Sussurro



Sussurro Tarde da noite. Ele já estava debaixo dos lençóis quando uma voz indefinida expressava algo como "água". Achou que não fosse nada. Ademais, o sobrinho lhe dera, alguns anos atrás, um cão treinado. Minutos depois a voz tornou a clamar por água. Dizia, "ó de casa, pode me dar um copo d?água?". Deveria ser horário adiantado, pois o silêncio sepulcral tem marca própria. E depois, há o cão, embora não desse mostras de manifestação alguma. "Ó de casa...", aquilo o irritou, respondeu aos brados que já ia, e indagou quem era. "O senhor não me conhece", respondeu a voz lá de fora, "quem me mandou aqui foi seu vizinho, o Amadeu. Ele disse que eu podia usar o telefone". Voz masculina, beirando os trinta, se tanto. Com muito custo foi do quarto para a sala, resmungando. O fio do microondas estava no caminho. Esquecera, e quase o aparelho vai para o chão. A cozinha fica pegada a sala e sob a pia há um garrafão de água. "O senhor me desculpe ? tornou a voz lá de fora, percebendo a movimentação dentro da casa - houve um acidente na rodovia. O ônibus capotou. O seu Amadeu me trouxe até aqui, para que eu pudesse telefonar." Ele ouvira tudo mas não respondia. Procurava uma moringa ou outro vasilhame qualquer para dar água ao forasteiro, cuja maneira de falar outra coisa não exprimia senão sinceridade. A casa era um misto de alvenaria e tábuas. Separou também um copo, a moringa era para levar. Nunca usava o telefone e já nem se lembrava onde estava o aparelho. "O Amadeu tem cada uma...", pensou, tentando se lembrar. Ao todo, formavam meia dúzia de casas entre o asfalto e a usina. As casas não eram exatamente vizinhas e tampouco distantes. Eram esparsadas num raio de meio quilometro, e cada vizinho, vez por outra, se ajudava como podia. A usina fechara há muito. "Na gaveta", lembrou-se, "o telefone está lá, na gaveta do armário da sala", um armário que continha papéis velhos e pratos. Ao abrir a porta, derrubou uma banqueta próxima e o que havia sobre ela. O ruído chamou a atenção do visitante, que indagou, "tudo bem aí dentro?". Pouco depois o homem abre a porta da casa e acende a luz da varanda. O cão veio ter a seus pés e, naquele segundo, ele se determinou a ligar para o sobrinho. Esticou a mão mostrando o copo de água e disse: - Tome, pegue a água, pode se aproximar, pelo visto o cachorro foi com a sua cara. Alguma vítima no acidente? - Foi um acidente feio ? respondeu o forasteiro, que sorvera de um gole só ? me desculpe o incômodo. O seu Amadeu estava por lá e socorreu algumas pessoas. Preciso muito avisar minha família. - Faça o favor de entrar. Quem sabe você me ajuda a engatar o telefone na nova tomada. Estou com problemas na fiação, trocaram tudo e... - Gostaria muito de ajudar ? adiantou-se o forasteiro - mas sou cego. - Bem...- volveu o homem, fazendo a longa pausa que sucede a surpresa ? então fazemos uma dupla e tanto... O Amadeu ficou de te buscar? - Daqui uma meia hora, mais ou menos...- respondeu o forasteiro, que sorria ? o que faço com o copo? - Me dê aqui. Quer mais? Posso colocar açúcar...Não? Vamos nos sentar um pouco na varanda. Segure no meu braço. Há um sofazinho de dois lugares aqui, ganhei dos meus netos. Sentaram-se e o cão sentou-se aos pés deles. Com exceção de um ou outro inseto longínquo, nada se ouvia. Permaneceram quietos por longos minutos. - Muito sossegado esse lugar ? disse o rapaz, ao fim de algum tempo ? faz tempo que o senhor mora aqui? - Alguns anos ? respondeu o homem ? sabe como é a vida, uma caixinha de surpresas. - Nem me diga ? respondeu o rapaz. Prosearam um pouco mais, falaram do acidente e da condição que os envolve. O barulho de um motor sinalizava a iminente chegada do Amadeu. - Muito sossegado aqui ? falou o jovem ? dá até para falar com Deus. Bem que estou precisando, agradecer, sabe? - E como...o Amadeu chegou. Vou pedir para ele ajustar o telefone, assim você liga para a sua família. Também vou te dar uma bengala, sempre tenho uma de reserva. Você sabe o que costumam dizer... - Dizer...não, não sei, o que dizem? - Ora, que para falar com Deus, deve-se falar no ouvido Dele.
Autor: Bernard Gontier


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