Paixões de borboleta



IUma vez afastada a paternidade divina,a autoindulgência ilimitada,a pergunta é: o que estamos fazendo?O que podemos fazerpara aproveitar bemo período terrestre(o único ainda indubitável)em que nos sentimos existindo?Admito:ficar pensando nisso o tempo todoé doentio.Mas, jamais analisar a própria trajetóriame parece uma sandice mais patológicae temerária.Ninguém pára de comer algo muito gostosono meio do pratopara escrever um tratadosobre o paladar.O compositor de música-de-cornosó compõe quando não estáamando a amada.Ninguém normal pára de comerno meio do prato.Embora tudo o que é normalseja imprevisível, inconsequente e doido,o compositor não pára de comera amada no meio do caso.Ou come ou compõe.Não fala com carteiros,garçons, majestades sabiás, rios de Piracicabanem com seriemas do Mato Grosso.Normal, normal?Come a amada.IIChegando aos quarentaem meu estudo práticoda própria agonia do tempo que passa,procuro o equilíbrio entre viver distraído(que é o mesmo que viver bem-ocupado)e reciclar minha trajetória(para mais distração/ocupação boa posterior).Meu problema é essa certa pressa,minha chama anda baixa,controlada.Estou dentro do peso,definido demais,sem nenhuma gordura no corpo,sem cólera alguma, oco,sem amada para comer(dessas que mereçam música-de-corno),precisando me ocuparcom o que me distraia.IIITriste, não, só desligado,pensando mais do que preciso,dando bom dia, meu lucubroso interlocutor,a macaco.Insignificância lata.Sem significadocomo todas as ocupações,todas as manias,todos os desejos, projetos,amores, deuses, existências,todas as músicas,todos os cornose todos os distraídos.Como todos os normais doidose todos os doidos anormais.Como a amada,como os que comem amadas.Nada terá significado, jamais,para quem procura o seu sentido.A borboleta foge do puçá.IVA gente pára de botar água para forado barco que afundase ele chega à margem.Sísifo, para sempre condenadoa rolar uma pedra descomunale redondamorro redondo acima,preferia o sofrimento da subida.Retesavam-se todos os músculos,estalavam todos os ossos,usava todos os sangues possíveise esquecia todos os significadosimpossíveis.Suava, sofria e subia.Mas a descida...Na descida é que ele pensava na vida,na crueldade de sua pena,na utilidade que o seu serviçojamais teria.Na subida, mal ou bem,se distraía.VVai rolando morro abaixoo significado da minha subida,preciso evitar que a vida vire uma pena compridaa ser cumprida,sofrida,pedra rolada.Como Sísifo,é prioritário evitar a descidaÉ preciso calafetar o barcoe permanecer ocupado,à margem ou no mar.Injetar no próprio sanguevolúpia e incerteza,adubo para o ego.Assim, é normal que pousem borboletas,que se voe cego.E não descer,mas incandescera chama,significar seu tempo.VIGraças a Deus,perguntei à menina:você não tem curiosidade nenhuma?Os olhos dela me subiram,me desceram,me incandesceram,e ela sorriupassou a mão pelos cabelos:como assim, acho que sou,... você é?Ô!Hoje é que eu vim escrever.Ela já se foi, voou.Normal,foi continuar a própria metamorfose,pedra boa vida afora.Eu me distraí, vivi,melhorei minha filosofia,amenizei a punheta.Subi, enchi de novo de sangue,de morro, de mar e de incertezaa vida,descida apaixonada pela borboleta.22.09.2008
Autor: Roberto Jr Esteves Siqueira


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