VISITA NO ARRAIAL



Certo dia do ano de 1702, ao amanhecer, o galope de um cavalo soou na rua principal do povoado de Riacho Torto.

Terêncio Cascudo abria seu armazém de secos e molhados quando o cavaleiro estacou a montaria em frente ao seu estabelecimento. O homem amarrou o animal em um moirão, tirou o chapéu e bateu a poeira antes de entrar. Vestia um gibão de couro sobre a camisa de algodão, calça larga e calçava botas de cano alto. Trazia na cintura, uma espada com punho de prata.

- O senhor, por gentileza, pode dar uma caneca de água a um viajante sedento?

- Sim senhor, num instante. Terêncio foi até uma tina com água e retornou com uma caneca cheia, que o desconhecido bebeu sem respirar.

- Pelo jeito o senhor vem de muito longe!...

O homem devolveu a caneca e respondeu:

- Cavalguei metade da noite, desde o vale de Rio Pardo.

- Vossa montaria também há de estar com sede...

- Este fica para depois. Agora preciso falar com o Alcaide desta província.

- Alcaide?

- Pois, o governador deste arraial!...

- Ah! Pois é Jerônimo Falcão, mas ele não está na cidade não, saiu para visitar um parente que se encontra doente. Nessas horas respondo eu pelo cargo. Terêncio Cascudo, às suas ordens...

Os dois homens apertaram-se as mãos.

- Me chamo Setembrino Pereira, alferes, soldado da guarda do senhor governador-geral. Venho avisar que sua excelência está em viagem para a capital e chega a este arraial hoje ainda, para passar a noite.

Surpreso, Terêncio exclamou:

- O Vice-Rei aqui! Causa de quê? Quero dizer, não merecemos tal honra para hospedar visitante tão ilustre! Estamos ao seu dispor.

- Sua excelência está apenas de passagem e deseja dormir esta noite numa cama limpa e macia, antes de enfrentar o sertão. O senhor deverá providenciar alojamento e refeições para a comitiva, o governador, o Ouvidor do Estado do Interior, um sacerdote e um senador. Pela manhã, o Ouvidor concederá audiência pública para ouvir vossas reivindicações.

- Revin...reiven...

- O arraial não precisa do apoio do governo?

- Sim, claro! Precisamos de...

- Isso o senhor terá que dizer ao Ouvidor. Eu tenho que continuar minha viagem.

- Está certo. Estou surpreso e honrado, pois...

- A estrada está alagada e o comboio foi obrigado a fazer este desvio. Bem, o senhor entendeu o que tem que fazer?

- Certamente. Cama macia e boa comida para os viajantes. Não quer almoçar antes de partir?

- Não tenho tempo, mas aceito algo para comer na viagem.

Rapidamente, Terêncio cortou um pão ao meio, colocou um pedaço de salame e outro de queijo, pegou uma garrafa de vinho e entregou ao alferes.

- Agora, só preciso de uma montaria descansada.

- Vou providenciar...

Quando o homem partiu, Terêncio deixou o filho cuidando do armazém e correu para o curtume do seu amigo Matias Carneiro. Matias estava conversando com o capataz e Terêncio chamou-o, fazendo um gesto. Caminharam os dois pela margem do riacho.

- Temos um assunto importante e urgente para tratar.

- O que foi homem, viu algum fantasma?

- Antes fosse compadre. Um soldado da Guarda do Vice-Rei chegou ao meu estabelecimento, avisando que ele vai chegar logo mais à noite.

- Um soldado? Quê soldado?

- O alferes Setembrino Pereira, avisando que o Governador-Geral vai chegar logo mais.

- O Vice-Rei, aqui no arraial?

- Vai passar a noite e pela manhã segue para a capital. Vou ceder minha casa, que é a mais confortável, só vou precisar de alguns colchões de palha. Precisamos reunir alguns rancheiros, pessoas importantes para fazer uma homenagem...

- Não haverá tempo para isso. Retrucou Matias. - Já avisou Jerônimo?

- Saiu ontem para caçar a ainda não voltou.

- Entonce, nós mesmos faremos as honras da casa, vosmecê como Capitão de Ordem e eu como Tenente da Milícia...



A tarde foi de intenso trabalho em Riacho Torto, os moradores recolheram o lixo das ruas e caiaram as casas. Na casa de Terêncio, as mulheres preparavam os leitos, enquanto os homens matavam dois carneiros e um porco, e acendiam o forno para o assado. Ao entardecer todos se reuniram na praça para recepcionar a comitiva real.

Finalmente a carruagem surgiu na curva da estrada, dois soldados cavalgando na dianteira e outros dois na retaguarda. Na boléia viajava um pajem ao lado do cocheiro. A carruagem entrou pela rua principal, fez o retorno e estacionou na praça. O pajem saltou e colocou um banquinho abaixo da porta para os passageiros descerem. O primeiro a descer foi um homem de cabelos compridos trajando camisa branca, rendada e calça escura enfiadas nas botas. O segundo, de barba e bigode, usava colete de couro sobre a camisa azulada. O passageiro seguinte, um sacerdote, vestia uma sotaina vermelha com uma capa cor de vinho sobre os ombros. Por fim, surgiu Dom João de Lencastre, governador-geral, usando um gibão de veludo preto, camisa branca de cetim, calça do mesmo tecido e botas enfeitadas com renda amarela e fivela dourada. O Vice-Rei olhou ao redor sem entusiasmo. Terêncio destacou-se do grupo e aproximou-se, fazendo uma reverência.

