A HISTÓRIA DE NINA LANCASTER
- Alô?
-: Álvaro? O que você está fazendo?
Era Murilo Cássia, seu chefe.
- Me preparando para viajar. Por quê?
-: Tenho uma missão urgente para você.
- O quê? Esqueceu que você me deu férias? Murilo eu estou de férias, vou pro nordeste com a Virginia e já comprei as passagens!...
-: Cancele tudo.
- Você não pode me obrigar a fazer isso!
-: Escute, acabo de receber uma informação importante. Se for verdadeira vai ser uma bomba! Não podemos perder tempo! Temos que conseguir essa matéria e não confio em mais ninguém. Somente você poderá fazer essa reportagem.
- Nesse momento nenhuma reportagem é mais importante do que as minhas merecidas férias, Murilo! Se eu adiar essa viagem Virginia vai me esfolar vivo!
-: Não se preocupe, eu converso com ela.
- Afinal, do que se trata?
-: Com certeza você já ouviu falar em Nina Lancaster!...
- Não.
-: Como não? Ela foi uma grande atriz do teatro e do cinema nos anos setenta e oitenta. Oficialmente morreu num desastre de avião em mil novecentos e oitenta e um, mas acabo de saber que ela está viva! Venha para a redação logo, vamos conversar a respeito disso.
Murilo desligou o telefone sem dar tempo para Álvaro retrucar. Contrariado, ele mudou de roupa e dirigiu-se para a editora. Aborrecido, sentou-se em frente ao seu chefe.
- Não se preocupe. Disse Murilo num tom amistoso. - Já conversei com tua noiva e expliquei a ela o quanto é importante essa matéria para nós. Virginia ficou aborrecida, mas concordou em esperar alguns dias para poder viajar com você.
Murilo fez uma pausa e Álvaro permaneceu calado, esperando que ele continuasse.
- Nina Lancaster foi uma grande atriz do cinema americano e brasileiro nos anos setenta e oitenta, conhecida tanto por sua arte cênica quanto pelas obras sociais que realizou. Nina desapareceu num desastre de avião em mil novecentos e oitenta e um e foi dada oficialmente como morta. Pois, bem, o jornalista Olavo Gutenberg descobriu que ela está viva e me passou logo essa informação. Vindo de Gutenberg você sabe que é uma dica quente.
Murilo empurrou uma pasta de cartolina azul ao alcance de Álvaro e debruçou-se sobre a mesa.
- Aí esta o dossiê dela. Você leva para casa e lê com calma. Gutenberg está morando em Guaratuba e descobriu que Nina vive na mesma região. Ele disse que vai nos ajudar da forma que lhe for possível. Combinamos que você vai se encontrar com ele amanhã à tarde. Portanto, você procura ler o dossiê hoje à noite e parte amanhã pela manhã. Já mandei comprar a passagem. Certo? Não fale com ninguém sobre esse assunto. Temos que trabalhar em segredo para conseguir essa matéria com exclusividade. Quando conseguir provas de que a mulher é realmente Nina Lancaster, tire fotos e se possível, uma entrevista. OK?
Como sempre, Murilo foi rápido nas decisões. Álvaro não teve como recusar aquela missão. A única coisa que o preocupava era a reação da noiva.
Quando chegou no apartamento, a primeira coisa que ele fez foi telefonar para Virginia.
- Nós vamos ter que adiar nossa viagem. Disse.
-: Para onde você vai? Murilo não quis me dizer nada!
- Vou fazer uma reportagem, mas não posso falar a respeito.
-: Não estou gostando nada disso, Álvaro!
- Vida de jornalista é assim mesmo. Você vai ter que se acostumar!...
-: Não estou gostando de descobrir que vou casar com alguém que não confia em mim!...
Desabafou Virginia e desligou o telefone. Álvaro decidiu que não poderia se preocupar com os arrufos dela. Aquela reportagem poderia dar um impulso na sua carreira. Virginia acabaria compreendendo isso. Ele largou o fone, pegou o dossiê de Nina e começou a ler.
O verdadeiro nome de Nina Lancaster era Joaquina da Conceição, nascida a 25 de Julho de 1938 na cidade de Itabuna, Bahia. A família mudou-se para São Paulo em 1954 e em 56, Nina começa a sua carreira de modelo. Três anos depois se muda para Nova York, onde o diretor de cinema, Rick Morrison a convida para participar do elenco de um filme. A sua atuação no filme é elogiada e Nina decide abandonar a passarela para se tornar atriz. Faz curso de arte dramática enquanto tem participação em mais dois filmes de Rick. Em 1965 ela e Rick se casam. Em 67 estréia no teatro. O marido morre em 1968. Em 69 e 70 ela atua em dois filmes brasileiros.
