não têm esse tipo de aprisionamento, seguindo apenas os seus próprios instintos. Eles não se casam, são livres. A sociedade começa a entender essa reação. E encontrou tantos argumentos quanto poderia para justificar a relação amorosa ilícita entre ela e ele, um homem casado.

 

Mas afinal, que tipo de pensamentos a atordoavam, criando nela esse tipo de angústia e agonia desmedidas que a faziam filosofar ingenuamente daquela maneira? Tais pensamentos eram o resultado de uma sucessão de acontecimentos que ocasionalmente a cercavam no trabalho. Contudo, nada era explícito. Sim, mas não poderia ser. Ela podia ler claramente as intenções contidas em cada gesto. Ela tinha certeza. Via os sinais.

 

Na primeira vez foi na mesa dele, do chefe. Sentou-se com uma papelada interminável referente a assuntos quase desinteressantes. Enquanto ela falava, ele a olhava nos olhos, profundamente. Ela pensou no que ele poderia estar pensando com aquele olhar. Mas não tirou a concentração do assunto a tratar. Enquanto falava, ele às vezes sorria, às vezes apenas a penetrava com o olhar. Foi a vez dele, do chefe, de falar e decidir. Enquanto argumentava, pegava em suas mãos. Era sinestésico demais. Pegajoso até. Porém, agia assim com todo mundo, parecia. Segurava suas mãos, sentia, muitas vezes, que as apertava entre as próprias mãos. Olhou sua mesa: a foto da família. Era um homem apaixonado. Não era nada, estava entendendo errado. Falava de sua esposa com uma fidelidade incondicional que poderia ser percebida a léguas de distância. Fim de reunião. Estava decidido. Não era nada.

 

Na segunda vez, ela estava chegando ao trabalho. Ainda saindo do seu carro, ouviu um psiu!. Era ele. Estava de saída. Baixou os vidros do veículo importado. Disse olá, penetrou-a novamente através do olhar, beijou-lhe as mãos e se foi, com um sorriso aberto. Está vendo? Será? Não. Ainda não pode ser.

 

Na terceira vez, ele aproximou-se dela, por trás da cadeira onde trabalhava concentrada. Passou as mãos em seus cabelos. Só então ela percebeu que ele estava ali. E, enquanto falava com ela sobre uma demanda que deveria ser providenciada, continuava passando as mãos nos seus cabelos. Ela olhou para um colega de trabalho que observava a atitude quase íntima demais para o que se é esperado em um local de trabalho. Ela não sabia mais... Sim, ou não, meu Deus? Não. Ainda não. Era o jeito dele, apenas isso.

 

Na quarta vez, ele a chamou para visitar um cliente. Ela era publicitária. Adorava trabalhar com criação e arte. O seu chefe era uns vinte anos mais velho. Ela nem o achava bonito, mas indubitavelmente era muito charmoso e atencioso. Eles quase nunca visitavam clientes juntos, mas aquela não era uma tarefa obrigatoriamente inexplorável. Sim. Foram os dois. Durante o percurso, conversas casuais, sobre faculdade, família, projetos, trabalhos. Chegaram ao cliente. Sentaram em reunião formal. Palavras e mais palavras. Ternos técnicos. Água e cafezinho. Assunto fechado. Ao saírem, o proprietário do estabelecimento comercial quis mostrar aos dois profissionais o progresso do seu projeto. Salas e mais salas eram escancaradas para que eles pudessem por as cabeças, sinalizar positivamente e dizer um que beleza!, ou um ótimo!. Em um dos corredores, enquanto conversavam em pé, sentiu seu corpo se aproximar ao dela. As cabeças olhavam todas para mais uma sala. Mas ela sentiu que ele não se distanciou o quanto podia, nem ela. Fim da visita. Que bom. Podiam voltar ao local do trabalho. No caminho, ela falou alguma bobagem. Ele riu e apertou-lhe acima dos joelhos com uma das mãos, rindo agradavelmente. Agora sim. Ela tinha certeza.

