Comer e idealizar: evoluções na gastronomia



RESUMO
Este trabalho aborda a conceitualização do termo gastronomia, e de como pode ser entendido no dias de hoje. Como foi estudado ao longo do curso através de disciplinas teóricas e vivências experienciadas, com a proposta de elucidar o conteúdo histórico, sociológico e antropológico da gastronomia. Aborda algumas das tendências da alimentação contemporânea e antiga, como elas se relacionam entre si, e a ressonância nas diversas sociedades. Trata do patrimônio alimentar e gastronômico, do contexto de transformação das práticas alimentares, da diversidade dos sistemas alimentares, também do aspecto que é fundamental na significação da alimentação: a identidade. Discute a relação da alimentação como forma de poder e distinção social. Situa a alimentação na perspectiva da cultura material. Procura contextualizar problemáticas da alimentação na sociedade de consumo, como as questões da ética, tecnologia e ciência. Debate diferentes posicionamentos acerca dos transgênicos, da fome e da segurança alimentar. Enfatiza que existem inúmeras respostas para o conceito de gastronomia, o quanto é importante dar-se conta de que a história é dinâmica e a sociedade está em constante mutação, e como a gastronomia segue essa tendência.
Palavras-chave: gastronomia, história da alimentação, hábitos alimentares, culinária, cozinha brasileira, cozinha internacional, sociologia.

1 INTRODUÇÃO
No dia três de março de dois mil e oito, teve início o curso Vivências Culturais de pós-graduação em gastronomia. Durante as primeiras aulas, num misto de curiosidade e alienação, a turma composta por profissionais de diversas áreas, era apresentada a termos como gastrônomo, gourmet e gosto. Aos professores, Wanessa C. Asfora e Carlos Alberto Dória couberam a tarefa, além de ministrar as devidas disciplinas, de instigar os alunos a abrirem suas mentes para conceitos referentes à sociologia, história e antropologia. Conceitos que, para grande maioria destes alunos, eram inexistentes no que se compreendia por gastronomia.
O termo gastronomia, no início deste curso, poderia ser facilmente descrito como "uma disciplina onde se ensina receitas de alto padrão e técnicas a serem utilizadas na elaboração dos pratos". Esses alunos sabiam pouco sobre a importância da disciplina, e o que realmente significa nos dias de hoje. Mas se matricularam no curso porque, em sua ignorância, sabiam que o estudo da gastronomia vai muito além da elaboração belos pratos. Como descreve Paula Pinto e Silva:
"A gastronomia está em alta. Antes reservada ao recinto das cozinhas e a publicações especializadas, hoje já freqüenta livremente todos os espaços do nosso cotidiano, a tal ponto que, atraindo o interesse de um público cada vez maior e dos meios acadêmicos, foi parar na sala de aula dos cursos superiores." (SILVA, 2005, p.7)
O curso, através das disciplinas teóricas e vivências experienciadas ao longo do ano, tevê a proposta de elucidar o conteúdo histórico, sociológico e antropológico da gastronomia. Palestras, experiências, visitas e aulas foram elaboradas para formular, com mais embasamento, o conceito gastronômico.
As pesquisas usadas, para esse trabalho de conclusão de curso, foram os papers elaborados ao final de cada uma das cinco vivências. Nestas vivências, as experiências, também descritas por Henrique Carneiro como "distinção social pelo gosto, restrições e imposições dietéticas, identidades étnicas e construção de
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papéis dentro de uma sociedade" (2003, p.1), formaram um conjunto prático e teórico para demonstrar o amplo campo gastronômico.
A primeira vivência, Afinal, comemos com os olhos, com a mente ou com a boca?, Teve como meta associar os cinco sentidos ? olfato, audição, visão e paladar ? às lembranças e gostos de cada indivíduo. Como cada alimento pode trazer informações associadas a dois diferentes enfoques, o biológico /natural e o econômico/cultural (CARNEIRO, 2005). Com experiências sensoriais, em conjunto com o patrimônio cultural de cada aluno, pode-se reconhecer informações que identificaram o alimento, de acordo com os conceitos de bom e ruim. A partir desse conceito de bom e ruim, foram passadas explicações para entender o significado de sabor e gosto. Sabor é classificado por processos puramente fisiológicos, resultado da associação palativa das papilas gustativas, do aroma, e das sensações táteis químicas, não podendo ser classificado como bom ou ruim. Gosto é o conjunto de sabores, numa concepção coletiva, influenciado pelos padrões culturais desta sociedade, não podendo ser individual, reproduzido principalmente no âmbito familiar (DÓRIA 2009a).
