Porque A Filosofia Nasceu Na Grécia



Sabemos que um dos elementos originantes da filosofia foi a inquietação humana na busca de explicações para o real. Nessa busca, uma das primeiras formas de se tentar explicar o mundo foi com os mitos. Com o transcorrer dos tempos as explicações míticas já não satisfaziam mais. A constatação disso se deu na Grécia. Essa, portanto, é a nossa questão, aqui: entender como e porque a filosofia, como a entendemos hoje, nasceu na Grécia.

Todos os homens, em todos os tempos, desenvolveram algum tipo de reflexão, explicando seu mundo. Essa reflexão pode ser entendida como um filosofar. O ser humano sempre foi pensante e perguntante e isso fez dele um ser filosofante. Entretanto, a filosofia, como é entendida hoje, um sistema lógico e sistemático, nasceu na Grécia. Mas isso não foi um fato aleatório. Houve um contexto para isso acontecer. Isso porque, como afirma o professor espanhol M. G. Morente: "A filosofia, mais do que qualquer outra disciplina, necessita ser vivida" (MORENTE, 1967, p. 23). Ou seja, para ser teorizada precisou ser vivenciada. A filosofia, portanto nasce não de mentes criativas, mas de necessidades específicasde teorização, ou de explicação racional.

Diversos outros povos desenvolveram explicações para o mundo, o homem e as relações sociais, mas fizeram isso, como vimos, de forma mítica; nenhum com as características daquelas desenvolvida pelos Gregos a partir, principalmente, do século VII aC.

Sem entrar na particularidade de cada cultura, podemos assinalar alguns exemplos. Podemos dizer que para os orientais o universo é mantido pelo equilíbrio de forças opostas simbolizado na filosofia do Yin e Yang.

Por sua vez os hebreus explicam a origem do mundo mediante a ação criadora de Deus, que entrega sua criação aos seres humanos, como podemos ler na Bíblia, no livro do Gênesis.

Em várias culturas, de várias nações de indígenas brasileiros, encontramos narrativas míticas explicando as origens tanto daquele povo como do mundo como é conhecido por aquela civilização.

E assim por diante, cada povo tem a sua explicação, a sua cosmovisão. Observando cada mitologia, em cada cultura diferente, podemos nos colocar a questão: qual é a filosofia que os mantém? Nessas mitologias pode ser encontrado algum filosofar?

A pergunta que você deve estar se fazendo é: Se cada civilização deu uma explicação para suas origens e as origens do mundo, por que a forma desenvolvida pelos gregos fez tanta diferença?

A resposta poderia ser simplificada ao dizermos que a estrutura lógico-sistemática dos gregos fez-se mais eficiente para o contexto sócio-político-econômico em que estava inserido o mundo ocidental. Foi essa estruturação ideológica e filosófica que ofereceu a base de organização, sustentação e manutenção para o poder político e religioso da civilização, chamada ocidental, que se desenvolveu na Europa. A Europa se fez, principalmente, a partir da filosofia grega e da fé cristã.

A filosofia grega possibilitou a estruturação racional das realidades e das relações sociais e políticas que se desenvolveram na Europa; e a fé cristã possibilitou a estruturação da moralidade das relações sociais e políticas nesse continente, possibilitando que essa civilização se impusesse a quase todo o mundo. Tanto que nós, na América, mantemos esses valores.

Neste momento seria interessante recordar o filme, Helena de Tróia, em que parecem várias cenas mostrando o processo pelo qual os cidadãos gregos criaram algumas instituições que permanecem até hoje: (o voto; a necessidade de argumentação; o direito de defender sua idéia) como na cena em que lançam sorte para decidir quem desposaria Helena; cena essa em que aparece um diálogo importante: "onde já se viu isso acontece?" pergunta um dos personagens, recebendo como resposta: "sejamos os primeiros!" Esse filme pode ser analisado paralelamente à analise do processo de surgimento da filosofia, na Grécia, e da música Mulheres de Atenas, cantada por Chico Buarque.

Um bom exercício histórico-filosófico-cultural seria, agora, comparar como duas sociedades gregas, Ateniense e Espartana, tratavam as mulheres; qual era a função da mulher na sociedade Ateniense e na sociedade Espartana?

