O HOMEM DA TORRE



Meu nome é Artur Porto Menezes. Houve um tempo em que vivi mais de dez anos em um aposento na torre norte do convento Santa Tereza.

Meu quarto tinha cinco passos largos de um lado e quatro do outro. Um aposento úmido e frio no inverno, quente e abafado no verão, quatro paredes de pedras cinzentas sem adornos e com apenas uma pequena janela de onde não se podia ver quase nada do exterior.

Havia uma cama de sarrafos e sobre ela um colchão recheado com penas de galinha, uma mesa e um mocho. Numa salinha na entrada tinha uma cômoda para roupas, uma talha com água, uma bacia e uma caneca. Ao lado desse cubículo, ficava a privada onde eu também tomava banho.

As freiras me traziam as refeições, deixavam roupas limpas, levavam as sujas para lavar e enchiam a talha com água. Quando ali cheguei, não revelei o motivo pelo qual eu queria me isolar do mundo. A Superiora do convento, madre Rosário, compreendendo e consentindo com meu desejo, me deu asilo, proibindo que as freiras revelassem aos estranhos a minha presença naquela torre. Se alguém de fora soubesse que havia um homem morando no convento, seria um escândalo.

Algumas freiras eram devotas em excesso, outras não muito, nem tanto. Nunca entravam sozinhas em meus aposentos, vinham em duas ou três, sempre acompanhadas por uma freira de mais idade. Freqüentemente duas delas batiam na minha porta nas horas mais impróprias, talvez sem o conhecimento da madre superiora. Era irmã Celeste, que de celestial nada tinha e irmã Dolores. A primeira com cerca de trinta anos e a outra ao redor dos vinte anos. Demonstravam pudor, mas suas atitudes recatadas eram fingidas como pude descobrir. Suas intenções eram o jogo da sedução, do encantamento e a corrupção das minhas virtudes.

Irritado com a atitude delas, passei a trancar a porta. Claro que as outras não eram como essas duas, mas preferi deixar a porta trancada quando elas traziam roupas e refeições, pedia-lhes que deixassem na salinha da entrada, pois Celeste e Dolores entravam sem respeitar as regras da boa educação.

Pois bem, registrado este preâmbulo, se faz necessário que lhes conte como e porque fui morar naquele convento.



A historia começa no ano de 1929. Eu tinha uma propriedade agrícola em Picada Café. Vendia os produtos da granja na feira da cidade e foi na feira que me enamorei de Judite, moça bonita, meiga, inteligente e de forte personalidade, também filha de colonos. Começamos a namorar e depois de três anos de noivado, marcamos a data do casamento. Judite era uma boa amazona, costumava cavalgar todas as manhãs, mas certo dia o animal se assustou com alguma coisa e acabou derrubando-a. Ferida na cabeça, ela foi levada inconsciente para casa e colocada em sua cama. Um parente foi chamar o médico e me avisou do ocorrido. Depois de examiná-la minuciosamente, o médico constatou que ela estava com duas costelas fraturadas e um corte na cabeça. Ele tratou do ferimento e enfaixou-lhe o dorso para que não se movesse, possibilitando assim, que as costelas se reconstituíssem. Mas, o estado de saúde de Judite piorou. Com febre e com os sinais vitais muito fracos, o médico revelou que ela poderia não sobreviver. Triste, sai para a rua e andei até um capão de mato, onde me sentei e chorei. Algum tempo depois resolvi voltar, mas antes de entrar, olhei através da janela, vi os pais de Judite chorando sendo confortados por um padre e calculei que minha noiva tinha morrido.

Desesperado, saí correndo pelos campos e matos. Acabei caindo de um barranco, perdi os sentidos e quando acordei já era noite. Não sabia onde estava. Eu ainda continuava na mata, mas em um lugar desconhecido. Mesmo com a claridade da lua cheia, não consegui encontrar o caminho de volta. Subi para os galhos de uma árvore e ali me recostei, pensando o que fazer da minha vida. Quando amanheceu, escolhi um rumo ao acaso, sem me importar para onde ia, sem vontade de voltar para casa e ter que enfrentar a realidade. Eu preferi pensar que muitos anos já se haviam passado e que a lembrança de Judite era a única coisa que restou.