"A definição do gosto faz parte do patrimônio cultural das sociedades humanas. Assim como há gostos e predileções diversos em diferentes povos e regiões do mundo, assim os gostos e as predileções mudam no decorrer dos séculos". (MONTANARI, 2008, p. 95)
A parte final da vivência abrigou a palestra da antropóloga brasileira Paula Pinto e Silva, como convidada especial. Em outras palavras, e também descrito em seu livro, Paula exemplificou um idioma culinário próprio, "com base nos alimentos, utensílios e modos de comer das diferentes culturas do brasileiro" (2005, p.26). Assim mostrou, com um conteúdo antropológico nacional, os enfoques já descritos acima por Carneiro. Paula defendeu que os caminhos da antropologia, junto com a cozinha da sociedade colonial, com ingredientes indígenas, de negros e brancos, consolidaram o patrimônio cultural e biológico brasileiro.
Com a segunda vivência, Mesas, cardápios e banquetes, refeições de época foram encenadas com intuito de recriarem o patrimônio cultural, social e gastronômico de diferentes épocas. Começa com encenação de um ambiente familiar camponês na alta idade média, onde o pão, os cereais e um pouco de
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carne formavam base da alimentação da classe pobre medieval. De acordo com Allen Grieco1, quanto mais baixa a posição social, maios era a porcentagem para compra de pão. O pão, com uma pouca quantidade de carne, era o complemento para as sopas e papas feitas espacialmente de cereais e legumes, que para esta classe, era a maneira ideal de utilizar ao máximo os poucos ingredientes da sua dieta, o que se julgava ser, pela alta sociedade, comida fora dos padrões divinos.
A segunda recriação foi um casamento italiano renascentista no final século XV. Numa Itália, onde o comércio e costumes estavam à frente do restante da Europa2, houve a introdução de uma variedade maior de especiarias, e também a reabilitação de alimentos que antes eram excluídos da alta sociedade, como os legumes. Para esta montagem foram recriados personagens da corte italiana, como o scalco e o trinchante, também como regras de etiqueta, tocando trombetas para cada seqüência de pratos, e uma bancada representando a credenza (STRONG, 2004). A última encenação foi um jantar francês, no início do séc. XIX, com mesa posta à la russe, onde no cerimonial, os pratos são servidos ao mesmo tempo e individualmente.
Intitulada Visita técnica ? restaurantes, a vivência três abordou temas sobre logística, práticas gastronômicas e conceitos de três diferentes estabelecimentos. Nesta vivência, por meio de discussões, foi apresentado o Restaurante Valentina, como um ambiente mais despretensioso, onde o comfort food, faz parte do cardápio sazonal e italiano da casa. No Dui, segundo restaurante visitado, com um cardápio fixo, a chef bel Coelho explicou que sua inspiração vem de todos os lugares: filmes, teatro, música, e principalmente, dos ingredientes. Citou a dificuldade para encontrar ingredientes brasileiros de boa qualidade. Na terceira e última visita do dia fomos recebidos pela perfeição: funcionários rigorosamente vestidos e com sorrisos padronizados nos receberam na cafeteria Nespresso.
A culturalização e valorização dos ingredientes permearam boa parte desta vivência. Para Mariana Valentin, chef do Valentina, o ingrediente é questão de apropriação cultural e econômica3. Ela enfatiza que é necessário ter sempre em