 

Nos dias seguintes, os bons-dias! do seu chefe eram retribuídos com um sorriso aberto, que ele elogiava. Cada despedida era precedida de um abraço apertado, quase íntimo, que pressionava os seus seios. Algumas brincadeirinhas, gestos descontraídos, risos. Mas todos os demais funcionários também participavam daquele clima motivacional. No entanto, ela sabia, quase podia ter certeza absoluta que, com ela, era diferente. Ele a estava cortejando, concluiu a jovem, sem medo de ser precipitada, tamanha a sua certeza. Sim, ela deveria tomar a iniciativa. Afinal, ele poderia ter medo de uma reação contrária, uma ação por assédio sexual, talvez. Contudo, ela estava favorável àquela situação. Sentia-se livre. Tinha aquela necessidade. Eles tinham uma espécie de código secreto. Algo como: ela sabia que era especial, ele sabia que ela sabia, ele concordava, mas tudo estava guardado na gaveta dele. Um correspondia ao outro tacitamente. Ela queria abrir a gaveta.

 

Foi ao computador. Escreveu um e-mail extenso. Declarou-se. E agora?, pensou. Viu a sua resposta: Muito bem, continue sendo sincera. Não entendeu. Só isso. Só essa resposta. E os beijos que dariam? E os almoços? As viagens? A cumplicidade dos amantes no auge de uma paixão? Onde estava aquilo tudo...

 

Seu conto de fadas estava exposto ao príncipe abertamente. O problema é que ele não sabia que era o príncipe e não poderia sê-lo. As suas condições não o permitiam, explicava-lhe pacientemente, como se ela fosse portadora de deficiência mental. Mesmo com muita dificuldade, disse ele, tenho que dizer não. As palavras com, muita e dificuldade não a deixaram no todo triste, pelo menos em princípio.

 

Que vontade de morrer. Por que ela tinha que entender tudo errado? Por que não se contentou com a beleza da subjetividade adolescente... O ficar horas pensando em será que foi isso mesmo que ele quis dizer? Por que apenas não se conformou com uma amizade calorosa? Por quê? Por quê? Por quê?

 

Não. Tinha que ser. Ela tinha certeza. Viu os sinais. Insistiu. Novamente não. Começava a constranger-se. Mas ainda não havia desistido. Um novo e-mail. Um convite. Um silêncio. E-mail, novamente. Silêncio. E-mail, mais uma vez. Silêncio. Já sei, pensou ela: uma mensagem no celular. Mandou uma, duas vezes. Silêncio. Após alguns minutos, o silêncio é quebrado através de um e-mail, desta vez, dele. Suas palavras se resumiam em uma frase que ficou martelando a sua cabeça, como um prego que é brutalmente enfiado na parede: Não me perturbe mais, já disse que não quero e não responda esta mensagem. Silêncio. Sua resposta: Te odeio e não olhe mais para mim. Lágrimas. Fim.

 

E todos os dias passaram a ser apenas dias. E o seu chefe, apenas o seu chefe que, a partir de então, a olhava atravessado. Ela, lânguida e apenas ela, sozinha. Concluiu que estava sendo criativa demais. Decidiu que dali por diante esconderia qualquer tipo de pensamento e não daria crédito aos tais sinais, ou códigos secretos de cumplicidade escondidos nas entrelinhas. Viveria a sua fantasia só para si, sem ninguém para atrapalhar, nem mesmo um príncipe que não sabe que é um príncipe e que ela é uma princesa. Dos seus ganhos e perdas ninguém precisaria saber. Se era uma fraqueza? Que fosse. Sentia uma alegria, que percebia sem perceber. Lânguida, apenas esperaria por ele, ainda o seu chefe, que, em algum momento de seu mundo irreal, a acordaria com um beijo e a levaria em seus braços em um final feliz interminável e inútil.

 

Terminado o banho, foi dormir.

 

Renata

26/03/2010


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