Dia de chuva



Dia de chuva

 

Domingo. Dia chuvoso. O tempo esquenta lá em casa. As crianças chegam molhadas pela chuva. Estão encharcadas até a alma. Um sorrisinho maroto, meio que sem jeito, a esperar meu blá, blá, blá de sempre. Olho para elas fico nervosa, preocupada, tenho receio que fiquem doentes. Mas desta vez não falo nada. De que adianta, já estão molhadas mesmo... Percebo entre elas um olhar de: será que a bronca não vem? Faço com que tomem um banho bem quente e se agasalhem, enquanto preparo um chocolate bem gostoso e quentinho. Enquanto vão se servindo do chocolate, seco o cabelo dos três ao mesmo tempo. Pareço uma máquina. Riem baixinho a cutucar-se. Finjo não ver e não ouvir. Melhor assim. Criançada sem juízo. Não pensam em nada, eu tenho que estar atenta a tudo. Não posso me descuidar em nenhum momento.

Puxa vida... Faz tanto tempo que isso aconteceu, mas para mim parece que foi hoje. Lágrimas de saudade escorrem pelo meu rosto. Uma saudade gostosa, de um tempo bom que se foi, mas que em mim permanece e permanecerá para sempre. Meus filhos pequenos. Minhas crianças.

Hoje estou eu a colher as flores que plantei, ao longo do caminho da minha vida. Meus filhos cresceram. Minhas netas chegaram. Sim, netas. Só mulheres. Gracinhas...                                         E hoje... Hoje é domingo, pé de cachimbo; cachimbo é de ouro, bate no touro; o touro é valente, bate na gente; a gente é fraco, cai no buraco; buraco é fundo, acabou-se o mundo... É... Domingo, dia de levantar mais tarde, dia de nosso almoço em família, casa cheia, crianças gritando, casa desarrumada, de pernas para o ar... Brincadeira de escolinha... Mamãe e filhinha... Karaokê... Depois a calmaria... Até o próximo domingo.

Já faz um bom tempo que acordei, acostumada que estou com o despertador a chamar-se às seis horas. Todos os dias... Todos os dias a mesma coisa. Ano após ano. E não é que é bom?                                                            Fico a rolar preguiçosamente na cama. A chuva bate forte na janela do meu quarto. (gosto dessa frase, soa gostoso...) Parece que o mundo vai acabar. Chove a cântaros. Só água. Muita. Nada de trovões, nem relâmpagos. A água cai torrencialmente como que para lavar o mundo, como que a limpar cada pedacinho, cada cantinho onde se acumulam pensamentos e obras dos seres aqui viventes.

Volto no tempo e me vejo criança. A criança que já fui um dia e que em mim permanece e que cobra que eu realize os seus desejos insatisfeitos. E ela se manifesta em mim, exigente, a querer que eu amplie meu mundo e a inclua. Claro que o farei, pois ela está em seu direito. Coloca-me então num beco sem saída e eu começo a sentir uma vontade imensa de andar na chuva, como sempre desejei e nunca fiz. É uma vontade, um desejo que vem de longe, muito longe e que eu resgatei através da minha criança interior. Uma criança eterna, inocente, espontânea. Essa criança simbólica, que carrega o que fui, a imagem ideal da infância que eu gostaria de ter tido, o registro de minhas experiências, de meus prazeres, frustrações. É a possibilidade de renascimento que existe em mim. Ela aparece em meus sonhos, em minha imaginação. Dou asas a ela...