Na música de Chico Buarque as mulheres de Atenas: vivem, sofrem, despem-se, para seus maridos e para eles geram filhos ao mesmo tempo em que temem perdê-los na guerra. Depois de descobrir como os espartanos tratavam suas mulheres, compare-os com a sociedade atual. Qual é o espaço da mulher, na sociedade atual? Por que é assim?

Continuemos nossa tentativa de compreensão do processo de organização da filosofia. Podemos dizer que a primeira grande característica da filosofia grega foi a superação da mentalidade mítico-religiosa. Mas houve, também, algumas condições históricas. Podem ser enumeradas várias causas ou circunstâncias a partir das quais a filosofia se desenvolveu, na Grécia (CHAUÍ, 1995). Entretanto, aqui para nosso estudo, vamos nos concentrar em alguns elementos políticos, sociais, culturais e econômicos que ajudam a explicar o processo de transição da reflexão mítica para filosófica.

Como estamos afirmando, a filosofia nasceu a partir de alguns pressupostos que aqui estamos mostrando como causas políticas, sociais, culturais e econômicas.

Causa Política:

A política, como a entendemos hoje, nasceu na Grécia. E esse elemento foi importante para o desenvolvimento da filosofia. Principalmente por que se deu a partir de um processo de reorganização das relações de poder. As tribos e clãs se reestruturaram dando origem às cidades-estado. O poder que era exercido pelo "patriarca" ou pelo irmão mais velho, passou a ser questionado e, na cidade (polis) organizaram-se as assembléias dos cidadãos (homens livres, ricos e que tinham nascido naquela cidade). Devemos notar que dessas assembléias, que aconteciam em praça pública onde se reuniam os cidadãos com direito a voz e voto, estavam excluídos: mulheres, crianças, estrangeiros e escravos. Nas assembléias da praça eram tomadas as decisões a partir dos debates, das argumentações pró e contra. As decisões nasciam dos debates.

Causa Social:

A organização social se estruturou machista, principalmente em Atenas, que foi um dos principais focos de irradiação da cultura grega. Essa sociedade tinha por base o regime de escravidão: o trabalho do escravo permitia aos cidadãos mais tempo para se dedicarem à política e ao debate: é que podemos chamar de ócio virtuoso. As relações sociais entre os cidadãos, com mais tempo disponível para os debates, travavam conhecimento com outros povos e costumes, o que lhes permitia fazer comparações e generalizações e tirar conclusões novas. A sociedade grega, antes agrária e clânica, nos tempos do desenvolvimento da filosofia estava estruturada na cidade e se fundamentava no comércio e numa sociedade escravista.

Causa Cultural:

A cultura é uma expressão da sociedade. Mas no caso grego isso tem um significado especial. As cidades-estados, gregas, estavam voltadas para o exterior, para o comércio. Havia poucas relações intracontinente. Mas por mar e com povos diferentes havia intenso intercâmbio não só comercial, como também cultural. Assim os gregos recebiam muitas influências de outros povos que lhes traziam valores culturais diferentes. Esse intercâmbio possibilitou assimilar novas informações que, cruzadas com seus conhecimentos, possibilitaram novas conclusões. Os gregos aprenderam muito com os povos com os quais mantinham relações comerciais. E isso foi sendo incorporado ao seu substrato cultural. Algumas inovações gregas: calendário contando o tempo linearmente, a vida essencialmente urbana, comercial e fabril, com divisão social das funções. A partir de influências fenícias escrita passa a ser alfabética, deixando de ser ideográfica, como em outros povos. Isso facilitou a prática de construção de textos e da comunicação, através da combinação de caracteres para formar palavras. Essa forma de escrita facilitou a comunicação pormenorizada dos conceitos. A novidade grega, portanto, não é a criação, mas a re-elaboração.

Causa Econômica:

Este talvez seja o ponto central para a explicação do desenvolvimento da filosofia, no mundo grego. Sua economia não se baseava só na agro-pecuária, como a maioria dos povos antigos. Eles desenvolveram intensa atividade comercial – e industrial. Essa atividade exigia contato constante com outras culturas e valores. A utilização da moeda, além de facilitar as transações comerciais, ajudava na troca a partir de cálculos feitos por um valor abstrato, notando que vários conceitos matemáticos e geométricos ainda hoje utilizados, foram desenvolvidos nesse contexto. Além disso, há a presença do escravo. E, talvez, tenha sido esse o elemento determinante e grande diferenciador da economia grega em relação os demais povos. Diferentemente do "Modo de Produção Asiático", anterior, aqui a escravidão não estava a serviço do estado, mas dos cidadãos; o escravo era encarregado de desenvolver todas as atividades, permitindo ao cidadão desenvolver, além de desenvolver as relações comerciais, dedicar-se ao ócio. Enquanto o escravo se dedicava à produção, o cidadão se dedicava ao comércio, de onde tirava mais informações e ao ócio, quando refletia as novas informações e as debatia com seus concidadãos.

