EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA E A GRAMÁTICA NO PAÍS DE EMÍLIA: DOS CONCEITOS E USOS DA GRAMÁTICA EM SALA DE AULA À PROPOSTA DE MONTEIRO LOBATO
Joaquim Cardoso da Silveira Neto (CEMEEB/UFS/SEC-BA)
Ana Carmen Fraga Correia Santana (CEMEEB/UFS/AGES)
RESUMO
Este artigo tem como principal objetivo discutir os conceitos e usos da gramática na escola e mostrar a proposta de Monteiro Lobato, na obra Emília no país da gramática. As reflexões acerca da gramática não são novas nem surpreendentes, não obstante, merecem sempre um espaço de discussão, pois os problemas no ensino da língua portuguesa perduram, embora haja uma grande e vasta produção acadêmico-científica sobre a gramática e o trabalho docente. Assim, o presente trabalho tem sua importância firmada na possibilidade de trazer novos olhares para a didática de língua materna, uma vez que elege uma literatura infanto-juvenil para mostrar que é possível repensar a gramática e sua eficácia, a partir da ludicidade, segundo Lobato.
PALAVRAS-CHAVE: Gramática; Usos; Conceitos; Ludicidade; Monteiro Lobato.
1 INTRODUÇÃO
A gramática vem do grego "hè gramatikètèkhrè", significando a arte de ler e escrever. A própria etimologia da palavra gramática deixa explícita a sua função, que é de usá-la nas produções escritas ou orais, ou seja, a gramática como capaz de dar funcionalidade à língua. Barros (Apud Faraco 2008, p. 145) diz que gramática "É vocábulo grego: quer dizer ciência das letras. E segundo a definição que lhe deram os gramáticos, é um modo certo e justo de falar e escrever, colhido do uso e da autoridade dos barões doutos".
O desenvolvimento e a evolução dos estudos lingüísticos vieram revelar que o desinteresse dos alunos é fruto de uma concepção errônea do ensino da língua. Antunes (2003, p. 89) diz que "O que está em jogo nesse ensino é prioritariamente pretender que o aluno saiba o nome que as coisas da língua têm", ou seja, um ensino versado em regras e desprovido de reflexão. É de práxis o dogmatismo do professor que chega a lousa e reescreve as regras da gramática exemplificando-as com frases isoladas sem nenhuma contextualização e relação com a vivência social. No entanto, a gramática tem total relação com a construção social de um povo, confirmando o que afirma Antunes "A gramática reflete as diversidades geográficas, sociais e de registro da língua". (2003, p. 89)
Portanto, percebemos que houve um distanciamento entre o homem (usuário da língua) e a linguagem (expressão do seu pensamento). É exatamente essa capacidade que o faz um ser inteligente e criativo, capaz de transformar as coisas e a si mesmo. E o instrumental que lhe permite "pensar que está pensando" é a linguagem.
2 OBJETIVOS
- Discutir e analisar o ensino gramatical tal qual acontece;
- Mostrar a visão da gramática proposta por Monteiro Lobato, em sua obra Emília no país da gramática.
3 MATERIAL E MÉTODOS
A metodologia empregada foi a bibliográfica, tendo por base a comparação entre os usos da gramática na escola e aqueles propostos pelo escritor infanto-juvenil. O material principal foi a obra Emília no país da gramática, de Monteiro, além de algumas observações das práticas de docentes de língua portuguesa.
4 RESULTADOS
O ensino de língua acaba por forjar a criatividade por estar centralizado na idéia de aprender algo que já é inerente ao ser humano. O aluno está indo à escola para esquecer o funcionamento da própria língua e tentar aprender a famosa gramática normativa considerada "difícil", "uma gramática fragmentada, de frases inventadas, da palavra e da frase isoladas, sem sujeitos interlocutores, sem contexto, sem função, frases feitas para servir de lição, para virar exercício". (ANTUNES, 2003, p. 31)
Na realidade, por mais que tenha evoluído no discurso, o ensino de língua portuguesa ainda traz muitas divergências entre a teoria e a prática, pois infelizmente vemos muitos professores que não conseguem dar praticidade ao que dizem e continuam pautados no ensino departamentalizado e fundamentalmente regido por regras que precisam ser embutidas, sem tentar ao menos estabelecer relações, apresentar uma funcionalidade. Acreditamos que é dentro desse contexto em que se encontram muitas escolas de língua materna.
Muitos professores afirmam que quando tentam fazer um trabalho diferenciado, valorizando o texto como foco do conhecimento gramatical, esbarram-se em grandes pressões que dificultam o desenvolvimento de tal proposta. Basta pensarmos nos grandes programas de conteúdos gramaticais que devem ser "rigidamente" seguidos para atender a diversas necessidades tais como: família, coordenação, vestibular, concurso, o próprio livro didático, entre tantos outros. Vemos dentro dessa lógica que se procura atender aos elementos externos do processo de ensino e aprendizagem de gramática, esquecendo-se do foco, que é o usuário da língua. Conseqüentemente, não há uma aprendizagem significativa do padrão ditado pela sociedade. Enfim, cometem-se dois crimes: ao aluno, pois nem se respeitou a sua variante porque lhe foi imposta uma outra e esta foi passada de forma fragmentada e desconexa, traduzindo a famosa idéia de alunos que passam onze anos da Educação Básica e afirmam "Eu sou péssimo em português, eu odeio português".
Citam-se a seguir exercícios presentes em diversos livros didáticos de língua portuguesa, aplicados por professores de língua materna, que confirmam essa afirmação:
1 - Retire do 1º parágrafo dois substantivos simples.
2 - Qual a classe de palavra que pertence o termo destacado no segundo parágrafo?
3 - Qual o tempo verbal dos verbos presentes na segunda linha do 2º parágrafo?
4 - Há no texto um adjetivo pátrio. Qual?
5 - Classifique os numerais presentes no 3º parágrafo.
Nada mudou, pois pressupõe-se que, ao elaborar essas perguntas, o professor deu uma excelente aula expositiva e agora cobra as nomenclaturas das classes gramaticais no texto. Apenas ele acrescentou à sua prática mais um elemento: o texto. Agora, são dois elementos que o professor usa e que o aluno não enxerga a função: o texto e a gramática. Para confirmar tal hipótese, basta pensarmos que o aluno pode responder a todos aqueles questionamentos sem ao menos fazer uma leitura integral do texto, pois as perguntas direcionam a que parágrafo o aluno deveria ir.
