Comentário ao Acórdão de 23/11/2005 do Tribunal da Relação de Coimbra-PT



01. Introdução

No presente trabalho dedicarei atenção ao Acórdão de 23 de novembro de 2005, que foi proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra. O acórdão é bastante interessante uma vez que, existe posicionamentos divergente em relação a aplicação da pena no caso de crimes ocasionado por negligência inconsciente, quando ocorre concurso ideal heterogêneo, de como deve ser punido o mesmo.

Primeiramente, faz-se um breve enquadramento jurídico, narrando os factos constantes nos autos do processo, em seguida o posicionamento do Tribunal da Relação de Coimbra, e ao final comentários sobre o Acórdão.

02. Breve Enquadramento Jurídico

No acórdão em análise, o facto que gerou o tipo penal, tem a sua génesis quando um determinado cidadão, arguido A, que conduzia o seu veículo automóvel, no sentido Coimbra - Cantanhede, pela hemifaixa direita e atento o seu sentido de marcha, na companhia de B e C, sua esposa e neto, respectivamente, os quais eram transportados no banco traseiro do automóvel, sofreram um acidente ocasionado pelo mesmo.

Infelizmente, por razões que não foram concretamente apuradas, o arguido A direccionou o veículo que conduzia para sua berma direita, saindo da faixa de rodagem e ao tentar retomar a faixa, perdeu o controlo do veículo, indo invadir a faixa de rodagem esquerda, atento o seu sentido de marcha, veio embater contra o veículo pesado de mercadorias, conduzido por outro cidadão, que circulava, por essa faixa e em sentido contrário ao do arguido, ocasionando a morte de B e C, ou seja, de sua esposa e neto, por negligência.

Ocorreu que, devido ao facto acima descrito foi o Arguido A,pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, sob acusação do Ministério Público, submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular ao abrigo do art.16.º, n.º 3 do Código de Processo Penal , imputando-se-lhe a prática, em autoria material, de dois crimes de homicídio por negligência, previstos e punidos pelo art.137.º, n.º 1 do Código Penal , e em nexo causal a contra-ordenação p. e p. pelo art. 24.º, n.º 1 e 3 do Código da Estrada.

O Tribunal Singular decidiu julgar a acusação parcialmente procedente por provada e, a condenar o arguido A, pela prática de somente um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo art.137.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à razão diária de ?3,50, o que perfaz ? 700,00; e considerar extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional pelas diversas contra-ordenações imputadas à arguida no libelo acusatório.

Inconformado pela decisão, o Ministério Público recorreu ao Tribunal da Relação de Coimbra para modificar a referida sentença.

2.1. Argumentações do Ministério Público

O Ministério Público requereu a reforma da decisão e argumentou nos termos abaixo:

"1. A negligência consubstancia a omissão de um dever de cuidado, quando o agente tem a capacidade ou possibilidade de prever correctamente os resultados que adviriam dessa omissão.

2. O número de infracções determina-se pelo número de valorações juridico-criminais que correspondem a uma determinado actividade.

3. Tratando-se da violação de bens jurídicos eminentemente pessoais, como a vida, a pluralidade de ofendidos determina a pluralidade de crimes.

4. O número de crimes não se afere em função de o agente ter agido com negligência consciente ou inconsciente.

5. No caso dos autos, sendo o arguido responsável a título negligente por um acidente de viação, do qual resultou a morte de duas pessoas, tais resultados danosos, por estarem no âmbito da sua capacidade de previsão, terão que lhe ser forçosamente imputáveis.

6. Ao assim não entender a douta sentença sob censura violou as normas jurídicas constantes dos art.s 15.º, 30.º e 137.º todos do Código Penal.

Termos em que deve a sentença em apreço ser revogado e substituída por outra que condene o arguido pela prática, como autor, em concurso efectivo, de dois (2) crimes de homicídio por negligência, p. p. pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal."

03. Posicionamento do Tribunal da Relação de Coimbra

O Tribunal da Relação de Coimbra, apesar de justificar que a questão em análise é bastante controvertida nos Tribunais,entendeu e teve como posicionamento que no caso em análise não houve o cometimento de apenas um crime de homicídio negligente, e sim, dois crimes, mesmo no caso de negligencia insconsciente, como será expicado abaixo.

