O COLECIONADOR DE SONHOS



O COLECIONADOR DE SONHOS


Macedo caminhava lentamente pela rua poeirenta do pequeno povoado. As marcas de seus pés descalços ficavam na poeira e a sujeira se incorporava a seu corpo maltratado pela vida árdua. Mas ele caminhava indiferente ao calor estafante, ao sol a pino, ao castigo a que ele mesmo se impunha. No fim da rua deparou com uma cerca de arame, como a avisar que havia ali um limite entre o território pobre e o latifúndio. Os passos de Macedo que eram lentos tornaram-se mais brandos até a completa paralisação. Segurou no arame, fez com que a cerca oscilasse e finalmente olhou o horizonte. As pastagens transbordavam o viço ocasionado pelas chuvas recentes. Como se o olhar conquistasse o domínio das terras, olhou-a, sem, entretanto fixar os olhos num ponto específico. Deu meia volta e agora com passos mais rápidos embora vacilantes, fez o trajeto de volta. Talvez soubesse aonde pretendia agora chegar. Mal divisou uma birosca, sorriu como se descobrisse um bem real e de grandes proporções. Parou na porta, aguardou que os olhos se acostumassem ao ambiente quase escuro e ali entrou como quem ingressa numa catedral com a qual se sonhou por anos a fio. Tomou um gole de aguardente, devolveu o copo encardido, passou as costas da mão áspera sobre a boca e retornou a caminhada. Não sabia bem para onde ir, apenas que era necessário andar, andar muito, decifrar horizontes, repartir glebas de terras com o olhar, sonhar com olhos abertos. Absorto, guiado pelos pensamentos inócuos caminhou em busca de um rumo incerto.
- Macedo! ? Gritou sua mulher quando o viu passar em frente ao barraco em que moravam. Ele a olhou como se não a reconhecesse e prosseguiu a caminhada. Ela novamente chamou-o com veemência mesmo sabendo que nada, nenhum apelo, nenhum grito, nenhum lamento iria interromper seu vaguear tão inútil quanto desnorteado. Os filhos ? quatro ao todo ? surgiram com feições intrigadas e receberam da mãe as explicações; racionais, breves, conclusivas ? Seu pai anda diferente nos últimos tempos. Não trabalha mais e anda prá lá e prá cá como um verdadeiro zumbi.
Macedo agora se postava diante de uma casa, que para os padrões do povoado era espaçosa e bem construída; uma pequena chácara. Olhou-a de longe como se dele se apossasse um súbito medo de se aproximar. No entanto, sentiu de repente um incontrolável desejo de tocar o muro, as portas ou até quem sabe, acionar a maçaneta, abrir o portão carcomido pela ferrugem e caminhar pelo gramado mal conservado. Assim que terminou sua observação, entrou na pequena propriedade. Caminhou, sentou-se na escada da varanda e ali ficou por horas a fio como se esperasse o proprietário para uma visita de rotina. Seus sonhos lhe trouxeram o doce prazer de se imaginar dono de tudo que ali existia. A casa, o paiol abarrotado de milho, as galinhas que se escondiam estafadas pelo calor, sob as laranjeiras pálidas. Em seus devaneios turvos tudo ali lhe pertencia, assim como todas as terras que circundavam o povoado. Os sonhos não permitiam que conjeturasse se tudo teria sido ganho, comprado ou fruto de uma herança; não lhe interessavam os detalhes menores. Lembrava-se agora dos sonhos nas noites mal dormidas que jamais o fascinaram; eram em preto e branco. Encantava-se sim, com os sonhos diários, cujas visões eram reais, palpáveis, marcantes.
Na noite escura e fria voltou ao barraco pobre, o mais pobre entre os miseráveis barracos do povoado, construído com restos de demolição, onde o papelão complementava a alvenaria ordinária. O telhado se mantinha como algo que se destina a desafiar o equilíbrio, sobre a madeira apodrecida. A iluminação provinha de uma lamparina cuja luz bruxuleante insistia em quase se apagar. Macedo entrou no barraco modesto, cabisbaixo, quase envergonhado dos seus inúteis sonhos. Lamentou intimamente que nenhum conforto lhe fora permitido na vida, assim como concluiu que nenhum merecia. Nada, além de seus sonhos seria capaz de produzir uma felicidade, uma esperança, uma ilusão qualquer, mesmo que escassa. Olhou para os filhos que dormiam lado a lado no ambiente fétido e promíscuo. Não se enterneceu, tampouco se contrariou com a visão que lhe afetava. Com os pés sujos, a roupa enegrecida e malcheirosa, deitou-se na cama tosca. Sua mulher já dormia um sono pesado, barulhento, revelado pelo inevitável cansaço. Soprou o pavio aceso da lamparina que agora resistia em colocar fim à sua chama tênue. Colocou o braço sobre o rosto, aguardando que o sono lhe chegasse e transportasse seus sonhos irrealizáveis para os novos sonhos em preto e branco das noites mal dormidas!

Autor: Miguel Lima


Artigos Relacionados


Onde Guardo

O Fantasma

Os Olhos De Ana

Sonhos

O Livro Da Capa Amarela

Realize Seus Sonhos

Morte Aos Sonhos