Neste processo, cria-se mais ainda a idéia dissociável de texto e gramática, pois nesta ótica gramática é apenas um conjunto de regras e nomes, e texto, um amontoado de palavras que serve como subsídio para retirada de termos gramaticais. Portanto, o texto foi apenas um pretexto para camuflar um trabalho fragmentado do processo de ensino gramatical e o professor ganhar o 'rótulo' de moderno, pois que trabalha com o texto em sala de aula. Mas, na realidade, continuou um "tradicionalismo sem funcionalidade".
E por que escrevemos entre aspas a expressão anterior? Porque entendemos que o problema não está em ser tradicional ou moderno, mas na visão que o professor tem de gramática e de língua. Se formos tradicionais, mas que respeitam o aluno e fazendo da gramática um foco para discussões dos seus elementos constitutivos necessários para compreendermos sua organização e estrutura, então, que sejamos tradicionais. O que não pode acontecer é ficar aderindo a esta ou àquela situação para ficarmos nos fazendo de modernos.
De acordo com Lajolo (2001, p. 52):
O texto não é pretexto para nada. Ou melhor, não deve ser. Um texto exige apenas na medida em que se constitui ponto de encontro entre dois sujeitos: o que o escreve e o que o lê; escritor e leitor, reunidos pelo ato radicalmente solitário da leitura, contrapartida do igualmente solitário ato de escritura.
O texto é, na realidade, conforme o pensamento da autora, um elo entre quem escreve e quem lê. Nesta perspectiva, o ensino de gramática baseado no texto continuou sendo descontextualizado, fragmentado, sem lógica, sem fundamento, de nomenclatura, inflexível, prescritivo. Dessa forma, temos:
·Uma gramática descontextualizada, por ser desvinculada do real da língua escrita ou falada na comunicação do dia-a-dia;
·Uma gramática fragmentada, por fazer o uso da palavra e da frase isoladas, sem contexto, "frases feitas para servir de lição, para virar exercício;
·Uma gramática de nomenclaturas, ou seja, voltada para "os nomes", em que o usuário precisa reconhecer, classificar e nomeá-los corretamente;
·Uma gramática inflexível e prescritiva, que visa apenas destacar o "certo" e o "errado".
Além de todas essas características elencadas, podemos observar ainda uma falha na aprendizagem, pois se a gramática é estudada de forma isolada, não permite uma progressão de aprendizagens, conforme expresso no depoimento da professora Rita de Cássia Damasceno, coletado e citado por Ezequiel Theodoro da Silva (2003, p. 38):
No curso de Letras tive alguns professores que trabalharam com obras importantes, relativas ao ensino da língua portuguesa; fiz até alguns trabalhos sobre o tema.
Saí da faculdade com muito entusiasmo e fui trabalhar em escola pública queria levar todo o meu conhecimento para a minha sala de aula, o que não foi possível.
Meu ânimo não acabou. Depois de ter lido boas obras, não consegui ficar indiferente diante de tantos problemas no ensino de língua portuguesa.
Nas minhas aulas sempre valorizei os alunos; gosto de ouvi-los e respeito suas opiniões. Quanto às aulas, procuro fazer o melhor: levo revistas, discos, fitas, filmes e recreações.
Embora tenha me esforçado para levar o aprendizado aos alunos, sinto que não obtenho grandes sucessos. Fico angustiada vendo que o ano passa e não consigo alcançar meus objetivos.
No curso 'Práticas para a dinamização da leitura nas escolas/Rondonópolis-1990', percebi a razão de não alcançar meus objetivos: simplesmente não sei definir que objetivos quero alcançar quando dou aula de língua portuguesa.
Daí o título deste trabalho 'Boa intenção sem direção...'.Reflito agora que não sei direcionar minhas atividades e isso faz com que meu trabalho fique bloqueado. E na emergência de um resultado, digo: nota. Acabo avaliando meus alunos de forma inadequada, e nem o aluno nem eu encontramos a finalidade das atividades aplicadas.
Concluo que o importante não é só conhecer o material a ser trabalhado; é importante também saber aplicá-lo. Acredito que é a boa aplicação de um material que vai desencadear bons resultados.
Na maioria das vezes, e por que não dizer 'sempre', a preocupação maior é com o material e não com o aluno. Sei que tenho um grupo heterogêneo em sala de aula, mas não trabalho com as diferenças e sim com o todo. Não faço a leitura do aluno; não permito, até certo ponto, que ele faça a minha. Com isso, mantenho uma distância entre mim e eles.
Ao ler Leitura no ensino de língua portuguesa, observei que as minhas boas intenções (e de boas intenções o inferno está cheio, como diz o ditado) estão desqualificadas. Levo para a sala de aula um bom material, mas faço dele um uso artificial, pois tudo gira em torno da gramática. Dou aula expositiva sobre gramática, exercícios e provas sobre gramática. Cobro do aluno regras gramaticais o tempo todo. O fato de eu cobrar regras gramaticais faz com que eu discrimine o aluno: só aceito norma padrão da língua e descarto a maneira de falar do aluno.
O que ensino, isto é, o que penso que ensino, é estilhaçado. Adoto o livro didático tenho-o como base para ministrar minhas aulas. Quando levo outro material, não sei como trabalhar. Passo um ano, dois com meus alunos e não seqüência às atividades.
Não sei se cabe aqui o seguinte comentário: trabalhar de forma fragmentada é contribuir com o sistema que fragmentar a sociedade para que ela fique impossibilitada de ter o senso da união.
Minha postura é de opressora, utilizo-me de materiais que favorecem a ideologia do sistema opressor. Inconscientemente, preparo meus alunos para aceitarem o que a classe dominante quer; não desperto neles o senso crítico, e tudo fica como está.
É importante ressaltar que as experiências profissionais de Rita de Cássia Damasceno podem ser as mesmas de grande parte senão da maioria do professor brasileiro do Ensino Fundamental e Médio. Na visão tradicional do ensino de gramática, avalia-se predominantemente a capacidade do aluno de reproduzir conhecimento. Atualmente, busca-se um ensino gramatical que amplie a capacidade do aluno de operar o conhecimento lingüístico. Isso significa que o aprendizado da gramática deixou de ser encarado como finalidade e passou a ser visto como instrumento utilizável para melhorar o desempenho dos usuários da língua.