Afirmou o Tribunal que "a unidade ou pluralidade de crimes no caso de actuação negligente inconsciente, sobretudo nos casos de acidente de viação de que resultaram várias mortes e/ou feridos , é uma questão controvertida , que tem vindo a ser decidida pelo STJ ao longo do tempo, quase unanimemente, no sentido da existência de um único crime , embora agravado pelo resultado.

A douta sentença recorrida, segue essa posição dominante no STJ , invocando entre outros, os acórdãos do STJ de 8 de Outubro de 1997 ( CJ - STJ, ano Vº, 3º, pág. 212) , de 21 de Janeiro de 1998 ( CJ - STJ, ano VIº, 1º, pág. 173) , de 8 de Julho de 1998 ( CJ - STJ, ano Vº, 2º, pág. 237) e de 7 de Outubro de 1998 ( CJ - STJ, ano VIº, 3º, pág. 183).

Dizem os defensores desta posição, no essencial, que quando o agente não prevê os resultados típicos, por actuar com culpa inconsciente, só é possível, em regra, formular um juízo de censura por cada comportamento negligente, pelo que a pluralidade de eventos típicos não tem a virtualidade para desdobrar as infracções.

Esta posição, que não explica porque não prevendo o agente os resultados típicos tem de se concluir que este só pode ser objecto de um juízo de censura , nem indica as excepções  pois essa seria a regra  em que seria possível a pluralidade de juízos de censura , salvo o devido respeito , não nos parece ser a que melhor interpreta a lei.

O art.30.º, n.º1 do Código Penal estatui que " o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos , ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.".

'O problema de se decidir se num caso concreto existe um ou vários crimes é obviamente diverso do de determinar se tais crimes se devem considerar dolosos ou culposos' e, 'do mesmo modo que é lícito reprovar a actividade do agente , quando de dolo se trate , tantas vezes quantas as lesões jurídicas que ele quis produzir , igualmente é possível censurar a sua conduta por negligente tantas vezes quantas as lesões jurídicas que ele devia prever se produziriam e efectivamente vieram a ter lugar.' - Cfr diz o Prof. Eduardo Correia 'A teoria do concurso em Direito Criminal'- Almedina , Coimbra , edição de 1983 , pág. 109."

O Tribunal da Relação de Coimbra concordou, e citou a anotação realizada na Revista de Ciência Criminal,com os argumentos dos Dr. Pedro Caeiro e Dra. Cláudia Santos[1], quais esclaressem que "refutam a unicidade do 'juízo de censura' em caso de pluralidade de violação de bens jurídicos em crimes negligentes , demonstrando , no essencial , com base no ensinamento daqueles Professores , que a qualificação do resultado nos crimes negligentes não é uma condição objectiva de punibilidade ; que o art.30.º, n.º 1 do Código Penal , ao contrário do Código Penal alemão não faz distinção na punição entre concurso real e concurso ideal homogéneo e heterogéneo; e que o principio da culpa não afasta a pluralidade de infracções , pois se o agente devia prever a produção das consequências do seu acto, esse dever tanto se verifica em relação a uma violação como a várias."

Em suma, tantas vezes quantas as lesões jurídicas o agente devia prever se produziriam e efectivamente vieram a ter lugar, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável, devendo, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes de homicídio negligente quando o agente causa a morte a várias pessoas no acidente de viação.

Tribunal da Relação decidiu em "conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e revogar a douta sentença recorrida na parte em que absolveu o

arguido A, da prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.137.º, n.º 1 do Código Penal , e condenar o mesmo , por cada um de dois crimes de homicídio por negligência, p.s e p.s pelo art.137.º, n.º 1 do Código Penal , na pena de 200 dias de multa , à taxa diária de ? 3,50 e , em cúmulo jurídico , nos termos do art.77.º, n.º 1 do Código Penal , na pena única de 300 dias de multa , à taxa diária de ? 3,50, ou seja , na multa de ? 1050."