1 FLANDRIN; MONTANARI, 1998 apud GRIECO, p.467.
2 Ver STRONG, 2004, capítulo 4.
3 Para um melhor entendimento sobre apropriação cultural e gastronômica, ler o livreto: DÓRIA, Carlos Alberto. A formação da culinária brasileira. São Paulo: Publifolha, 2009. Também explicações sobre sistemas alimentares e assimilação, nas seções Ninguém cozinha em abstrato
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mente a sazonalidade para trabalhar com custos mais baixos, em um estabelecimento com preços mais acessíveis. Já, a chef Bel Coelho, explicou a dificuldade que muitas vezes enfrenta para ter acesso a ingredientes específicos e pequenos produtores. Tenta compreender porque alguns ingredientes nacionais podem ser mais caros do que um importado, e, em parceria com outra chef brasileira, estuda maneiras de melhorar a logística gastronômica dentro do Brasil. Neste ponto de vista, a chef Bel Coelho idealiza o que Carlo Petrini descreve sobre "ser um gastrônomo":
"Coprodutor que compartilha idéias e prazer, além de busca por qualidade, felicidade e de uma nova dignidade para os campos e as pessoas que produzem o alimento. O gastrônomo compartilha seu ser gastrônomo com outros produtores, chefs, [...] desmistificando o duplo princípio de duas frases emblemáticas: comer é um ato agrícola e produzir deve ser um ato gastronômico." (PETRINI, 2009, p.10)
A vivência quatro, intitulada Polêmicas na alimentação, pega carona o aspecto sócio/ambiental da cozinha de ingredientes, assunto superficialmente explicado vivência anterior. Em formato de mesa redonda, as professoras e profissionais da área de gastronomia, Wanessa C. Asfora, Joyce Galvão e Martha Tatini debateram a fundo, pontos como: comercialização de transgênicos, aumento da tecnologia na indústria do agribusiness, uso de fertilizantes e agrotóxicos, ataque ao meio ambiente, nutrição nos dias atuais e o impacto de todos esses fatores na saúde do homem.
O livro de Michael Pollan, Em defesa da Comida. Um manifesto, foi utilizado como disparador da discussão na mesa redonda, mas os tópicos, abordados na mesma, foram além da questão do nutricionismo levantada pelo autor4. A questão da doutrina nutricionista se insere em um panorama maior, quando explorada dentro da perspectiva de todas as questões contemporâneas relacionadas à
e Olhar para o Oriente do capítulo 2. DÓRIA, Carlos Alberto. A Culinária Materialista: a construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.
4 Descrito no primeiro capítulo, The Age of Nutricionism. POLLAN, Michael. In Defense of Food: an eater?s manifesto. New York, NY: The Penguin Press, 2009.
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alimentação. Elencaram-se cinco tópicos: comida e prazer, comida e vida contemporânea, o discurso dos orgânicos, o papel da mídia e a perspectiva histórica. Tópicos que serão explicados na seção 2.4 do desenvolvimento neste trabalho.
Na última vivência, Roteiros turísticos, cada grupo teve um enfoque específico de lazer e tipologia, em estabelecimentos variados do ramo gastronômico. Foram apresentados lugares como: padaria, mercearia, restaurante de comida típica, restaurante com cozinha mais refinada, cafeteria e bar. Em cada estabelecimento, os alunos ouviram explicações sobre a história do local, logística, cardápio e conceito. Também foi explicado o ponto de vista do empreendimento sobre o que se procura, e demanda, a clientela desses estabelecimentos. Outra parte importante dessa vivência foi a elaboração de um roteiro turístico com enfoque na gastronomia. O detalhamento deste aspecto foi o principal ponto para esta vivência ser dividida entre os grupos. Foram elaborados trajetos específicos, levando em conta pontos turísticos da cidade de São Paulo, em conjunto com atividades de cunho social, voltadas para o entretenimento do percurso na vivência. Com enfoque nas cafeterias, um nicho novo no Brasil, o grupo precisou relevar a problemática de pouco conteúdo específico para pesquisa sobre esse setor no Brasil.
Este trabalho tem o objetivo de detalhar as experiências vivenciadas ao longo do curso de pós-graduação, que serviram de ferramenta para complementar o conteúdo teórico, na formação do que se define, nos dias de hoje, por gastronomia.
"A gastronomia é um saber gratuito porque modifica artificialmente a relação saber-necessidade da alimentação. Só se pode reivindicar dentro do espírito lúdico [...], pois quando o gourmet cai na tentação do sectarismo e do dogma, transforma-se num pedante árbitro do nada." (Manuel Vásquez Montalbàn apud DÓRIA, 2009a, p.3)
Autor: Luana Budel


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