Dentro dessa concepção, o estudo das formas e mecanismos gramaticais não pode ser feito fora do contexto em que ocorrem, pois é só aí que adquirem o seu pleno sentido. Mais importante do que saber identificar a ocorrência gramatical e lhe dar um nome é a competência de interpretar o seu papel na construção do sentido do texto em que está inserido, bem como a de saber acionar as formas e os mecanismos gramaticais mais apropriados para produzir o significado que se tem em mente. Neste contexto, Possenti (1996, p. 64) define gramática como sendo o "Conjunto de regras que devem ser seguidas; Conjunto de regras que são seguidas; Conjunto de regras que o falante da regra domina."
Dentre as diversas possibilidades de estudos e discussões da gramática, Possenti (1996, p. 64) caracteriza há três muito importantes para este trabalho que são a funcional, descritiva e normativa. A gramática funcional privilegia o uso. Todo falante de uma dada língua possui, antes mesmo de entrar para a escola, os mecanismos básicos do funcionamento da língua. Ele já sabe usar a língua antes de estudá-la. Ele domina o que se costuma chamar "gramática natural". A escola pode trabalhar a partir dessa gramática, oferecendo ao aluno novas formas de expressão, conduzindo-o gradativamente a ampliar a sua "gramática natural", oferecendo situações diferentes de prática lingüística. O objetivo central, nesse caso, é habilitar o aluno a práticas lingüísticas variadas, ampliando, pelo uso e pela convivência com textos, as diferentes formas de expressão lingüística.
A respeito dessa gramática funcional, Neves (2000, p. 52) diz:
Gramática é, acima de tudo, propiciar e conduzir a reflexão sobre o funcionamento da linguagem, e de uma maneira, afinal, óbvia: indo pelo uso lingüístico, para chegar aos resultados de sentido. Afinal, as pessoas falam exercem a linguagem, usam a língua para produzir sentidos, e, desse modo, estudar gramática é, exatamente, pôr sob exame o exercício da linguagem, o uso da língua, afinal, a fala.
A gramática descritiva preocupa-se em oferecer ao aluno a consciência do mecanismo do funcionamento da língua. Nesse caso, o aluno entra em contato com o processo de organização, descobrindo gradativamente as leis que presidem o ato de comunicação lingüística. A língua é um sistema e, como tal, possui uma lógica que pode, portanto, ser descrita, cientificamente. Estudar a língua sob a perspectiva descritiva é conhecer as leis desse sistema.
Nesta concepção, como diz Franchi (2006, p. 22), gramática:
É um sistema de noções mediante as quais se descrevem os fatos de uma língua, permitindo associar a cada expressão dessa língua uma descrição estrutural e estabelecer suas regras de uso, de modo a separar o que é gramatical do que não é gramatical. "Saber gramática" significa, no caso de uma língua, as categorias, as funções e as relações que entram em sua construção, descrevendo com elas, sua estrutura interna e avaliando sua gramaticalidade.
A gramática normativa tem o objetivo de propiciar ao aluno o domínio da língua-padrão, regida por leis baseadas principalmente em escritores de renome, e ao conjunto de hábitos lingüísticos vigentes numa determinada classe social. Chama-se gramática normativa porque dita as normas (regras) do uso correto da língua. O conceito de erro, nesse caso, constitui a inadequação às formas lingüísticas. Para Franchi (2006, p. 21), "Gramática normativa é um conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores."
Não existe, entre essas três perspectivas, um antagonismo ou uma exclusão, mas uma complementaridade. É evidente que, dependendo da série ou do objetivo específico no processo da aprendizagem, pode ocorrer a ênfase para uma delas. Nas séries iniciais, por exemplo, o professor deve dar prioridade à funcionalidade gramatical, seja porque é mais importante para o aluno saber usar a língua, seja porque o aluno não terá condições de compreender determinados aspectos da gramática descritiva. Mesmo em séries mais adiantadas, o professor não pode ater-se apenas à gramática descritiva ou normativa, mas deve, a partir da reflexão de um determinado aspecto lingüístico, conduzir o aluno à prática, mostrando as diferentes formas de comunicação.
Perini (2001, p. 34) nos chama a atenção e afirma:
Concordo, portanto, que é necessário ensinar o português padrão; mas esse ensino (o "ensino normativo" da língua) deve ser atacado com muita cautela e com toda diplomacia. Como qualquer materialpotencialmente explosivo, deve ser manejado com cuidado. Acredito que, com o desenvolvimento da leitura fluente e do hábito da leitura, a maior parte do problema acaba desaparecendo por si só.
Em qualquer série, o professor não pode perder de vista a prática. O conhecimento de uma determinada estrutura deve oferecer ao aluno condições para ampliar a sua prática lingüística. Portanto, está bem claro que não temos como intenção tecer críticas sobre nenhum tipo de gramática, modalidades de ensino e muito menos ser tendencioso a nenhuma corrente lingüística. Claro que esses parâmetros não vão resolver todos os problemas do ensino de língua portuguesa, mas eles já são uma tentativa de se refletir e repensar as práticas docentes no que se refere ao ensino gramatical.
5 DISCUSSÃO
Está claro que a escola tem e deve buscar mecanismos que façam o aluno chegar ao domínio da culta. Mas, para que isso aconteça, é necessário que se articulem sentido e vivacidade também ligados ao padrão. E, por que não fazer isto interconectado a uma literatura? Não para usá-la como pretexto, conforme descrita nas páginas anteriores, mas em total concordância e funcionalidade com os aspectos da língua, à medida que pode permitir ao aluno de uma forma mais dinâmica dominar conceitos e compreendê-los na perspectiva da literatura utilizada.