Logo, Tribunal defende que a unidade de acção ou da omissão nos crimes negligentes não exclui a possibilidade de uma pluralidade de juízos de culpa, quando uma pluralidade de lesões jurídicas tenha sido causada, sempre que os resultados da acção lhe possam ser imputados, por poderem ter estado no seu âmbito de previsão, e tantas vezes quantas as lesões jurídicas o agente devia prever se produziram e efectivamente vieram a ter lugar, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se tornou aplicável, devendo, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes de homicídio negligente, quando o agente causa a morte a várias pessoas no acidente de viação

04. Comentários

O presente acórdão tem um brilhantismo em sua decisão, em minha opinião, decisão mais correcta e justa, primeiramente quando vem deixar claro aplicação deque existe uma pluralidade de crimes de homicídio negligente, quando o agente causa a morte a várias pessoas no acidente de viação

Acompanhando esse posicionamento, temos também outras decisões, citadas no referido acórdão em análise, como o o acórdão da Relação do Porto , de 5 de Janeiro de 2000[2]; o acórdão da Relação de Coimbra , de 29 de Março de 2000[3]; o acórdão da Relação de Évora , de 24 de Junho de 2003[4] ; e o acórdão da Relação do Porto , de 24 de Novembro de 2004[5].

O último acórdão do nosso mais Alto Tribunal que conhecemos , sobre esta questão de unidade ou pluralidade de homicídios negligentes[6], segue já a posição da doutrina citada , ao mencionar :

" Não há , em suma , do nosso ponto de vista , razão válida para se continuar a defender que , ainda que só nos casos de negligência inconsciente , o concurso ideal heterogéneo deve ser punido como um único crime. Logo , o que se impõe concluir, é que, qualquer tipo de concurso ideal  homogéneo ou heterogéneo, doloso ou negligente  se integra na previsão do art.30.º, n.º 1 do C. Penal, o que significa que o agente que, com uma só acção, realiza diversos tipos legais ou realiza diversas vezes o mesmo tipo legal de crime, independentemente de agir com dolo ou negligência (consciente ou inconsciente), comete tantos crimes quantos os tipos preenchidos ou o número de vezes que o mesmo tipo foi realizado, a punir nos termos do art.77.º do mesmo código."

Eduardo Correia[7] entende que a prática de várias violações através de uma só conduta pode representar apenas a maior astúcia, maior disposição para o crime ou maior treino. Logo não justificando o reconhecimento de apenas um tipo penal, quando oque ocorreu foi a lesão de dois bens jurídicos.

O bem jurídico protegido pelo direito penal é uma concretização de valorações constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais. Ofendendo-se vários bens jurídicos eminentemente pessoais, como a vida, a pluralidade de ofendidos determina a pluralidade de tipos incriminadores preenchidos.[8]

06. Conclusão

Compreende-se, independente do número de tipos preenchidos, com o maior oumenor desvalor da acção praticada com negligência inconsciente, a unidade da acção ou da omissão nos crimes negligentes não exclui a possibilidade de uma pluralidade de juízos de culpa, quando uma pluralidade de lesões jurídicas tenha sido causada, sempre que os resultados da acção lhe possam ser imputados, por poderem ter estado no seu âmbito de previsão.

BIBLIOGRAFIA

§CORREIA, Eduardo Henriques da Silva. A Teoria do Concurso em Direito Criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 1996.

§____________. Direito Criminal. Vol.II. Livraria Almedina, Coimbra, 2007.

§DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime. Reimpressão. Coimbra editora, 2005.

§_____________. Temas Básicos da doutrina penal. Coimbra Editora, 2001.

§GONÇALVES, Manuel Lopes Maia. Código Penal Português, anotado e comentado. 18º edição. Almedina, Coimbra, 2007.

§Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano VI, 1996.

§Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Ano XIII, Tomo III, Coimbra, 2005.


[1] §Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano VI, 1996.

[2] BMJ n.º 493, pág. 416

[3] C.J. , ano XXV, 2º, pág. 48

[4] C.J. , n.º 167, pág. 267

[5] C.J. , ano XXIX, 5º, pág. 213

[6] o acórdão do STJ de 15 de Novembro de 1998 , relatado pelo Conselheiro Leonardo Dias - de que nos dá noticia o Dr. Dá Mesquita na Revista do Ministério Público , ano 19.º , Outubro/Dezembro de 1998 , página 161.

[7] §CORREIA, Eduardo Henriques da Silva. A Teoria do Concurso em Direito Criminal. Livraria Almedina, Coimbra, 1996.

[8] DIAS, Figueiredo , "Temas Básicos da doutrina penal", Coimbra Editora, 2001, pág. 48.


Autor: Michelle Nunes Pereira


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