Não sei quanto tempo caminhei, se dias ou horas. Senti-me fraco, comecei a cambalear, a vista ficou nublada. Esgotado, deixei-me cair no chão. Novamente perdi os sentidos. Quando acordei, ouvi o badalar de um sino. Ergui a cabeça e percebi que havia saído da mata. No terreno abaixo, avistei a torre de um convento sobre-saindo da névoa da manhã. Reuni minhas ultimas forças e segui trôpego naquela direção. O convento se compunha de um prédio robusto, área de serviço e lazer, com um jardim, uma horta, animais domésticos, tudo cercado por um alto muro. As freiras viviam enclausurado o tempo todo, somente algumas delas saiam para fazer compras, ou tratar de algum outro assunto importante na cidade. Os portões permaneciam o tempo todo trancado. Com muito esforço, consegui chegar até um dos portões, onde uma das freiras me encontrou depois de ouvir meus gemidos. Não sei se dormi ou perdi os sentidos, quando acordei, me vi deitado numa cama, num aposento pequeno, com o sol entrando por uma janela envidraçada. Ao meu lado estavam duas freiras, uma jovem e outra aparentando ter uns sessenta anos.

- Como se sente? Perguntou a mais velha. Ergui-me e me recostei nos travesseiros. Percebi que estava usando apenas uma camisola. Minhas roupas estavam dobradas sobre uma cadeira, limpas. Os acontecimentos passados pareciam estar muito longe no tempo. Havia um quase vazio em minha mente, o que restava eram vagas lembranças.

- Melhor. Respondi.

- Meu nome é Rosário, sou a madre superiora e esta é irmã Luzia. Disse a freira de mais idade, me entregando uma terrina de sopa.

- Coma isso, vai lhe fazer bem. Disse ela.

Comecei a comer, pois estava com muita fome e as freiras esperaram com paciência eu acabar de comer. Devolvi o prato vazio.

- O que aconteceu com o senhor? Perguntou Luzia. Refleti por alguns instantes antes de responder. A única coisa que eu me lembrava era de estar caminhando na floresta. Comia frutas e bebia água quando encontrava, e meu desejo era encontrar uma habitação, um abrigo seguro.

- Não sei não me lembro.

- Como se chama?

Novamente fiquei a refletir. Por mais que eu tentasse, não consegui lembrar quem eu era.

Diante da minha expressão vazia, madre Rosário falou:

- Também não se lembra? Coitado! Tinhas um ferimento na cabeça, mas não era de muita gravidade. Será que a pancada afetou sua memória?

- Li num livro que um grande abalo emocional pode causar perda de memória. Disse irmã Luzia.

- Será? Indagou a madre.

- Depende da pessoa...

Madre Rosário voltou a me encarar. Sorriu como que para encorajar-me.

- Não importa. Nós vamos cuidar do senhor e procurar alguém que o conheça. Por enquanto vamos chamá-lo de irmão Pedro. Vamos limpar e arrumar o quarto da torre, onde o senhor poderá ficar até que possamos encontrar seus parentes.

Uma semana depois, ao acordar pela manhã, lembrei-me de tudo. A memória havia voltado e com ela a dor pela perda de minha amada. Fiquei deitado na cama sem saber o que fazer sem vontade de voltar para casa, pois lá já não havia mais ninguém a minha espera. Soaram batidas na porta do quarto e eu mandei entrar. Era irmã Luzia e outra freira, uma jovem de olhos azuis. Elas traziam o desjejum, uma caneca de leite, pão de centeio, queijo e mel.

- Bom dia, irmão Pedro! Saudou Luzia alegremente. Colocou a bandeja sobre a mesa, dizendo:

- Esta é irmã Celeste. Dormiu bem? Necessita de alguma coisa?

Sentei-me na cama e pedi para falar com a madre superiora. Madre Rosário subiu sozinha. Sentou-se numa cadeira e disse:

- Infelizmente, até agora, não tivemos noticias de ninguém que tenha desaparecido na mata nesta região. Pode ser que o senhor tenha parentes em outro distrito...