Saio da cama, dou um jeito no esqueleto, faço minha higiene pessoal, meio que sem vontade. Chatice... Nenhuma criança gosta. E se gosta eu não sei. Não me contaram. E se contaram esqueci.                                                           Abro a porta da sala e deliberadamente não a fecho. E aí, libero minha criança interior, essa criança curiosa, alegre, brincalhona, exuberante, que sai saltitante, feliz. Ela, que esteve tanto tempo presa à mercê dos adultos, que julgam,que repreendem, fazendo com que ela se torne vulnerável a tudo e a todos. Ela emerge e me empurra, a me dar forças, como a dizer: vamos em frente,vamos recuperar nosso tempo. Olho então para os lados... Ninguém na rua, nem minha mãe está por perto, como se possível fosse. Por um tempo penso em mim, a olhar a chuva pela janela, segurando nas grades que dentro de casa me prendiam... Logo a seguir me aventuro na chuva, para viver minhas fantasias, meus desejos infantis reprimidos. E aí eu, eu que queria tanto estar com ela e nela e não pude, agora vou... Ah! se vou...    Paro debaixo de uma árvore que enfeita o jardim de minha casa. Ela compactua comigo. Seguro seus galhos com as mãos e os aproximo o mais possível do chão. Depois... Depois os solto com força e então, toda a água da chuva que nela estava, cai em mim. Lá estou eu, criança novamente, sem ser reprimida por ninguém, em meus vôos de fantasia...

A seguir abro o portão e saio, andando bem devagar, sem receio de molhar-me, de molhar-me mais. Claro, pois é só isso que eu quero... Molhar-me como nunca o fiz. Quero sentir os pingos da chuva em mim, a roupa colar em meu corpo. E daí? Essa sensação gostosa de liberdade, de maravilhamento! Ninguém a me repreender, a chamar minha atenção. Nem eu.

Vou andando como se o mundo fosse só meu e a chuva caísse só para que eu pudesse me sentir a dona da chuva..

Meus sapatos estão pra lá de encharcados. Resolvo tirá-los e jogá-los para o alto. E não é que eles caem na enxurrada? Rio a mais não poder. Rio pelo passado, em que não pude agir assim e pelo presente que estou vivenciando. Do presente que dei a mim.                                                                        Sigo em frente, sem desviar sequer de uma poça d água. Aproveito para nelas entrar e pular. Pular muito. Como sempre eu quis fazer e não pude, não devia. Canto alto: Vamos pular, vamos pular, vamos pular, vamos pular. E pulo a mais não poder. Manjar dos deuses!

Estou livre, consegui ser o que sou, sem ter aquele sentimento de inadequação, de isso você pode e isso você não pode. Ouvi minha criança e foi tão bom. Quantas artes reprimidas e todas elas inerentes à criança que fomos e sempre seremos e que os adultos, por terem tido a sua reprimida, não permitem que as crianças as realizem. E assim o mundo gira...

A água da chuva lavou e tirou de mim o não pode, o não deve, o excesso de responsabilidade, o abaixar a cabeça, o não saber dizer não, o conformismo, o pseudo- indiferentismo pelas coisas da vida, o receio de ousar, de ser diferente... E me deixou pronta para que eu seja eu mesma, em qualquer idade, em qualquer tempo. Pronta para que eu seja a Minha Senhora, a Dona de Mim, de meus atos, de minhas ações e que por tudo eu responda... Adulto - criança que sou e que sempre serei. Criança, que uma vez liberada... Ah criança, nunca se vá de mim...

Atravesso a rua correndo, sem medo do aguaceiro que desce numa velocidade danada. Corro de um lado para outro, sem me importar com o que possam pensar.                                         Os carros passam e deliberadamente jogam água em mim e isso me faz feliz, criança que sou. Os motoristas riem, pensando que foram tão engraçados. Pobres coitados. A graça maior foi pra mim.

Aos poucos a chuva vai diminuindo, até cessar completamente.

E aí... E aí, volto para casa feliz, realizada. Eu e minha criança, minha criança e eu, numa feliz cumplicidade.

Ainda dará tempo para um banho quente, secar meus cabelos e tomar um chocolate quentinho, antes que todos cheguem, para mais um almoço de domingo...

 

Heloisa P. Paula Reis


Autor: Heloisa Pereira De Paula Dos Reis


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