Para compreender bem esta proposta, basta adentrarmos no mundo da obra Emília no país da gramática, pois trabalha conceitos tradicionais de gramática numa perspectiva reflexiva, de forma lúdica e acoplada ao texto. O próprio Lobato, em carta a Oliveira Viana, afirma que "A crítica de fato não percebeu a significação da obra. Vale como significação que há caminhos novos para ensinar as matérias abstratas. Todos os livros podiam tornar-se uma pândega, uma farra infantil [...] o livro, como os temos, tortura as crianças e poderia diverti-las como a gramática da Emília está fazendo. O Anísio Teixeira acha que é toda uma metodologia que se abre. Amém. (1934)
O próprio personagem, Pedrinho, logo no início da obra, afirma que "Se meu professor ensinasse como a senhora, a tal da gramática virava até brincadeira. Mas o homem obriga a gente a decorar uma porção de definições que ninguém entende". (2008, p. 9) Vale frisar que embora seja um livro dedicado à infância, Emília no país da gramática ultrapassa esses limites, pois Lobato escreve e fala de gramática com tanta maestria que o livro passa a adquirir um caráter maior, podendo ser utilizado em qualquer nível de ensino. Por isso, apresenta-se a seguir a proposta de ensino gramatical de Monteiro Lobato com base em sua obra Emília no país da gramática.
Em Emília no País da Gramática, a crítica vai de encontro à maneira como a escola trabalha a língua materna. Claro que este é apenas um dos focos do livro, pois as entrelinhas podem mostrar que por trás da crítica à escola da língua estão também as denúncias sociais. Mas, interessa-nos aqui discutir a maneira como Lobato percebe um novo ideal de escola e principalmente perceber a forma como a gramática é trabalhada na obra. Logo, enxergamos uma semelhança ou até mesmo uma antecipação dos novos ideais de educação[1] na obra de Lobato. E, ainda em carta, Anísio Teixeira (1998, p. 65-6) diz que "Inclusive Emília no País da Gramática nos proporciona, associado ao estudo gramatical uma discussão lingüística e um novo olhar sobre o trabalho de gramática com a criança na escola".
Monteiro Lobato estrutura Emília no País da Gramática em 27 capítulos, permitindo ao leitor viajar por um mundo de magia e fantasia, personificando a gramática de forma ativa e criativa, predominando o tom de conversa, estabelecendo uma relação de proximidade e cumplicidade com os mestres e aprendizes da língua. Debruçar-se em Emília no País da Gramática é viajar por um novo país, realizando descobertas e percebendo o caráter afetivo na construção do saber. É também perceber o poder analítico do autor para que seus personagens fixassem conceitos tão mal trabalhados na escola.
O próprio título da obra caracteriza a busca de ligações e semelhanças entre a língua e situações reais do dia-a-dia, pois a gramática será um país, construído de classes e situações que a organizam. Cada capítulo traz em si também uma marca característica de um elemento funcional da língua. Como por exemplo, podemos citar o capítulo IV, cognominado "Em pleno mar dos substantivos". Mar tem significado amplo, grandeza, extenso, que se pode navegar. É por meio dos nomes que muitas classes ganham funcionalidade. O adjetivo, por exemplo, vem atrelado ao substantivo. Já o capítulo VIII tem por título O acampamento dos verbos. Acampar pressupõe mudança, arrumação de vestimentas, enfim, muitas transformações.
Também aparece outra analogia no capítulo XIII, chamado por Lobato "Casa da gritaria". Lógico que a classe gramatical representativa desta metáfora é a interjeição. Temos também como um dos títulos "Senhora Etimologia". O termo no cotidiano é entendido como alguém que tem mais experiência e como a etimologia remonta à origem das palavras, fica clara a comparação. Outra comparação bem interessante presente na obra é a do capítulo XIX "Os domínios da Sintaxe", por ser a mesma a parte da gramática que coloca as palavras em ordem "mandona, ditadora de regras". Pelo exposto, já se evidencia o caráter lúdico da obra, fazendo da gramática um país que nos permitirá aprender brincando e acima de tudo relacionando idéia. Essa que é hoje um dos principais focos de discussões da aprendizagem, a capacidade de estabelecer relações.
A obra inicia com o seguinte título "Uma idéia da Senhora Emília". Neste tópico, Monteiro nos põe diante de um mundo criativo, em que sua personagem xereta Emília faz um convite a Pedrinho. Ela o convida para após terminar a lição com dona Benta fazer uma viagem ao "país da gramática". Pedrinho afirma não existir este país, pois gramática é um livro, porém, Emília afirmou que tanto existe que é capaz de ir visitá-lo montados no rinoceronte sabidão. Além da ludicidade presente nesta descrição, vale destacar a maneira tranqüila com que Lobato apresenta alguém para ensinar gramática, o primeiro parágrafo da obra: "Dona Benta, com aquela paciência de santa, estava ensinando gramática a Pedrinho". (p. 1)
A viagem dos meninos começa com a percepção de muitos zumbidos. Vejamos como isso acontece:
"Que zumbido será esse? _ indagou a menina Parece que andam voando por aqui milhões de vespas invisíveis.
_ É que já entramos em terra do país da gramática _ explicou o rinoceronte.
_ Estes zumbidos são os Sons Orais, que voam soltos no espaço.
_ Não comece a falar difícil que nós ficamos na mesma observou Emília sons orais que pedantismo é esse? (p. 2)
Esta citação explicita uma crítica forte aos que procuram usar de um vocabulário difícil e técnico para poder explicar determinados conceitos, a estes, Monteiro, através de sua porta-voz, está chamando de pedantes. Não se quer negar aqui a aprendizagem dos nomes e dos conceitos, mas que o professor de Língua Portuguesa tente aproximá-los o máximo possível do mundo real dos seus educandos.
Após a fala da Emília, o rinoceronte diz:
_ Som oral quer dizer som produzido pela boca. A, E, I, O, U são sons orais, como dizem os senhores gramáticos.
_ Pois diga logo que são letras! gritou Emília.
_ Mas não são letras! protestou o rinoceronte._ Quando você diz A ou O, você está produzindo um som, não está escrevendo uma letra. Letras são sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons. Primeiro há os nos orais, depois é que aparecem as letras, para marcar esses sons orais. Entendeu? (p. 8)
Vê-se que os conceitos não deixaram de ser trabalhados, mas este contexto e funcionalidade dos conceitos permitem uma maior apreensão das definições estudadas. Observe que o próprio texto cita a palavra gramática: "São sons orais, como dizem os gramáticos". É nesta mesma perspectiva que Lobato vai discutindo na entrada da cidade os conceitos de palavras, sílabas, vogais, consoantes, acento tônico, classificação das palavras quanto ao acento tônico e tantos outros.
