Ser Mulher




Este rosto vincado no espelho não é meu.
Nem são meus estes dedos tortos e doloridos.
Não sou eu que me interrogo acerca do que fiz de errado.
Nem sou eu esses gestos lentos e irregulares.

Tudo isso que se mostra como se fora eu simplesmente não sou.
São outras tantas vozes que vou reconhecendo aos poucos.
Uma delas é de minha avó que gritava para minha mãe.
Outra é de minha mãe já com o chinelo na mão.

Antes dessas vozes havia outras que dormem no esquecimento dos tempos.
Vozes aflitas, perdidas, abafadas.
Vozes cansadas à beira do rio que corria sem parar.
Mãos de enrolar pão e pregar botão.

Este rosto vincado no espelho é a vizinha de minha mãe.
Aquela que víamos sair às escondidas quando descia a noite.
Este perfume que incendeia meu espírito me foi dado pelas negras de meu avô.
Aprendi com elas a ser mais que um rosto no espelho.
Aprendi com elas a me deixar levar pelos tambores que fazem meu coração pulsar.
Sou todas elas.
Sou minha avó e minha mãe
Sou a vizinha, as negras, a professora que não casou.
Sou a bailarina solitária da vidraça, a lavadeira, todas as santas e todas as putas.
Sou mulher!

Autor: Nara Junqueira


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