No Coração Da Cidade



Estou perdido na multidão, mais um rosto sem nome, mais um trapo humano a se arrastar na esperança da clemência alheia. Sentado no chão estendo meu braço, e minha mão, em formato de concha, suplica algumas migalhas que me servirão de sustento.

Já me acostumei aos desaforos, à fome, ao frio, mas ainda sinto nojo do meu cheiro. Crostas de sujeira me encobrem as unhas, por cima e por dentro, meu cabelo espigado e duro não me incomoda, mas o fedor...

Hoje estou na Esquina Democrática, muito movimento, um comício inflamado carregado de demagogia. Sinto pena destas pessoas que ainda sonham, eu parei de sonhar há anos. Prefiro mil vezes o teatro de rua da semana passada.

A fome lentamente drena minhas forças, caminho até a Praça XV para tentar a sorte próximo às lancherias. A busca diária do alimento em troca da humilhação. Atiram-me um pedaço de pão duro, melhor do que nada! Peço o resto de um caldo de cana que o freguês deixou, cerca de um quarto de copo. Pelo menos o copo é descartável.

A prefeitura está "limpando" os viadutos, tenho que achar outro lugar para morar, só problemas... não importa, dirijo-me ao Parque da Redenção. Sento-me num banco. Uma garotinha se aproxima, imagino que ela vá chorar, mas ela me oferece uma flor. Com lágrimas nos olhos apanho a rosa e por uma fração de segundos passo a acreditar na humanidade, então sua mãe a puxa violentamente explodindo imprecações e desaforos.
Desapareço em minha insignificância. Faço o balanço das moedas do dia, consigo éter, aspiro, esqueço, fujo...
Autor: Adriano Saraiva


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