Na seqüência, Lobato apresenta uma cidade chamada Portugália. Para não fugir ao seu tom crítico, o narrador diz: "Era uma cidade como todas as outras. A gente importante morava no centro e a gente de baixa condição, ou decrépita, morava nos subúrbios". (p. 11) Além de fazer uma excelente metáfora para facilitar a aprendizagem da língua, o autor anuncia uma crítica político-social relacionada à divisão de classes presentes nas cidades, mostrando as desigualdades sociais.
No campo da língua, esta símile é usada para aprendizagem do conceito de arcadismo, tão bem explícito no fragmento seguinte "Essas coitadas são bananeiras que já deram cacho explicou Quindim. _ Ninguém as usa mais, salvo por fantasia e de longe em longe. Estão morrendo. Os gramáticos classificam essas palavras de arcaísmos. Arcaico quer dizer coisa velha, caduca". (p. 12)
Além de trazer o conceito de forma criativa, podemos perceber um caráter lingüístico de evolução da língua, ou seja, a obra de Lobato já apresenta questões lingüísticas e valoriza a posição do falante no trato com a língua. A citação seguinte revela perfeitamente esta análise e, como não poderia faltar, também está atrelada a uma crítica social "As coitadas que ficam arcaicas são expulsas do centro da cidade e passam a morar aqui, até que morram e sejam enterradas naquele cemitério, lá no alto do morro. Porque as palavras também nascem, crescem e morrem, como tudo mais[2]. (p. 12)
Para completar e fixar o conceito de evolução das palavras, Lobato faz com que Emília vá estabelecendo diálogo com determinadas palavras e estas vão explicando o seu processo de evolução e afirmando que só são usadas por quem gosta de ser antigo. Neste mesmo tom imaginativo, é apresentado o conceito inverso de arcaísmo, os neologismos. Aquelas foram caracterizadas como palavras velhas, cansadas, quase sem ação. Estas novas e barulhentas, porém, precisam envelhecer um pouquinho na boca dos falantes, para poderem ir ao centro da cidade. As citações seguintes expõem este contexto:
Narizinho parou diante duma palavra muito velha, bem coroca, que estava catando pulgas históricas à porta dum casebre. Era a palavra Bofé.
_ Então, como vai a senhora? perguntou a menina, mirando-a de alto a baixo.
_ Mal, muito mal respondeu a velha. No tempo de dantes fui moça das mais faceiras e fiz o papel de Advérbio. Os homens gostavam de empregar-me sempre que queriam dizer Em verdade, francamente. Mas começaram a aparecer uns advérbios novos, que caíram no gosto das gentes e tomaram o meu lugar. Fui sendo esquecida. Por fim, tocaram-me lá no centro. 'Já que está velha e inútil, que fica fazendo aqui?' disseram-me. 'Mude-se para os subúrbios dos Arcaísmos', e eu tive de mudar-me para cá.
Narizinho ia dizer-lhe uma frase de consolação quando foi interrompida por um bando de palavras jovens, que vinham fazendo grande barulho.
_ Essas que aí vêm são o oposto dos Arcaísmos disse Quindim. São os Neologismos, isto é, palavras novíssimas, recém-saídas da forma.
_ E moram também nestes subúrbios de velhas?
_ Em matéria de palavras a muita mocidade é tão defeito como a muita velhice. O Neologismo tem de envelhecer um bocado antes que receba autorização para residir no centro da cidade. Estes cá andam em prova. Se resistirem, se não morrerem de sarampo ou coqueluche e se homens virem que eles prestam bons serviços, então igualam-se a todas as outras palavras da língua e podem morar nos bairros decentes. Enquanto isso ficam soltos pela cidade, como vagabundos, ora aqui, ora ali.
Estavam naquele grupo de Neologismos diversos que os meninos já conheciam, como Chutar, que é dar um pontapé; Bilontra, que quer dizer um malandro elegante; Encrenca, que significa embrulhada, mixórdia, coisa difícil de resolver.
No capítulo III, a obra apresenta mais uma importante discussão no que tange à língua falada aqui no Brasil. Observa-se nisso que há uma expressa vontade de se propor uma ampla revisão de alguns conceitos velhos no entorno da língua como, por exemplo, se se fala português ou brasileiro, já que a língua é um tanto quanto diferente da de Portugal. Mais uma vez o próprio título já remete às questões sociais: Gente importante e gente pobre. (p. 15):
A cidade de Portugália dava a idéia duma fruta incõe ou de duas cidades emendadas, uma mais nova e outra mais velha. A separação entre ambas consistia num braço de mar.
_ A parte de lá explicou o rinoceronte é o bairro antigo, onde só existiam palavras portuguesas. Com o andar do tempo essas palavras foram atravessando o mar e deram origem ao bairro de cá, onde se misturaram com as palavras indígenas locais. Desse modo, formou-se o grande bairro de Brasilina. (p. 15).
Completando sua ironia em relação a pobres e ricos e discutindo conceitos da gramática, Lobato trabalha neste capítulo as classificações dos substantivos. Estes são apresentados de forma contextualizada e funcional e, conforme já foi dito, de forma lúdica. A análise de algumas citações comprovará a idéia:
_ Sim, estou notando declarou a menina. Uns não tiram a mão do bolso e só falam de chapéu na cabeça. Outros parecem modestos. Quem são esses prosas, de mão no bolso?
_ São os Nomes Próprios que servem para designar as pessoas, os países, as cidades, as montanhas, os rios, os continentes, etc. Ali vai um Paulo, que serve para designar certo homem.
_ Estes Nomes Próprios explicou Quindim têm a seu serviço essa infinidade de Normas Comuns que formigam pelas ruas. Os Nomes Comuns formam a plebe, o povo, o operariado, e têm a obrigação de designar cada coisa que existe, por mais insignificante que seja. Qual será a coisa mais insignificante do mundo?
_ Cuspo de micróbio! gritou Emília.