- Madre Rosário, estou me lembrando quem sou e onde moro.

- Verdade? Que bom!

Comecei a chorar e Rosário abraçou-me.

- O que foi meu filho? São tristes as tuas recordações?

- Sim madre, mas prefiro não falar nisso. É por causa dessa dor que eu queria me isolar do mundo. Eu gostaria de ficar aqui, até o fim dos meus dias.

Madre Rosário voltou a sentar-se.

- Você esta sendo precipitado. Você é jovem e com o passar do tempo vai superar toda essa tristeza. Bem, esse é um convento de freiras, mas podemos lhe dar abrigo por mais alguns dias. Talvez ate lá, você mude de idéia. Você não pode circular pelo convento, vai ter que ficar o tempo todo na torre!...

- Não importa. Sei escrever e desenhar. Eu gostaria de fazer alguma coisa para passar o tempo!...

Madre Rosário ergueu-se.

- Mandarei trazer papel, pena e tinta. Quando quiser conversar, mande me avisar.



Naquela manhã fiz alguns desenhos tendo por tema a vida de Cristo. Quando irmã Luzia me levou o almoço e viu os desenhos, ficou encantada e pediu-me para enfeitar o seu livro de orações com alguns desenhos como aqueles. Ela mostrou os desenhos para as companheiras e elas me pediram para fazer o mesmo com seus livros. Assim, comecei a desenhar em livros, enfeitando-os com ilustrações e iluminuras.



Trabalhar e viver num ambiente fechado se torna nocivo à saúde e por isso, eu saia todas as manhãs para a sacada, longe das vistas das freiras e fazia exercícios enquanto tomava sol.

Passaram-se algumas semanas, certa noite, altas horas, as freiras já tinham se recolhido aos seus quartos, eu ainda estava trabalhando num livro que contava a história de Santa Catarina de Siena, quando soaram batidas na porta do meu quarto. Estranhando uma visita àquelas horas, abri a porta. Deparei-me com Celeste e Dolores, a primeira com algo enrolado numa toalha e a outra com um candeeiro para iluminar o caminho.

- Vimos que o senhor ainda estava acordado e trabalhando e resolvemos lhe trazer algo para comer. Disse Celeste e sem pedir licença, entrou para o quarto. Ela colocou um pote com doces sobre a mesa e ficou admirando o meu trabalho.

-Que magnífica obra! Exclamou.

- Faz mal a saúde desenhar a noite com pouca iluminação. Advertiu Dolores.

- Já me acostumei. Respondi, aborrecido com aquela intromissão. Dolores largou o candeeiro sobre a mesa e foi sentar-se na cama e Celeste acomodou-se na cadeira.

- O senhor não sente solidão, vivendo sozinho neste quarto?

Perguntou ela. Comecei a ficar preocupado com aquela visita inesperada e fora de hora.

- Desculpem, mas estou cansado e quero dormir. Queiram me deixar a sós, por favor?

Celeste me olhou com uma expressão de encantamento.

- Ora, Irmão Pedro! Não está gostando de nossa companhia? Talvez o senhor esteja constrangido com...

Dei dois passos largos e abri a porta.

- Queiram se retirar, por favor!

Lançando-me um olhar estranho, as duas freiras partiram em silêncio. Tranquei a porta, encerrei o meu trabalho e fui dormir.



Duas semanas depois, ao anoitecer, irmã Luzia pediu para falar comigo. Ela estava com os olhos vermelhos e uma expressão triste.

- Madre Rosário acaba de falecer, irmão. Disse ela. - Vim lhe avisar porque sei que o senhor gostava muito dela...

Sacudi a cabeça, consternado.

- Sim, madre Rosário era como uma mãe para mim.

- O sepultamento será amanhã pela manhã.

- Rezarei por sua alma. Falei. Luzia segurou minhas mãos por um momento e logo se retirou. Depois de fazer as orações, tentei voltar ao meu trabalho, mas aquela noticia me deixou triste. Madre Rosário me visitava uma vez por semana, se preocupava com minha saúde e conforto. Recostei-me na cama e tentei descansar um pouco a mente e a vista.

Algum tempo depois, alguém bateu a na porta.