No ano de 1971, já consagrada como atriz, Nina ganha o primeiro Oscar, e nesse mesmo ano casa-se com o ator de cinema, Frank Bolam, oito anos mais jovem que ela, mas o casamento é desfeito um ano e meio depois. Em 73, Nina estrela mais um filme de sucesso e abandona de vez o palco de teatro. Dedica-se apenas ao cinema e a obras de caridade. Em 1975 ganha o segundo Oscar. No ano seguinte casa-se com o diretor de cinema, Richard Greenbush. Em 81 o casal viaja para o Brasil. Nesse vôo, o avião de Richard sofre uma pane e cai no mar próximo de Salvador, na Bahia. Junto com Nina e Richard, viajava o secretário de Richard, Michel Jacques. Na queda do avião, salvam-se apenas Richard e Michel. O piloto e co-piloto morrem e o corpo de Nina nunca foi encontrado.
Álvaro chegou a Guaratuba às três horas da tarde. Olavo Gutenberg morava a beira-mar. Quando a serviçal recebeu o rapaz, levou-o diretamente para os fundos da residência.
Gutenberg estava no pomar, sentado numa cadeira lendo um livro à sombra das arvores. Sobre uma mesinha de vime, ao alcance de sua mão, tinha uma jarra de vidro com suco de laranja e dois copos. Encostado na mesa estava uma bengala e do lado oposto, uma cadeira. Emocionado, Álvaro cumprimentou Gutenberg a quem admirava pelo trabalho no jornalismo.
- Sente-se. Convidou Gutenberg indicando a cadeira. - Fez boa viagem?
- Sim, sem problemas.
O velho jornalista serviu suco para os dois. Álvaro esvaziou o copo e depositou-o sobre a mesa.
- Como está o meu velho amigo Murilo?
- Bem, mandou um abraço.
- Continua ranzinza?
- Muito, mas é um profissional competente, e honesto.
- Concordo. Por trás daquela máscara de aço se esconde um coração de veludo.
Gutenberg fez uma pausa e perguntou:
- Você leu o dossiê de Nina Lancaster?
- Li. O senhor a viu? Ela está viva realmente?
- Não, não a vi, mas vi o secretario do marido dela e depois de uma investigação descobri que ela está realmente viva e morando num sitio, a trinta quilômetros daqui.
- Como foi que o senhor descobriu?
Gutenberg recostou-se, passou a mão pelos cabelos brancos e falou pausadamente:
- Bem, depois que machuquei o joelho esquerdo numa queda, nunca mais consegui fazer longas caminhadas, além disso, a idade, você entende... Até posso andar uns dois quilômetros, mas não consigo voltar, pois o joelho não agüenta. Tem uma pessoa que me ajuda a cumprir alguns compromissos fora de casa, mas às vezes eu mesmo tenho que ir. Quando fui ao banco, uns quinze dias atrás, eu estava assinando alguns documentos na mesa do gerente, quando reconheci um homem que estava na fila do caixa. Apesar de já se terem passados vinte anos eu o reconheci como sendo Michel Jacques, secretário do marido de Nina. Michel tem um sinal de nascença na face direita. Aquele sinal de forma quase triangular era inconfundível! Imediatamente perguntei ao gerente se conhecia aquele homem. Sim, ele conhecia, era Miguel Castelo. Onde mora? Onde trabalha? O gerente se recusou a me dar maiores informações, mas como ameacei encerrar a minha conta bancária, ele resolveu se abrir. Disse que Miguel era empregado de um sítio, cuja proprietária se chama Joaquina da Conceição!
- Nina Lancaster!
- Exato, poucas pessoas conhecem o verdadeiro nome de Nina e por isso ela não procurou trocar de identidade, como Michel fez.
Gutenberg fez uma pausa e encheu os copos de suco. Depois de beber, continuou:
- Eu conheci Nina pessoalmente, em sessenta e cinco quando comecei a trabalhar em Nova York. Desde então, passei a acompanhar a carreira dela. Nina era famosa, admirada e amada por muitos, e a sua morte prematura causou um grande impacto emocional em seus fãs na época. Imagina a repercussão que vai ter quando a notícia anunciando que ela está viva for publicada!