_ Os Nomes Concretos são os que marcam coisas ou criaturas que existem mesmo de verdade, como Homem, Nastácia, Tatu, Cebola. E os Nomes Abstratos são os que marcam coisas que a gente quer que existam, ou imagina que existem, como Bondade, Lealdade, Justiça, Amor.
_ E também Dinheiro sugeriu Emília.
_ Dinheiro é Concreto, porque dinheiro existe contestou Quindim.
_ Para mim e para tia Nastácia é abstratíssimo. Ouço falar em dinheiro, como ouço falar em Justiça, Lealdade, Amor; mas ver, pegar, cheirar e botar no bolso dinheiro, isso nunca.
Sequenciando sua crítica à maneira tradicional de se trabalhar a gramática, no capítulo IV, Lobato evidencia bastante a imposição de nomenclaturas feita pelos gramáticos. Tal contexto pode ser muito bem mostrado na fala de sua personagem Emília: "Epiceno é o nariz dos gramáticos exclamou Emilia. Um defeito a gente deve corrigir. Xingar o defeito com um nome feio, não adianta". (p. 18) Sabe-se que Lobato foi reprovado, quando criança, na disciplina Língua Portuguesa. Este fato deve ter contribuído mais ainda para a não admiração do autor em relação às normas gramaticais e, sobretudo, à maneira como ela é "ensinada" nas escolas. Uma de suas falas contribuirá bastante para se compreender o contexto desta obra:
Da gramática guardo a memória dos maus meses que em menino passei decorando, sem nada entender, os esoterismos do Augusto Freire da Silva. Ficou-me da 'bamba' que levei, e da papagueação, uma revolta surda contra gramática e gramáticos, e uma certeza: a gramática fará letrudos, não faz escritores. (LOBATO apud GOUVEA, 1998)
Outro fato bem interessante a ser analisado na obra é a forma de definição das classes gramaticais, pois Lobato consegue estabelecer uma relação de interdependência entre elas, quando na maioria das gramáticas tais conceituações muitas vezes aparecem isoladas. Veja-se, por exemplo, o conceito de adjetivo do gramático Domingues Maia: "Adjetivo é a palavra que exprime qualidade (concreta ou abstrata), estado ou propriedade do substantivo". (2000, p. 91) Observe-se agora a definição de Lobato dentro de um contexto maior em que fica muito nítida a funcionalidade do adjetivo acoplada à do substantivo. "Os adjetivos, coitados, não têm pernas; só podem movimentar-se atrelados aos substantivos. Em vez de designarem seres ou coisas, como fazem os Nomes, os adjetivos designam as qualidades dos Nomes." (LOBATO, 1994, p. 21)
Fica evidente que o conceito atribuído ao adjetivo, além de ter um contexto lúdico (pelo fato de estar personificando as duas classes: substantivos e adjetivos), também permite compreender que ele está numa relação de dependência com o substantivo. O escritor diz que os adjetivos só se movimentam atrelados. Enfim, existe uma compreensão maior de que quando se quer caracterizar as coisas que existem (substantivos) deve-se colocar ao lado dele o adjetivo. Nota-se inclusive o caráter subjetivo do adjetivo por se tratar de uma qualidade. Os exemplos citados pelo autor permitem um estabelecimento maior de relações. Na maioria das vezes, os gramáticos colocam ou citam frases, desvinculadas até mesmo da própria definição dada. O que não ocorre com os exemplos da obra. Para exemplificar isso, basta observar como Lobato contextualizou seus exemplos em total concomitância com a personificação atribuída no início da definição de adjetivo:
_ Ali vai um exemplo disse Quindim. _ Aquele substantivo entrou naquela casa para pegar o Adjetivo Magro. O meio da gente indicar que um homem é magro consiste nisso atrelar o Adjetivo Magro ao Substantivo que indica o homem. (p. 21)
Alguém pode imaginar que essa forma de trabalhar deve chamar atenção no máximo de alunos até a quarta série. Mas, esta situação é relativa e quem vai fazer a diferença é o professor. Tudo irá depender do olhar e do grau de complexidade que o professor irá atribuir ao texto. É lógico que determinadas historinhas da forma como estão nos livros só podem ser usadas em determinado nível de ensino. Porém, vale destacar que, no caso de Emília no País da Gramática, não se trata apenas de uma simples historinha. Basta lembrar que o seu teor não é apenas um passeio pela gramática, em forma de contos infantis, mas, como é costume de seu autor, criticar a maneira de se trabalhar gramática foi apenas mais uma das críticas ao tradicionalismo.
Atrelado a essa crítica está o contexto social que o autor colocou em sua obra, pois, como já se viu, a personificação foi de um país, será que ele não pode ser o Brasil? A própria obra diz que o país da gramática separa pobres de ricos e quando as palavras ficam velhas, elas são descartadas. Comparemos esta situação com o sistema econômico capitalista industrializado, nascido no final do século XVIII em que as pessoas valem pelo que tem, não pelo que são.
Os alunos estiveram em contato com as primeiras décadas do século XX, compreendendo o contexto histórico e político, tendo que descobrir estes fatos nas entrelinhas de uma obra literária que trata na íntegra dos conteúdos gramaticais. Logicamente, desenvolve o raciocínio e a capacidade analógica. E o melhor de tudo pode ser a possibilidade de se colocarem na posição indagadora de Emília, que propõe desconfiar e criticar certos conceitos gramaticais que não dão conta de toda competência lingüística do falante.
A explicitação de Emília traz à tona a discussão entre lingüistas, gramáticos e filólogos. A boneca é tão ousada que atribui alcunha aos gramáticos de 'grilos' da língua, pois por mais que eles criem e recriem regras e normas, mexam e remexam, quem realmente vai solucionar o comportamento da língua é o falante. Nesta perspectiva, Emília no País da Gramática pode ser utilizada também para iniciantes do curso de Letras, com a função de proporcionar discussões sobre as variantes da língua.