- Quem é?

- Irmã Luzia. Respondeu uma voz abafada, quase inaudível. Ao abrir a porta, Celeste precipitou-se para dentro do quarto e me abraçou.

- Não me mande embora, quero ficar com você! Disse ela. Vestia apenas uma camisa comprida de dormir. Agarrei-a pelos braços afastando-a de mim.

- Pára! O que pensa que está fazendo? Você está traindo a si mesma, os princípios religiosos, o voto de castidade!...

Celeste ergueu o rosto e me encarou. Procurei no fundo da alma, forças para resistir àquela tentação. Se eu cedesse, estaria traindo, inclusive, a memória de madre Rosário.



Não havia nada que eu pudesse dizer para que a moça desistisse dos seus propósitos. Seu anseio falava mais alto. Segurando-a por um braço, levei-a para fora do quarto. Tranquei a porta e voltei a deitar-me. Naquela noite quase não dormi, perturbado pelas emoções do dia. Na manhã seguinte acordei com novas batidas na porta do quarto.

- Quem é? Perguntei, aborrecido.

- É a irmã Luzia!...

Não tendo duvidas de que desta vez era realmente Luzia, abri a porta. Fiquei surpreso ao vê-la na companhia de um sacerdote.

- Este é dom Fernandes, bispo diocesano. Disse a freira com uma expressão tensa. - Ele deseja conversar com o senhor.

Afastei-me para que eles entrassem. Com ar grave, o bispo entrou, examinando o aposento, deteve-se diante da mesa de trabalho. Luzia voltou a sair e retornou com Celeste.

A moça estava com a camisola rasgada na altura do ombro, deixando a mostra uma parte do seu dorso e um ferimento leve na pele branca e sedosa. Permaneceu com a cabeça inclinada para o chão. A expressão de Luzia era séria. Dom Fernandes examinou-me da cabeça aos pés. Eu calculei que minha aparência não devia ser desagradável, havia cortado à barba e aparado os cabelos e tinha trocado de roupa, antes de dormir.

- Esta jovem freira o acusa de invadir o quarto dela e tentar beijá-la. Disse o bispo num tom severo. Fez um gesto largo e continuou:- Como pode alguém como sóror Rosário permitir que um homem venha morar no convento? Isso é inadmissível! E agora acontece isso!

Celeste permaneceu imóvel, com os olhos fitos no chão. Ao lado dela, Luzia torcia as mãos, aflita.

- Nunca antes ele demonstrou más intenções! Ao contrario, sempre foi cordial, trabalhador, amigo!... Disse ela.

- A senhora o está defendendo?

- Não! Só pretendo justificar nossa posição. Acho que não devemos julgar os atos de madre Rosário, justamente hoje!...

Dom Fernandes respirou profundamente, me encarou e eu procurei me defender.

- Eu não ataquei a irmã Celeste! Ela está mentindo. Nunca saí do meu quarto. Ao contrário, foi ela quem esteve esta noite aqui, sabe-se lá com que intenções. Pedi para que se retirasse e logo fui dormir.

Celeste soltou um gemido, escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar. O bispo voltou-se para ela.

- O senhor quer-me dizer que foi ela quem rasgou a própria roupa e se arranhou?

- Isso mesmo. Celeste não consegue e não merece ser freira. Suas atitudes são pecaminosas, enquanto suas companheiras estavam no velório, ela aproveitou para entrar em meu quarto!...

- Ela se sentiu indisposta. Respondeu Luzia.

- Nunca saí do meu quarto! Retruquei.

- Cinco anos encerrado entre quatro paredes, é o mesmo que estar numa prisão!...

Disse o bispo.

- Tenho os meus motivos. Respondi. Dom Fernandes olhou-me, refletindo. Continuei:

- Celeste veio aos meus aposentos umas duas horas depois do escurecer. Bateu na porta fingindo que era a irmã Luzia. Quando fui atender, ela entrou e agarrou-se a mim dizendo que queria ficar comigo. Eu a repeli e a coloquei para fora do quarto. Meus aposentos ficam numa casa de religião, um lugar sagrado! Eu nunca teria coragem para desrespeitar esse lugar, tampouco desprezar a confiança e a dedicação que madre Rosário e irmã Luzia têm por mim!