- É verdade. Mas, por que ela se escondeu?
- É o que você vai tentar descobrir. Já sabe como fazer isso?
- Não, mas darei um jeito, não se preocupe.
Gutenberg sacudiu a cabeça.
- Muito bem! Murilo me falou que você é um bom profissional, executa o seu trabalho sem questionamentos. Que idade tem?
- Vinte e sete anos, três de jornalismo.
- Você é jovem, tem uma vida pela frente. Bem, Joaquina está precisando de alguém para trabalhar no sitio. Consegui uma carta de apresentação com um fazendeiro amigo meu. Com ela você terá maior chance de conseguir o emprego. Na carta o fazendeiro diz que você perdeu a carteira profissional. Dessa forma eles não vão saber que você é jornalista. Leve apenas a identidade. Trouxe bagagem?
- Sim, deixei no hall.
- Amanhã você vai para o sitio. Leve apenas o necessário, e uma pequena máquina fotográfica. Tire fotos de Nina e tente conseguir uma prova de que ela está viva!
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Álvaro desceu do ônibus exatamente na entrada do sitio. A casa de dois pisos ficava a uns cinqüenta metros distante da estrada. Do lado esquerdo via-se um galpão de madeira de teto alto próximo de uma casa pequena de meia água. Do lado oposto, distante da casa, havia um curral e uma construção que parecia ser um estábulo e outras construções menores provavelmente para animais domésticos. Sob um telheiro ao lado da casa, uma mulher lavava roupas num tanque. Ao ver Álvaro ela foi até a porta da casa e chamou alguém. Um homem surgiu e encaminhou-se para o portão.
- Bom dia! Saudou o rapaz, procurando ser o mais natural possível. Precisava fingir que era homem do campo, com seus trejeitos e linguagem, mas ele não teve tempo para criar um personagem convincente. Poderia ter feito alguns ensaios até ter certeza de que passaria por um sujeito acostumado a viver no meio rural. Não teve tempo para isso. Teria que improvisar.
- Bom dia. O que deseja?
Segurando uma mochila, Álvaro observou o homem e de acordo com a descrição de Gutenberg, aquele era Michel Jacques, aliás, Miguel Castelo.
- Estou precisando de um emprego, e me disseram que vocês estão precisando de um empregado...
- Tem experiência com as lidas do campo?
- Sim, senhor. Trabalhei na fazenda Três Figueiras e tenho uma carta de recomendação.
O rapaz tirou um papel do bolso e passou para o homem. Após examinar o documento, ele voltou a encarar Álvaro.
- Já mandou fazer a carteira profissional?
- Sim, senhor, mas vai demorar alguns dias para ficar pronta.
- Posso contratá-lo por trinta dias como experiência...
Álvaro sacudiu a cabeça. Trinta dias lhe dava tempo suficiente para conseguir provas de que Nina Lancaster estava viva.
- Posso começar agora se o senhor quiser...
O homem abriu o portão.
- Sou o capataz. Meu nome é Miguel. Tem documento de identidade?
- Sim, senhor.
Miguel conduziu o rapaz para a casa pequena, ao lado do galpão. A construção tinha apenas dois aposentos, um era o quarto com duas camas e um roupeiro, no outro aposento havia um fogão de ferro a lenha, um armário, mesa com três cadeiras, uma poltrona e um aparelho de televisão num suporte pregado na parede.
- A patroa fornece as refeições, mas o café a gente faz aqui mesmo no fogão.
Miguel sentou-se e esperou que Álvaro se acomodasse na outra cadeira.
- O sitio é pequeno. A sua função vai ser me ajudar a fazer alguns reparos, manter tudo limpo e organizado, cuidar de dois cavalos, uma vaca leiteira e algumas galinhas e porcos e vigiar a propriedade. Se encontrar gente estranha me avise imediatamente. Compreendeu?
- Sim, senhor. Mas, ainda não conheço as outras pessoas da casa. Como vou saber quem são os estranhos?
- Apenas a patroa, eu e dona Teresa que também é empregada, moramos aqui. Bom, tem a Suzana que é enfermeira e cuida da patroa. A Susana tirou alguns dias de folga. Você vai conhecê-la depois. Eu tinha um ajudante, mas fui obrigado a mandá-lo embora porque era indisciplinado, não respeitava as regras.