Conforme exposto anteriormente, o gestor do processo de ensino e aprendizagem, o professor, é quem vai atribuir teor de adequação ao nível de ensino. Por exemplo, pode-se trabalhar com a classe dos pronomes, a partir do capítulo XI de Emília no país da gramática, denominado de Casa dos pronomes, de forma tão dinâmica, lúdica e viva, que o alunado começará a perceber que é muito fácil aprendê-la, pois ela não é estática. Vale a pena, portanto, destacar um fragmento do texto usado por Monteiro Lobato, que trata exatamente de fatores evolutivos da língua. Deve-se dizer que os discentes, ao lerem a obra, notarão um fato muito interessante que é a rivalidade entre os pronomes Tu e Você, essa rivalidade se configura como uma narrativa de ação, que consegue prender a atenção do alunado, pois este vislumbra movimento e disputa, e, assim, vão aprendendo que os dois pronomes supracitados são 'inimigos' declarados e os porquês de tal comportamento tão arredio entre eles.
Na obra lobatiana, o pronome Você já havia entrado do quintal e sentado à mesa com toda a brutalidade, empurrando o pobre pronome Tu do lugarzinho onde ele se achava. Via-se que era um pronome muito mais moço que Tu e bastante cheio de si. Tinha ares de dono da casa.
_ Que há entre aqueles dois? perguntou Narizinho. Parece que são inimigos...
_ Sim explicou o pronome Eu. O meu velho irmão Tu anda muito aborrecido porque o tal você apareceu e anda a atropelá-lo para lhe tomar o lugar .
_ Apareceu como? Donde veio?
_ Veio vindo... no começo havia umtratamento Vossa Mercê, dado aos Reis unicamente. Depois passou a ser dado aos fidalgos e foi mudando de forma. Ficou uns tempos Vossemecê e depois passou a Vosmecê e finalmente como está hoje Você, entrando a ser aplicado em vez do Tu no tratamento familiar ou caseiro. Num andar em que vai, creio que acabará expulsando o Tu para o bairro das palavras arcaicas, porque já no Brasil muito pouca gente emprega o Tu. (p. 23)
A próxima classe a ser trabalhada é:
_ Agora iremos visitar o Campo de Marte onde vivem acampados os Verbos, uma espécie muito curiosa de palavras. Depois dos Substantivos são os Verbos as palavras mais importantes da língua. Só com um Nome e um Verbo já podem os homens exprimir uma idéia. Eles formam a classe militar da cidade.
Nesta definição, o autor foi capaz de articular mais uma vez duas classes, fazendo o leitor perceber a estrutura fundamental da língua: os Nomes e os Verbos. Ao invés de definir verbo, como faz Maia (2000, p. 129) "Verbo é a palavra que designa um processo, estado ou fenômeno", Lobato define da seguinte maneira:
A maior parte dos Verbos assume sessenta e oito formas diferentes.
_ Nesse caso são os camaleões da língua observou Emília. Dona Benta diz que o camaleão está sempre mudando de cor. Sessenta e oito formas diferentes! Isso até chega a ser desaforo. Os Nomes a Adjetivos só mudam seis vezes para fazer o Gênero, o Número e o Grau.
_ Pois os senhores Verbos até cansam a gente de tanto mudar disse o rinoceronte. São palavras políticas, que se ajeitam a todas as situações da vida. Moram aqui em quatro grandes acampamentos, ou campos de Conjugação.
Da mesma forma que trabalhou o conceito de verbo, todos os demais conteúdos pertinentes a esta classe também estarão sendo objeto de reflexão. Vejamos alguns exemplos:
Verbo anômalo, que quer dizer, verbo anormal, da segunda conjugação.
_ Que complicação! Seria muito mais simples um E novo de pau para substituir o que apodreceu lembrou Emília.
Verbos regulares são os bem comportados explicou Quindim os que seguem as regras muito direitinhos. Verbos irregulares são os rebeldes, os que não se conformam com a disciplina. (p. 28)
No acampamento dos verbos há ainda um trabalho voltado para a transitividade verbal, pontualizados sobre o mesmo prisma das situações anteriores. A citação seguinte expõe muito bem a afirmação de que "Uns não sabem viver sem um complemento adiante, e por isso se chamam verbos transitivos. Outros dispensam o complemento e por isso se chamam intransitivos." Lobato, no capítulo IX, vem, mais do que nunca, mostrar que seus personagens têm muita intimidade com os lingüistas da atualidade quando afirma que "A cidade da língua costumava ser visitada apenas por uns velhos carranças, chamados filólogos, ou então por gramáticos dicionaristas, gente que ganha a vida mexericando com as palavras, levantando o inventário delas." (p. 29)
Percebe-se que se fosse para analisar cada classe na obra, a repetição estaria em voga, pois todas elas refletem a análise até aqui descrita, mas não se pode deixar de relatar um pouco sobre a sintaxe, apresentada na obra de Lobato como "Dona Sintaxe". Esta é muito bem definida por Lobato, quando compara com a forma de trabalho desenvolvida, nas escolas, pois muitas vezes os alunos apenas identificam os nomes da "Dona Sintaxe", mas não conseguem perceber como esta senhora dominadora coloca ordem na casa. E assim a "Dona" é definida:
Minha vida aqui é o que se vê. Tenho de estar fiscalizando todas estas senhoritas para que a cidade não vire salada de batatas. As frases que andam com a concordância na regra tornam-se claras como água da fonte e a clareza é a maior qualidade que existe. Tenho também de cuidar da Colocação ou da ordem das palavras na frase.
_ Então elas não podem arrumar-se como querem? perguntou Emília.
_ Absolutamente não. Têm de seguir certas regras para que o pensamento fique bem claro e bem vestido. A minha preocupação é sempre a mesma clareza. As frases formam-se para exprimir o pensamento dos homens, e a boa ordem das palavras na frase ajuda a expressão do pensamento. (p. 49-50)
Logo, não há como negar que o escritor Monteiro Lobato foi um bom crítico a tudo que esteve ligado à tradição, não ficando de fora o mundo escolar e, em especial, o ensino de gramática. Sua porta-voz é a boneca Emília, que abre o verbo, denunciando todas as incoerências do tradicionalismo gramatical e escolar.
6 CONCLUSÕES
Através da obra Emília no país da gramática de Monteiro Lobato, foi possível criar uma nova estratégia para o ensino de língua portuguesa no Brasil. Ele, através de Emília, narra uma envolvente aventura pelo país da Língua Portuguesa, a Portugália, onde as personagens descobrem o maravilhoso mundo que se esconde atrás das criticadas regras gramaticais. Essa narrativa de ficção pode ser utilizada como uma ferramenta para modificar a metodologia do ensino de Língua.