Dom Fernandes olhou-me impressionado, mas ainda não estava convencido. Então, sugeri;

- Seria conveniente que o senhor interrogasse irmã Dolores. Ela e Celeste andam sempre juntas e as duas já estiveram certo dia em meu quarto após o escurecer, com o pretexto de trazer-me doces.

O bispo voltou-se para Luzia.

- Leve-a para o quarto, e traga-me Dolores aqui.

Luzia saiu com Celeste e dom Fernandes aproximou-se da mesa, olhou o material de desenho, examinando o meu trabalho. Depois, sentou-se na cadeira, pegou um pequeno volume de uma pilha de livros e começou a folheá-lo. Sentei na beira da cama e esperei. Quando Luzia e Dolores chegaram, o sacerdote devolveu o livro à pilha e olhou para Dolores. Inclinou a cabeça examinando as unhas, ajeitou-se na cadeira e passeou o olhar pelo quarto. Finalmente falou:

- O despertar para a vida religiosa, ás vezes acontece quando a pessoa já é adulta. Ela não encontra paz, nem encanto num estilo de vida onde reina a corrupção dos sentidos, onde há vaidade, cobiça inveja e mentiras. Por isso, ela procura a paz, conforto para o espírito numa vida religiosa. Para se viver plenamente à religião cristã, é preciso viver-se em santidade, afastar de si as tentações, os vícios, os maus pensamentos. Se a pessoa não consegue isso, não deve se entregar e se dedicar a uma doutrina religiosa, tampouco zombar da religião e desrespeitar o título que ostenta.

Dom Fernandes fez uma pequena pausa e perguntou:

- Irmã Dolores, diga a verdade, a senhora e a irmã Celeste estiveram nesse quarto, altas horas da noite, sem o conhecimento da madre superiora?

- Sim, senhor. Respondeu a moça, olhando rapidamente o rosto do bispo.

- Por quê? Que motivos tiveram para vir aqui numa hora imprópria?

Nervosa Dolores evitou encarar o sacerdote.

- A idéia foi da irmã Celeste. Ela acha o irmão Pedro, atraente.

- Não pensou que a irmã Celeste estava caindo em tentação?

- Pensei senhor reverendo.

- E por que concordou em acompanhá-la? Estava pensando também em seduzir esse homem?

Dolores fez o sinal da cruz.

- Deus me livre e perdoe. Nunca pensei nisso. Caí no erro ao confiar na irmã Celeste.

- Celeste tem uma personalidade forte, é cativante e consegue fazer valer suas vontades. Explicou Luzia.

Dom Fernandes sacudiu a cabeça em sinal de compreensão.

- Irmã Dolores, sabe se Celeste estava fingindo-se de doente?

Dolores ergueu o rosto e só então, resolveu enfrentar a expressão severa do bispo.

- Não sei senhor reverendo, mas ela comentou que não queria ir ao enterro e que arranjaria um jeito de ficar no convento.

O bispo deu uma pancada com a mão sobre a mesa e as duas freiras estremeceram de susto.

- Muito bem! Exclamou ele. - Irmã Luzia, Celeste deverá deixar a Ordem e abandonar o convento. Quanto à Dolores, uma penitencia severa deverá fazer com que ela reflita sobre seus atos e que, de hoje em diante, tenha atitudes honráveis, dignas de uma religiosa. Agora, podem nos deixar a sós, preciso conversar com este senhor.

Quando as duas freiras saíram, o bispo encarou-me.

- A sua permanência neste convento é incorreta, mas levando em conta as circunstancias e o trabalho que o senhor executa, podemos abrir uma exceção. O senhor tem sido útil, os seus livros estão sendo bem aceitos pela comunidade religiosa. Mas, eu gostaria de saber por que o senhor quer viver isolado desse jeito?

- Realizar meu trabalho é uma forma de pagar a hospitalidade das freiras. Quanto ao meu isolamento, o mundo lá fora não me atrai. Já não sinto prazer em desfrutar os bens que ele oferece.

- Uma atitude admirável. Comentou o bispo.