A filosofia, portanto, nasce desse contexto sócio-político-econômico e cultural e da ociosidade.

Esses elementos combinados permitiram aos gregos desenvolver explicações do mundo e da sociedade de forma diferente do que havia sido feito até aquele momento. Superaram as estruturas e as cosmovisões de seus contemporâneos como a religiosa criacionista, dos Hebreus; a místico-espiritualista, dos indo-chineses; a belicosa dos mesopotâmicos e a sua própria cosmovisão mítica.

A comparação entre as diferentes cosmovisões os levou a questionar a verdade de cada uma delas. Estava, com isso, colocado um dos problemas centrais da filosofia: a verdade ou a possibilidade de se conhecer a verdade. Constataram que era impossível a mesma realidade ser explicada de diferentes modos e ser, simultaneamente, verdadeira em cada uma dessas explicações.

Esse pode ser entendido como o processo da passagem da explicação mítica para a explicação racional para as realidades do mundo e as situações humanas. Mas esse avanço intelectual foi possível graças ao trabalho escravo que permitia aos cidadãos tempo ocioso para os debates na Ágora (a praça que era o centro da vida econômica, social, política, cultural). Por isso é que se pode dizer que a filosofia, como a entendemos hoje, tem uma origem espaço-temporal bem determinada, sem, contudo, negar a capacidade reflexiva dos outros povos, pois cada povo, assim como cada pessoa, a seu modo, desenvolve um processo de reflexão.

Todos nós somos filosofantes; mesmo quando negamos essa capacidade ou renunciamos nosso direito de conduzir nossa vida, somos obrigados a tomar uma decisão, e isso já implica em uma reflexão. Temos que refletir para nos decidirmos. Ou seja, somos filosofantes. Refletimos e buscamos a verdade, ou refletimos e tomamos a decisão de abrir mão de nossa capacidade de decidir. E isso é um processo filosófico, pois demanda reflexão. O que se observa, na atualidade não é a falta da capacidade de filosofar, mas a renúncia a essa capacidade. E ao se negar a pensar a pessoa passa a ser pensada por outras, sendo por outras conduzida.

A capacidade de reflexão é a primeira face da filosofia. Mas isso não é tudo. Pois a reflexão, como a entendemos até a sociedade grega, caracterizou-se pela subjetividade das explicações mítico-religiosas. Com os gregos manifesta-se a segunda característica, que marca a filosofia; a reflexão passa a ser objetiva e racional. Depende, não mais da subjetividade , mas da objetividade racional. A validade de uma verdade se deve não ao que "eu acho", mas àquilo que se pode comprovar, pelo raciocínio e pela argumentação.

Essa reflexão argumentativa é a base da filosofia no processo desenvolvido pelos gregos, a partir do século VII. E isso graças a vários fatores, entre eles o fato e a presença do trabalho escravo, liberando o cidadão de necessidade de trabalhar para subsistir. Nesse sentido, podemos dizer, também, que a filosofia nasceu do ócio.

A filosofia, desenvolvida pelos gregos possibilitou um grande passo na busca da compreensão do real. O desenvolvimento da racionalidade permitiu ver além das aparências. Permitiu ver mais. Permitiu ver, além do fato, suas origens e suas conseqüências, que passam a ser, também fatos interligados a outros. Inaugura-se, dessa forma, uma nova visão de história. É possível perceber a ação humana na construção da história; a vida humana deixa de ser uma brincadeira dos deuses, para ser resultante dos condicionamentos e das relações humanas.

REFERÊNCIAS:

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1989

CHAUÍ, M.. Convite à Filosofia. 5ªed. S. Paulo: Ática, 1995.

MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de filosofia, lições preliminares. 3 ed. São Paulo: Mestre Jou. 1967

SÁTIRO, Angélica; Wuensch, Ana M. Pensando Melhor: Iniciação ao filosofar. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 42

Neri de Paula Carneiro – Mestre em Educação
Filósofo, Teólogo, Historiador
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Autor: NERI P. CARNEIRO


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