- E quais são as regras?
- Ser discreto, não entrar no sobrado sem ser convidado, cuidar do sitio como se fosse seu e, sobretudo, obedecer minhas ordens. Você precisa ser eficiente para que mais tarde, eu possa lhe pagar um ordenado melhor. Entendeu?
- Não tem dúvida.
- Vista uma roupa para o trabalho e guarde suas coisas no roupeiro. Vou ao escritório pegar um contrato para você assinar.
- O senhor disse que uma enfermeira cuida da patroa. Ela está doente?
- Está e não pode ser incomodada.
Miguel saiu e Álvaro guardou suas roupas. A maquina fotográfica ele enrolou num lenço e escondeu atrás do roupeiro. Vestiu uma calça jeans velha, uma camisa e calçou umas botinas que havia comprado na cidade. Miguel voltou com um papel na mão. Pediu a cédula de identidade do rapaz e preencheu o documento. Álvaro assinou e o capataz dobrou a folha de papel e guardou-a no bolso traseiro da calça.
- Vamos. Temos que consertar o curral.
Álvaro seguiu Miguel até o galpão onde eles pegaram madeira, ferramentas e pregos.
Naquela manhã, o rapaz ajudou o capataz a consertar o curral. Ao meio dia eles fizeram uma pausa para o almoço. A comida foi servida na varanda do sobrado.
- O nosso horário de serviço é de segunda a sábado, das oito horas da manhã, as onze e meia e da uma e meia às cinco da tarde, ou até que os animais tenham sido alimentados e recolhidos. Disse Miguel.
- No domingo posso ir à cidade?
- Claro. Vai visitar a família?
- Não, eles moram no interior.
- Tem namorada?
- Tenho.
Miguel sacudiu a cabeça e continuou a comer em silencio.
- E você Miguel, tem família?
- Não.
- Há quanto tempo trabalha aqui?
- Alguns anos.
- Pelo seu jeito de falar, me parece que você é estrangeiro!...
- Nasci na França. Meu pai era francês e minha mãe brasileira. Morei algum tempo na França...
Álvaro ficou calado. Ainda tinha muitas perguntas para fazer, mas resolveu adiá-las. Miguel acabou de comer e foi sentar-se num banco à sombra da figueira. Álvaro deitou-se no gramado ao lado dele. Algum tempo depois, estava quase adormecendo quando o capataz sacudiu-o pelo ombro.
- Vamos trabalhar.
Voltando ao trabalho no curral, Álvaro começou a ficar com bolhas nas mãos e ele teve que trabalhar com luvas. No final do dia, sentia-se extenuado. Não estava acostumado aquele tipo de serviço. Naquela noite dormiu como uma pedra. Miguel acordou-o na manhã seguinte às sete horas. Depois de tomarem um café reforçado, o capataz deu-lhe uma enxada e mandou-o capinar as ervas daninha ao redor da casa. Pela tarde o seu trabalho foi preparar um pedaço de terreno para o plantio de hortaliças. Miguel plantou algumas mudas que estavam num viveiro e até o final da tarde o trabalho estava terminado. Quando se deitou para dormir, Álvaro meditou sobre sua situação. Estava há dois dias no sitio e ainda não tinha visto Nina. Miguel disse que ela estava doente e talvez por isso ela não saísse de casa. Ele precisava inventar uma desculpa para ver a patroa e talvez tirar uma fotografia dela. Ou seria melhor esperar que ela saísse da casa para poder fotografá-la, mesmo a distancia. Na manhã seguinte ele acordou e viu que já passavam das sete horas.
Miguel não estava na cama dele. Ergueu-se rápido, mudou de roupa e saiu do quarto. Sobre a mesa estavam o café, duas xícaras, o pão, salaminho e queijo, intactos. Miguel saiu sem tomar café. Álvaro tomou o desjejum e saiu à procura do capataz. Notou que na frente do sobrado estava um carro estacionado. Um homem carregando uma maleta saiu da casa em companhia de Miguel, despediu-se dele entrou no carro e partiu. Álvaro foi ao encontro do capataz. Miguel exibia uma expressão de tristeza.
- O que aconteceu?
- A patroa esteve mal esta noite.
- O que tem ela?
- Câncer. Tem poucos dias de vida.
Álvaro recebeu a notícia com surpresa e desalento.
- Ela fez tratamento, mas não tem mais jeito!...
