DEVANEIOS




DEVANEIOS

Ando por aí, sem pressa como se o mundo pudesse me esperar. Não tenho motivo para me apressar, o que mais me falta é motivação. Como um motivo para dissipar minha angústia, olho para tudo que encontro pela frente; rostos, letreiros, carros, máquinas, fumaça, gente... mais gente; para onde vão tantas pessoas? Sempre tive a mania de olhar para tudo. Sinto um pouco de fome e aspiro o cheiro bom de hambúrguer que vem de uma lanchonete suja e lotada. Sinto que meu estômago já se acostumou à falta de comida nas horas certas. Não sinto cansaço, mas uma agonia que corrói. Uma sensação de fracasso, uma dor de cabeça que parece nunca ter fim.
Acabei de voltar de algumas obras. Não há vagas no momento. Recebi a resposta do encarregado, que não se condoeu com meus argumentos ? cinco bocas para tratar ? "não posso fabricar empregos" ? me disse sem querer ser áspero.
Lembro-me agora do que o candidato disse na televisão: "O homem desempregado não tem dignidade." Não sei bem o que ele quis dizer com dignidade, mas não tenho dignidade, como não tenho roupas, comida em casa, momentos de alegria, dias sem a dor da derrota, da tristeza fácil.
Caminho sem vontade de voltar para casa. Lá encontrarei os olhares indagadores da Matilde e dos filhos como a me perguntar ? e aí? ? Nada - vou responder constrangido. Mentiria para eles, dizendo que recebi um ligeiro aceno do encarregado em uma obra. Amanhã, talvez!
Já pensei em quase tudo. Me matar. Ser atropelado, morte quase sem dor. O pastor de uma igreja, da qual não me lembro o nome, me disse que pela lei de Deus a vida não me pertence. Concordei com ele e tirei a idéia da cabeça.
Penso agora como seria fácil praticar um assalto. Uma dessas armas de brinquedo ? como se parecem com as verdadeiras, não é mesmo? ? uma noite escura, chego no sina fechado e pronto ? "perdeu, perdeu, passe a grana" ? aprendi as palavras na televisão. Um vizinho que toca a vida com pequenos assaltos me disse que difícil é a primeira vez. Depois a gente perde o medo e se acostuma. Não se pode é ser ganancioso. Às vezes treino em frente ao espelho remendado de fita adesiva, da
cômoda lá de casa; dedo apontado como se fosse uma arma ? tá doido, Zé?! ? recrimina a Matilde. Acho que eu não seria um bom assaltante, faltam princípios.
Ah! E aqueles programas de televisão que levam a gente de volta para nossa terra?! Poderia ser bom para mim. Televisão filmando, a Matilde de roupa nova, a família toda demonstrando uma alegria que há muito não se tem, a viagem de avião. Bobagem; acho que aquilo só muda o endereço da miséria.
Procuro um lugar para sentar e não encontro. O conserto do sapato ficou uma merda. O preguinho está machucando o dedão! Alguém que não conheço, não sei por qual motivo, pergunta meu nome e respondo sem pensar:
- Desempregado!



Autor: Miguel Lima


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