Delegado de Polícia, ''O Patinho Feio''



Era uma vez, em um certo reino, houve uma revolução. Em verdade, golpe, em que a maioria ficou assistindo à supressão das liberdades e garantias individuais, inclusive as altas cortes judiciais, os ministros da confissão religiosa, os aristocratas, os donos de castelos, de plantações e de escravos.

Até os que "globalizavam" o " pão e circo", sem o pão, não se escandalizaram. Quase ninguém se escandalizou. Talvez uma meia-dúzia de escribas e menestréis, mas logo foram degredados ou jogados nos calabouços.

O canhão e a baioneta imperavam, e não demorou surgiram demônios assustadores como DOPS, DOI-CODS, DIP. Mecanismos de tortura dignos de terem sido contemplados na obra Vigiar e Punir de Michel Foucault eram utilizados contra os inimigos do rei.

Pois é, a ditadura brasileira instalada em 31 de março de 1964 sob falaciosos argumentos de proteção à investida comunista e na verdade tendo o democrático imperialismo norte-americano como eminência parda, foi marcada pela omissão e obscurantismo de muitos setores de poder e instituições da sociedade da época, mas talvez nenhuma tenha ficado tão estigmatizada e rotulada como a Polícia Civil, .

Admitamos que a polícia existente era do Estado e não a polícia do cidadão (aqui, a rigor, subsiste um pleonasmo), que houve de fato inconcebíveis excessos em malfadadas delegacias, e que o uso indiscriminado da odiosa e extinta "prisão para averiguações" foi uma constante.

Ora, quem mandava era o rei. E isso não quer significar uma defesa das aberrações cometidas. Contudo, a Polícia não foi a única instituição que serviu ao Estado incondicionalmente.

Demais instituições, de fiscalização e controle, tinham a incumbência de anular ou ratificar, assim como hoje, toda e qualquer arbitrariedade e abuso, existindo até legislação aplicada à espécie, já que a "lei de abuso de autoridade" é de 1965 (Lei 4.898/65).

Sim, porque o ordenamento jurídico penal daquele período é o mesmo de hoje, os vetustos Código Penal, com ideologia reformulada só em 1984 com o advento da Lei 7.209/84, e o Código de Processo Penal, ambos de 1940.

A elite hodierna é a mesma de outrora. E por que somente a Polícia Civil é destacada como um símbolo da ditadura? Nem mesmo os militares, que personificaram o regime, possuem essa pecha.

Muitos arremedos de intelectuais, por meio de uma pseudoarte, procuraram caricaturar os policiais civis, sobretudo delegados, criando tipos amarfanhados, com barbas desgrenhadas, vestindo camisas espalhafatosas e apertadas, com quase todos os botões abertos, correntona grossa de ouro no pescoço e uma figa como pingente, cometendo erros crassos de português, repetindo boçalidades e bordões "institucionalizados", e esbanjando subserviência com os poderosos.

Não obstante muitas dessas pessoas terem sido perseguidas pela ditadura militar, essa tentativa de vingança não contribui para formação do modelo de Estado que queremos. O nosso objetivo precípuo deve ter em mira a cooperação para aperfeiçoar as instituições democráticas, mas nunca de ridicularizá-las e menosprezá-las, perdendo-se de vista os avanços conquistados, a mudança de postura, o perfil da maioria dos veteranos e dos novos policiais que estão modificando paulatinamente a imagem da Polícia.

É evidente que há mazelas na Instituição, mas em todas há, não apenas na Policia Civil. Determinados sentimentos devem ser abandonados, sob pena de se constituir num recalque. A ditadura de Estado já acabou.

O descaso é tanto que muitos se esquecem, ou na verdade fingem que se esquecem, do seu papel de formadores de opinião, e tentam, como sofistas, fazer crer numa realidade inexistente.

Outro dia vi numa novela o "delegado" dizer que a testemunha estava presa para averiguações no prazo de dois dias. Ora, poderia-se ter aproveitado a oportunidade para alertar a população sobre possíveis arbitrariedades, deixando claro que, conforme o artigo 5º, inciso LXI da Constituição Federal: "Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente..."

Opta-se deliberadamente por renegar o interesse público em prol de um recôndito e pernicioso desejo de desforra, de incutir medo nas pessoas em prestarem um simples depoimento e acabarem por ficar presas.

Interessante que outras classes também com máculas por conta de sua participação, ou pior, muitas vezes pela falta dela nos tristes "anos de chumbo", são retratadas com todo respeito e admiração que hoje merecem.

Isso não é tudo, os representantes da Polícia Civil são vistos como verdadeiros analfabetos jurídicos. A oligarquia coronelista do mundo jurídico acadêmico e os vendedores de doutrina, sem embargo da qualidade ou não dos seus ensinamentos, tratam o delegado de polícia como alguém que não foi convidado para o baile, embora tenha que cumprir sua missão impostergável de zelar pela integridade dos convidados e de seu patrimônio.

Pasmem-se, muitos, como o renomado e saudoso Magalhães Noronha prelecionam que o delegado de polícia não pode fazer sequer um juízo de tipicidade para que se conforme uma conduta como o crime ou não, alegando que isso deverá ser feito pelo "dominus litis" da ação penal, no caso, o promotor de justiça (Curso de Direito Processual Penal, 2ª ed. Saraiva).

É evidente que o delegado precisa agir axiologicamente, ou seja, valorando os fatos e realizando sim juízo de tipicidade, pois disso depende uma série de consequências, como por exemplo, a prescrição, decadência, manifestação de vontade para que se possa lavrar ou não um auto de prisão em flagrante delito. E mais, para concessão de fiança, evitando que se tolha a liberdade do indivíduo.

Sustentar o contrário significa resquício de ditadura. O que falta é instrumentalizar melhor a Polícia. Se tivéssemos como garantia funcional a inamovibilidade, garantia conferida a juízes e promotores de justiça (art. 95, inciso II e 128, § 5º, inciso I, alínea "b", ambos da Constituição Federal), não seríamos afastados abruptamente como acontece com colegas que prendem mega-banqueiros mafiosos e outros indivíduos da mesma súcia.

A questão é que a Polícia Civil vem demonstrando ser uma Instituição a serviço da democracia e do cidadão, menos reativa e mais pró-ativa, aproximando-se cada vez mais da comunidade. O que vem incomodando muita gente. Cite-se o verdadeiro carnaval que certas classes de mente obtusa promoveram contra a PEC-549/06, que iria guindar o delegado de polícia e como corolário intrínseco também a toda a Polícia Civil ao lugar em que é seu de direito.

A vontade do Poder Constituinte Originário de 1988 foi substituída por uma vontade derivada e eivada de mesquinharia, rancores e falta de comprometimento com a sociedade. Mas ainda que tal situação demore a ser restabelecida por direito, no plano factual inarredavelmente temos que ser tratados como integrantes de carreira jurídica, já que mais hialino que isso, impossível, inclusive sendo o entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Os delegados de polícia podem ser os "patinhos feios", desprovidos de muitas garantias constitucionais, subsídios condizentes com a complexidade do cargo e respeito ao qual hoje fazemos jus. Porém, somos imprescindíveis e com papel fundamental e inafastável na proteção e garantia das liberdades individuais e estamos engajados para o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito e cingidos à Constituição Federal.

Assim como no conto do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, somos perseguidos, ofendidos e muitas vezes maltratados. Talvez porque não se conheça a nossa verdadeira natureza. A primavera vem apontando, logo os cisnes serão revelados.


Autor: João Romano Da Silva Junior


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