Álvaro falou por impulso:
- Posso vê-la?
Miguel começou a andar na direção do galpão.
- Pra que?
Procurando acompanhar os passos largos do capataz, o rapaz respondeu:
- Quero conhecê-la. Não posso?
- A patroa não pode receber visitas.
Chegando ao galpão o capataz entrou numa caminhoneta.
- Eu vou à cidade e você cuide dos animais.
Álvaro viu-o partir e depois foi tratar dos animais. Levou a vaca e os dois cavalos para o pasto. Era a primeira tarefa do dia. Quando terminou, Miguel ainda não tinha retornado. Álvaro tomou uma decisão, pegou a máquina fotográfica colocou no bolso da calça e dirigiu-se para a casa. A porta da frente estava sempre trancada, mas a dos fundos estava aberta. Teresa lavava roupas no tanque. O rapaz entrou rápido pela cozinha sem que a empregada percebesse. Quando começou a subir a escada para o piso superior, deparou-se com uma moça que ia descendo.
Ela vestia uniforme de enfermeira.
- Miguel saiu. Disse ela.
- Pensei que já tinha voltado. Eu sou o Álvaro...
- Eu sei.
- Posso falar com dona Joaquina?
- Dona Joaquina está dormindo, ela passou mal à noite e não pode conversar com ninguém.
A moça calou-se, esperando que o rapaz se retirasse. Álvaro saiu pela cozinha e a enfermeira acompanhou-o até a varanda.
- Você chegou hoje? Perguntou Álvaro.
- Sim. Como dona Joaquina estava bem, tirei dois dias de folga.
Álvaro recostou-se no parapeito e fitou a enfermeira. Era uma moça bonita, de aspecto calmo e olhar penetrante. Dentro da casa soou a campainha do telefone.
- Escute como é o teu nome?
- Suzana.
- Suzana, eu precisava ver dona Joaquina.
- Miguel não quer que ninguém a incomode. Se quiser dizer alguma coisa, diga a mim que eu transmitirei a ela. Do que se trata?
Antes que Álvaro respondesse, a porta se abriu e surgiu Teresa.
- Álvaro! Alguém quer falar com você ao telefone!
O rapaz entrou na sala e pegou o fone sobre a mesa, colocando a mão perto da boca para abafar o som.
- Alô?
-: Álvaro? É Murilo. Já conseguiu alguma foto?
- Não, ainda não. Não está fácil! Murilo, ela está com câncer em estado terminal!
-: Então? Você tem que se apressar! Faça de tudo para conseguir essas fotos rapaz! Essa reportagem vai deixar você famoso, e nos dar muito dinheiro!
- Tudo bem, Murilo. Preciso desligar.
Álvaro colocou o fone no gancho. Suzana passou por ele e subiu para o piso superior. O rapaz saiu e encontrou-se com Miguel que chegava naquele instante carregando um pacote.
- Atrele o cavalo baio na carroça. Nós vamos ao campo. Disse ele, e entrou na casa. Álvaro já tinha visto cavalos atrelados a uma carroça e procurou se lembrar como aquilo era feito. Não foi muito difícil. Quando Miguel voltou, tudo estava pronto. O capataz colocou na carroça alguns moirões, um rolo de arame farpado, um pacote de grampos e ferramentas e os dois partiram para o campo.
Álvaro acordou na manhã seguinte cansado e com a idéia de desistir da sua missão. Mesmo que conseguisse uma copia de um documento com o nome de Joaquina da Conceição, não poderia provar que ela era Nina Lancaster. A não ser que tivesse uma fotografia dela. E não podia entrar no quarto dela sem ser descoberto. Miguel o expulsaria, com certeza.
Álvaro levantou-se e encontrou Miguel preparando o desjejum.
- A patroa quer ver você hoje à tarde. Disse o capataz colocando o pão sobre a mesa.
O rapaz ficou surpreso. Não esperava por aquilo.
- Por quê? Fiz alguma coisa errada?
- Não. Ela quer apenas conhecer o novo empregado.
Álvaro exultou. Finalmente estaria frente a frente com Nina Lancaster! Levaria a câmera no bolso, faria algumas perguntas e bateria as fotos enquanto a mulher estivesse distraída. No dia seguinte pediria demissão do emprego. Talvez fosse melhor deixar um recado com a empregada e sumir. Teria que tirar uma foto de Miguel também, mas isso não seria problema. Depois do café, antes de sair, Miguel ordenou-lhe dar comida para os animais.