Após um momento em silencio, disse:

- Preciso partir.

O sacerdote estendeu a mão, beijei-lhe o anel, ele me abençoou e partiu.



Dias e semanas se passaram. A rotina na minha vida sempre foi à mesma, dediquei o tempo todo em desenhar e ler. As freiras me traziam o material de que precisava para recuperar livros, escrever textos e desenhar. Irmão Luzia tornou-se a madre superiora e Dolores nunca mais apareceu na torre. A vida seguiu seu curso. Todos os dias as freiras levavam minhas refeições nas horas certas, mas certa manhã ninguém apareceu. Continuei trabalhando normalmente. Ao meio dia soaram batidas na porta. Era irmã Serena, levando-me o almoço.

- Desculpe o atraso, irmão Pedro. Algumas de nossas irmãs estão doentes e na cidade também, muitas pessoas estão enfermas. È uma epidemia de gripe...

- Não precisa se desculpar. E a irmã Luzia?

- Também está na cama, doente. Chegaram enfermeiras da capital para nos socorrer. Farei o possível para lhe trazer as refeições na hora certa. Com licença.

A jovem freira retirou-se e sentei-me para comer. Havia apenas um prato com batatas cosidas no vapor, salada de tomates e um pedaço de queijo. Aquela foi a ultima refeição que recebi no convento. Naquele dia ninguém mais apareceu em meu quarto, tampouco no dia seguinte. Passaram-se três dias sem que alguém batesse na porta. Eu bebia apenas água.

Na tarde do dia seguinte, resolvi sair da torre e verificar o que estava acontecendo. Tomei um banho, vesti roupas limpas e sai do quarto. Sentindo-me um pouco fraco, desci lentamente as escadas e logo depois cheguei ao jardim interno. Não havia ninguém a vista, tudo estava em silencio. Examinando os aposentos descobri que estava deserta, inclusive a capela. Voltando à cozinha, encontrei alguns alimentos na despensa. Depois de saciar a fome, bebi água de uma talha. Ainda estava com a caneca na mão, quando ouvi um ruído e vozes. Saí da cozinha e olhei para a entrada do pátio. Duas mulheres e um homem acabavam de entrar pelo portão. Uma das mulheres era Serena, a outra vestia um uniforme de enfermeira. Tive a impressão de que a conhecia. Fiquei parado na porta da cozinha e esperei. A meu ver, Serena exclamou;

- Irmão Pedro! Espere!

Olhei para a enfermeira tentando reconhecê-la. Serena estava dizendo alguma coisa, mas eu não a escutava. Não acreditei no que via. Minhas pernas vacilaram, meus braços penderam e tive que me sentar no chão para não cair. A enfermeira correu na minha direção.

- Artur! O que está sentindo?

- Foi apenas uma tontura. Eu estou sonhando, ou morri? Você é Judite!

- Sim, querido, sou Judite. Você não está sonhando. Finalmente o encontrei! Quando você desapareceu, encontramos o seu casaco na margem do rio e todos julgaram que você tinha morrido. Mas, eu, eu não acreditei nisso, sempre tive a certeza de que você estava vivo e que um dia o encontraria. Irmã Serena me disse que há doze anos apareceu um rapaz no convento, que tinha perdido a memória e vivia na torre. Tive esperança de que era você...

- O que aconteceu com as freiras? Perguntei e o homem respondeu:

- Houve uma epidemia de gripe na cidade e as freiras também ficaram doentes. Elas foram transferidas para o hospital.

- Artur, esse é o doutor Gonzaga. Nós vamos levá-lo para o hospital, vamos.

- Espere! Você está comprometida? Casou-se com outro homem?

Judite sorriu.

- Não! Nunca pensei nisso, sempre esperei a sua volta!

- E, você ainda quer casar comigo?

- È claro! Mas, não vamos nos preocupar com isso agora, primeiro vamos tratar da sua saúde.

Amparado por Judite e pelo médico, saí do convento, agora com uma vontade imensa de poder desfrutar as belezas e alegrias da vida!...

FIM

ANTONIO STEGUES BATISTA
Autor: Antonio Stegues Batista


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