Por que, então, a maioria dos alunos faz de tudo para escapar do estudo da gramática, como se detectou nos depoimentos coletados?
A maioria das crianças é um tanto quanto avessa a seguir regras. Sendo assim, o problema tende a piorar em se tratando do aprendizado da Língua Portuguesa no Ensino Fundamental. Já existe um preconceito de que aprender gramática resume-se em decorar diversas regras que, muitas vezes, não têm sua real utilidade compreendida. Para o aluno, não existe uma verdadeira necessidade de aprender essas normas, pois, a seu ver, ele possui uma imensa capacidade de comunicação sem seguir nenhuma lei. Então, para que decorar regras impostas pelos professores? Não costuma ser da feição da maior parte dos estudantes seguir padrões impostos, por isso, então, há uma grande defasagem no ensino, decorrente da ausência de interesse por parte dos discentes.
Se a aprendizagem de gramática for conduzida de uma forma que agrade os alunos, não há por que ocorrer essa aversão pelo ensino, deve-se encontrar uma maneira de atrair a atenção dos estudantes e já que todos gostam de brincar e se divertir, por que não utilizar esse argumento como uma ferramenta para mudar a visão do aluno em relação ao ensino? Se os professores demonstrassem aos seus aprendizes que é possível brincar com a língua, a relação ensino-aprendizagem não fluiria melhor?
Outra consideração a que chegamos é a de que o professor precisa sentir-se um agente de transformar realidades. E uma das realidades nas escolas é um ensino puramente mecanizado da gramática, esta que poderia contribuir com o desenvolvimento das pessoas. Basta uma mudança de foco. Uma dessas mudanças é a reflexão sobre os fatos lingüísticos e a própria gramática. Sabe-se que não se ensina língua materna, pois esta é inerente à espécie da língua, o que se trabalha são as variações e entre elas está a de ascensão social, a gramática normativa. É preciso colocar o educando para pensar a gramática, ou seja, ter uma aprendizagem significativa.
Aulas de Português supõem-se aulas de produções orais e escritas, leituras e muita interação. Na maioria das vezes, no entanto, estas aulas reduzem-se apenas à análise e nomenclatura de termos gramaticais. Monteiro, assim, trabalha a gramática com vida, criatividade e ludicidade, conseguindo trazer todos os conteúdos da gramática normativa numa ótica de aprendizagem significativa. É com articulação e conexão a contextos personificados que Lobato conserva a originalidade sem, no entanto, deixar de emitir suas críticas.
Logo, Emília no País da Gramática é uma obra que se enquadra nos padrões educativos atuais, pois consegue articular velho e novo, ou seja, a prender o necessário com muita criatividade.
Assim, a partir do lúdico, da imaginação, a gramática é apresentada e permite ser refletida, questionada através da leitura. É um avanço significativo, visto que o aluno é convidado a conhecer o texto e dentro dele estão os nomes, que gramaticalmente têm suas classificações discutidas de maneira divertida, o que desperta a atenção do alunado. Não há como negar a existência do diferencial entre apresentar apenas os conceitos e trazer para sala de aula o texto, a leitura e problematizá-la.
Esta conclusão deve-se ao fato do feedbackcom a professora, quando em seu depoimento diz
"Gostei bastante da proposta de trabalho. Em 2009, iniciarei o meu trabalho com esta literatura, mas, preciso rever, pois ela é bem produtiva, mas quando a avaliação foi aplicada, eles permaneceram fazendo as confusões quanto à classificação e identificação dos substantivos. Mas, quanto à forma que foi passado a assunto, não há o que se questionar, os alunos gostaram bastante, participaram mais."
Sem dúvida, a obra traz grandes contribuições, em função da própria forma em que é estruturada. Em todo o seu texto, as categorias e conceitos gramaticais, ao contrário do que correntemente aparecem nas gramáticas normativas, são estudadas a partir de um contexto funcional e lúdica, de uma perspectiva motivadora.
Em suma, aplicar a gramática proposta por Lobato no trabalho com língua portuguesa pode ser um instrumento que exercita o raciocínio e atenção dos alunos, levando-o à descoberta e ao entendimento da estrutura e do funcionamento da língua. Não era pretensão nossa aqui apontar uma solução para uma realidade tão complexa, mas acreditamos que seja uma boa estratégia para lidar com os conceitos gramaticais.
REFERÊNCIAS
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FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
FRANCHI, Carlos. Mas o que é mesmo "gramática"? (Organização/homenagem de Sírio de Possenti). São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
LAJOLO, Marisa. O Texto não é pretexto. In: Zilberman, Regina et al. Leitura em crise na escola. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.
LOBATO, Monteiro Lobato. Emília no País da Gramática. 40 Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
______.Monteiro. Emília no País da gramática. Edição Comentada. São Paulo: Globo, 2008.
MAIA, João Domingos. Gramática: teoria e exercícios. 4 ed. São Paulo: Ática, 2000.
NEVES, Maria Helena Moura. Gramática na escola. 5 ed. São Paulo: Contexto, 2001.
PERINI, Mário A. Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 2001.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado das Letras: Associação de leitura no Brasil, 1996.
SILVA, Ezequiel Teodoro da. A Produção da Leitura na Escola: Pesquisas X propostas. 2 Ed. São Paulo: Ática, 2000.
[1] Como resposta ao tradicionalismo no ensino-aprendizagem da educação, começam a surgir pensadores e tendências com novos ideais e redefinições do papel da escola. Surge assim, em fins do século XIX, um movimento na Inglaterra denominado Escola Nova, que se espalha rapidamente pelos países europeus e Estados Unidos, chegando ao nosso país em 1920, através de Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo. O escritor Monteiro Lobato, usando de uma linguagem lúdica dedicada ao mundo infantil, escreve obras que denunciam o autoritarismo presente nas escolas como reflexo dos problemas sócio-político-econômicos do país. A escola descrita por Lobato em suas obras revela o retrato do tradicionalismo brasileiro nos diferentes campos da sociedade.
[2] O último período desta citação faz certa referência ao sofrimento que foi a I Guerra Mundial. O narrador mostra suas percepções dos primeiros anos do século XIX.
Autor: Joaquim Cardoso
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