- Preciso ir ao banheiro, antes. Disse o rapaz. O capataz saiu e foi para o galpão. Rapidamente Álvaro entrou no quarto, pegou a maquina fotográfica e pela janela, esperou o capataz sair. Miguel surgiu na porta do galpão com uns arreios na mão. Álvaro tirou cinco fotografias dele e guardou a máquina.
Acabando de almoçar, Álvaro permaneceu na varanda, tenso. Logo estaria diante de Nina. Precisava demonstrar naturalidade, responder as perguntas dela e procurar fazer perguntas sem que ela percebesse suas reais intenções. Com certeza ela não tocaria no assunto que ele queria abordar, mas poderia calcular fatos sobre o que ela dissesse. Miguel pouco falou durante o almoço e quando acabou de comer, entrou na casa. Voltou dez minutos depois, dizendo que Álvaro poderia subir. Ansioso, com a máquina fotográfica no bolso traseiro da calça, ele seguiu o capataz. Miguel fez as apresentações e saiu em companhia da enfermeira. Joaquina estava deitada na cama, recostada nos travesseiros. Os cabelos compridos e grisalhos emolduravam seu rosto pálido.
- Sente-se. Disse ela num tom de voz suave. Álvaro ajeitou a máquina no bolso e sentou-se ereto, na beira da cadeira.
- Está gostando de trabalhar conosco?
- Sim, senhora.
- De onde você é?
- Cruz Alta.
- Que idade tem?
- Vinte e sete.
- Como é o nome de sua mãe?
- Maria Madalena de Azevedo Pimentel.
- E vocês estão morando onde?
- Minha mãe já é falecida. Eu moro sozinho, isto é, sempre onde há trabalho.
Álvaro não esperou que ela fizesse outra pergunta, agora era a sua vez de fazê-las.
- Miguel me disse que a senhora está doente. É muito grave o que a senhora tem?
- Sim. Tenho pouco tempo de vida. Disse Nina, esboçando um sorriso. Álvaro admirou-se com a atitude dela. Mas ele estava preocupado em tirar-lhe mais informações.
- A senhora é viúva?
- Sim. Meu marido morreu há oito anos.
- E faz muito tempo que a senhora mora aqui?
- Vai fazer uns dez anos.
- A senhora não tem filhos?
Nina sorriu. Ergueu o tronco, ajeitou os cabelos e voltou a recostar-se. Só então, Álvaro viu a cicatriz no rosto dela.
- Tenho um filho.
Álvaro sentiu-se chocado. A cicatriz começava na têmpora esquerda e terminava na maxila inferior, um sulco acentuado que os cirurgiões plásticos tentaram desfazer. Nina notou a sua sutil expressão de surpresa.
- Sofri um desastre de avião. Disse ela. Álvaro surpreendeu-se com aquela revelação espontânea. ? Eu era atriz de cinema e morava com meu marido nos Estados Unidos. Em 1981 nos viajamos para o Brasil, para ver meu filho, quando o avião caiu no mar, próximo de Salvador. O aparelho demorou alguns minutos para afundar, tempo suficientes para meu marido me levar para fora e voltar para buscar Miguel, o nosso secretário que tinha desmaiado. Ele me deixou agarrada a uma das asas do avião. O mar estava revolto e um pedaço da fuselagem que havia se soltado, foi atirada por uma onda contra meu rosto. Perdi os sentidos e quando acordei, descobri que estava caída na praia, num lugar ermo. Estava coberta de sangue e muito fraca. Voltei a desmaiar. Miguel me encontrou duas horas depois e avisou meu marido, Richard.
Nina fez uma pausa para tomar fôlego e Álvaro esperou com paciência.
- Richard e Miguel me levaram para um hospital e me registraram com meu nome de batismo e dessa forma permaneci no anonimato. Do hospital fui transferida para uma clínica particular onde fui atendida por um cirurgião plástico amigo de Richard. Daquele momento em diante Nina Lancaster estava morta e quem estava no hospital era Joaquina da Conceição.
Nina fez nova pausa e Álvaro permaneceu calado. A historia contada pela própria Nina, e a situação dela, o deixavam desanimado. Não se importava mais com o objetivo que o levou àquele sítio. Ele estava disposto a ir embora, mas Nina ainda tinha mais coisas para contar.
