O Conflito do Espaço



O Conflito do Espaço

Por Sodine Üe

 

Não é raro notar no comportamento social certa tendência ao percebimento do entorno das coisas, ao efêmero delas  ou àquilo que desse entorno foi tomado como efêmero. Não raro também é essa tendência significar a recusa ao aprimoramento tanto do estudo dos fenômenos sociais quanto do mistério da adequação a eles. Um fenômeno muito interessante, cujo estudo mais detalhado vem sendo sublimado por essa atenção distorcida das coisas, é a nova utilização do espaço.

Para as sociedades, o espaço sempre serviu de habitação ou de via, um lugar que, de uma forma ou de outra, fora projetado  ou que exigiria uma projeção muito específica para funcionar. Entende-se já aqui que, ao tratar o espaço como um objeto que necessita de um mecanismo que promova seu funcionamento, essas sociedades já se relacionam de maneira muito singular com os ambientes (em especial com os ambientes em que elas vivem ou aqueles que elas veem  o mar para os descobridores europeus, o espaço sideral para os cientistas, a lua para os astronautas e, num panorama ainda mais singular, o céu e o inferno para os cristãos etc.). Essa nova relação, que não é nem totalmente equivocada, nem totalmente acertada, foi determinante na sensibilização do indivíduo para questões que interferem no espaço, seja de maneira positiva ou não. Um exemplo moderno disso é a constante (e já quase esgotada) discussão sobre o aquecimento global, cujo foco principal, por algum motivo, não é como salvaremos a Terra, mas sim onde habitará o ser humano se a Terra for destruída?. Foi somente a partir dessa forma muito específica de relação com o ambiente, com o espaço utilizável, que o homem passou a encontrar a necessidade de problematizar seu campo de inserção, e foi assim que ele aprendeu a reconhecer o conceito de Lugar.

Como não poderia deixar de ser, também a ciência e a tecnologia seguiram esse mesmo rumo: o estudo científico pretende, agora, dominar aquilo que é micro, que é quase invisível; para encontrar a cura de doenças, os cientistas precisam analisar os vírus, as bactérias, o DNA, ou seja, viram-se para o que é minúsculo, pois é nele que está o perigo  afinal de contas, concluem, se o perigo estivesse em algo grande, visível, tê-lo-íamos descoberto há muito tempo. Noutro extremo, a tecnologia micro-organiza o espaço dos objetos: as fitas K7 se transformam em CD, de forma que não são mais necessários os vários metros de fita se desenrolando duma bobina até a outra. Não satisfeitos, em menos de uma década já abolem o CD, compactam-no ainda mais: surge o MP3. Enquanto o CD guardava uma hora de informação, o MP3 é capaz de suportar dez vezes isso. Entretanto, ao invés de ser desenvolvida uma tecnologia que exija um suporte maior, o objeto é cada vez mais compacto; já se percebe a necessidade de reduzir o tamanho das coisas: o MP3, que já era pequeno, diminui ainda mais e é colocado nos telefones celulares, como um up grade, um adorno. Nasce um novo saber, um saber moderno: é preciso que tudo seja pequeno no mundo, ou não caberá. Não se percebe, porém, que essa é uma visão distorcida da nova realidade devido à interferência da relação que o indivíduo achou por bem manter com o ambiente; na verdade, a micro-organização do espaço não se deve à superlotação do planeta, mas à consciência que os habitantes desse planeta têm da utilidade do espaço.

Vê-se outro exemplo desse conflito do espaço nos letreiros dos ônibus. A tecnologia que substituiu as placas de papel (com rolagem manual para alterar o nome da rota ou do destino da lotação) tratou especialmente de juntar nos novos letreiros digitais inúmeras informações que se alternam de dois em dois segundos. Mais uma vez, o que antes era tão-somente uma única informação tornou-se um letreiro luminoso, ágil, capaz de falar duas, três, quatro coisas diferentes usando apenas um espaço.

Como dizer, diante disso, que a vinculação entre diminuição dos objetos e avanço tecnológico é fruto simplesmente de preservação (ou pior: uso consciente) do espaço livre?. Usar um único letreiro de ônibus para exibir várias informações (bom dia, boa tarde, feliz Natal etc.) não pode significar absolutamente a existência nem de uma consciência de uso do espaço, nem de necessidade urgente de comunicação; trata-se de qualificar o vago, o inutilizado, aquilo que podia acontecer num espaço, mas que por alguma razão ainda não havia sido possível de acontecer. Em outras palavras, é exatamente o contrário do que se afirma: usa-se cada vez mais o espaço pensando-se cada vez menos na preservação dele.

A conceituação histórica  sempre tão nociva e sempre tão pouco questionada  constrói muito habilmente a postura de estudo que se passa a seguir até milênios depois. Não se trata exatamente de ignorância ou de falta de uma inovação a contento, talvez a única responsável por isso seja ainda a facilidade com que as pessoas (e mesmo pensadores) aceitam o que lhes é transmitido. Isso fica claro no estudo da medicina; há uma gravura bastante antiga que mostra um médico removendo a catarata de seu paciente: ele segura por trás a cabeça do homem, que está amarrado para suportar a dor insuportável que sentirá, e raspa o seu olho com um instrumento pontiagudo. É até engraçado pensar que hoje, século XXI, se alguém precisar remover uma catarata, grosso modo o método usado será o mesmo: o paciente se sentará (não precisará ser amarrado porque já existe a anestesia) e o médico removerá a catarata diretamente do olho dele. Note: apesar dos milênios de ciência médica e do estudo contínuo dessa ciência, nem sequer se imaginou a viabilidade, por exemplo, de criação de um comprimido que cure a catarata, ou de uma injeção. Por mais triste que seja, ainda seguimos, em muitas áreas, métodos da Idade Média.  De fato, se algum cientista hoje disser que pesquisa outro meio de operar uma catarata (que não seja através do olho), ele será tomado por louco ou, no mínimo, por extravagante.

A tendência ao percebimento apenas do entorno das coisas, sem a busca de qualquer necessidade dum melhor aprofundamento, cria essas distorções, que se não são de todo negativas, pelo menos demonstram de forma crítica a enormidade de nossa pequenez intelectual.


Autor: Sodine Üe


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