- Casei-me com Richard em 1976 e em 77 fiquei grávida e vim para o Brasil no anonimato para ganhar meu filho. Após o parto eu tive que cumprir alguns compromissos e deixei meu filho aos cuidados de minha irmã por parte de pai. Eu não queria que meu filho fosse objeto de curiosidade e por isso deixei-o com minha irmã, até eu cumprir todos os contratos que havia assinado. Em 1981 vim ao Brasil exatamente para buscar meu filho, quando aconteceu o desastre. Depois da primeira cirurgia, pedi para Richard procurar minha irmã, mas ela tinha mudado de residência e como pensava que eu havia morrido não me telefonou mais. Assim, nunca mais eu soube de minha irmã e de meu filho...
Nina calou-se com uma expressão de dor. Álvaro ergueu-se, aflito.
- A senhora está sentindo alguma coisa?
- Eu, sempre pedi a Deus para ver meu filho pela ultima vez.... antes de ...
Nina soltou um longo suspiro e ficou imóvel. Álvaro saiu do quarto às pressas chamando a enfermeira e Miguel.
Após o funeral de Nina, Álvaro voltou para o sítio com Miguel. De expressão triste o capataz sentou-se na escada da varanda. Álvaro sentou-se ao lado dele, dizendo:
- Você dedicou sua vida a ela, fez o que pode para ajudá-la. Nessas horas passamos a pensar o quanto à vida é cruel. O importante é o esforço, a dedicação. A vida é assim mesmo, a pessoa vai embora, mas ficam as lembranças e a certeza de que cumprimos com o nosso dever.
Miguel sacudiu a cabeça e tocou-o no ombro. Álvaro ficou calado por algum tempo, até que falou:
- Miguel, eu tenho uma coisa pra te confessar. Eu sou um repórter e tinha intenção de tirar fotografias de Nina.
- Eu sei.
- Sabe? Desde quando?
- Desde ontem. Quando fui à cidade pedir informações à secretaria de identificação.
- Você desconfiou de mim e não acreditou naquela carta de recomendação...
- Não, não foi por isso que fui investigar. Quando Nina leu o teu nome no contrato, pediu-me que o investigasse.
- Por quê?
- Porque o nome da tua mãe é o mesmo nome da irmã dela, a irmã que cuidava do filho de Nina.
Álvaro ergueu-se, surpreso.
- Minha mãe era a mulher que cuidava do filho dela? Tem certeza?
- Sim, o nome, a filiação, as datas, tudo coincide.
- Mas, eu sou filho único!
Miguel ergueu-se e encarou Álvaro.
- Então? Você é o filho de Nina Lancaster.
Atônito Álvaro voltou a sentar-se.
- Sim, minha mãe me disse certa vez, num momento de raiva, que eu era adotado e depois se arrependeu, disse que era mentira. Isso ficou sempre na minha memória!
Um táxi surgiu na estrada entrou no sitio e estacionou sob a figueira. Dele desceram Gutenberg e Virginia. Álvaro foi ao encontro deles.
- Murilo telefonou para cá e soube que Joaquina faleceu. Disse Gutenberg apoiando-se na bengala.
- Sim, foi sepultada hoje.
- Conseguiu as fotos, alguma prova?
- Não. Não consegui nada. Respondeu Álvaro e olhou para Virginia.
- O que você está fazendo aqui?
- Não acreditei em nada do que Murilo me disse e decidi saber o que está acontecendo!
- Você não acreditou em Murilo e muito menos em mim. O que acha que estou fazendo? Traindo você?
- Você é quem esta dizendo!
- Ah é? Se pensa assim, nosso casamento não vai dar certo. Acho melhor terminarmos aqui e agora!
- Cafajeste! Gritou Virginia e se afastou. Gutenberg entrou no carro e depois de se ajeitar, perguntou para Álvaro:
- Você vem conosco?
- Não.
- O que digo para Murilo?
- Diga-lhe que estou de férias e que vou passar alguns dias no sítio de um amigo.
Gutenberg assentiu com um gesto. Com lágrimas nos olhos, Virginia entrou no táxi e o veículo partiu.
- Foi melhor assim. Murmurou Álvaro olhando para o carro que se afastava. Voltando-se, viu Suzana ao lado de Miguel. Com um suspiro de satisfação pelo dever cumprido, dirigiu-se para a varanda.
FIM
Antonio Stegues Batista
Autor: Antonio Stegues Batista
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