- Excelências, me chamam Terêncio Cascudo, Capitão de Ordem deste arraial. Minha morada está a sua disposição o tempo que necessitar.

- Ficaremos somente esta noite. Respondeu o governador.

- Queiram me acompanhar. Pediu Terêncio, inclinando o tronco e fazendo um gesto largo.

Naquela noite os moradores de Riacho Torto foram dormir mais tarde.

Na manhã seguinte, o Ouvidor do Estado do Interior sentou-se numa cadeira na praça com seus livros de registros para ouvir e registrar as reivindicações da comunidade, enquanto o governador tomava o desjejum. Terêncio e Matias postaram-se diante do oficial que se chamava Joaquim.

- Que tipo de estabelecimento de comércio existe neste povoado?

- Temos um curtume excelência. Respondeu Matias. - E um armazém, uma ferraria...

- Está certo, verificaremos isso outro dia. Que necessidade tem o município para melhorar suas condições de vida e de trabalho?

- Temos dificuldades com os selvagens e os invasores estrangeiros, precisamos de um corpo de guarda, de um foro que possa resolver algumas questões, de um padre...

- O padre, terá que pedir ao bispo. O governador já assinou decreto para a construção de um forte no litoral e um corpo de guarda permanente. Quanto aos outros requerimentos, é necessário que o arraial passe a ter o título de vila. Isso será debatido após o censo que será feito ainda este ano.

O Ouvidor fechou o livro, ergueu-se e retirou-se. Logo depois chegou o sacerdote e Terêncio comunicou o pedido para a construção de uma igreja e o ofício permanente de um padre.

- Naturalmente, vamos estudar o assunto. Respondeu o bispo, com um sorriso benevolente.

Em seguida ficou sério, inclinou o rosto para Terêncio e perguntou em tom confidencial:

- Tens rezado regularmente?

- Sim senhor bispo, todos os dias...

- Sabe se existe algum pecador neste arraial?

Indeciso, Terêncio trocou um olhar com Matias e voltou a encarar o sacerdote.

- Não sei...

O bispo sacudiu a cabeça e virou-se para Matias.

- E vós, sois tementes a Deus? Segues as leis divinas?

- Com certeza!

- Conhece alguém deste povoado que vive em pecado?

- Todos são católicos, cristãos e possuem seu oratório doméstico. Estamos construindo uma igreja e precisamos de um padre...

- O clérigo será providenciado, mas tens certeza de que não há nenhum feiticeiro neste povoado? Insistiu o bispo. Matias sentiu-se incomodado.

- Todos são cristãos, pessoas honestas, trabalhadoras. Tem o Acácio Capenga que quando bebe canha fica aluado. Mas é um bom rapaz...

- Qual é a ocupação dele?

- Bem... Acácio ajuda quem precisa...

- É casado?

- Não.

- Tem família?

- Vive sozinho.

- Já o ouviu blasfemar?

- É um rapaz honesto, mas quando bebe se irrita com a própria sombra e não tem dó dos animais...

- Onde está ele? Perguntou o bispo. Matias vacilou confuso. Não sabia qual era o interesse do sacerdote em querer saber quem eram os pecadores. A expressão dele era ameaçadora e Matias viu-se obrigado a responder.

- Deve estar na cabana onde mora, no fim da rua.

O bispo conversou com um soldado e o homem se afastou em seguida. Dom Roque voltou-se para o povo na praça e elevou o tom de voz.

- Meu nome é Roque, Dom Roque Carnaúba, padre inquisidor, visitador destas províncias a fim de julgar a penitenciar os hereges. Quem de vós tiver visto ou ouvido falar de alguém que vive sem fé, pratica feitiçarias, seja adultero, sodomita, blasfemador, que formalize agora a acusação diante deste que vos fala, representante legal da Santa Igreja.

Roque voltou-se para Matias e Terêncio, confidenciando:- Antes de um padre cá chegar, é necessário castigar os pecadores e purificar suas almas.

Matias e Terêncio olharam-se confusos. O soldado retornou, segurando Acácio por um braço. De cabelos revoltos e roupas desleixadas, o rapaz exibia uma expressão de injúria.

- Como te chamas? Perguntou Roque.

- Acácio foi o nome que minha mãe me deu, mas meu pai...

- Pelo que vejo não tens nenhum defeito físico!...

- O que está acontecendo? Perguntou o rapaz olhando ao redor.- Uma festa?

O bispo olhou-o da cabeça aos pés.

- És acusado de maltratar os animais, de blasfemar, de ser preguiçoso. Tens rezado e pedido perdão pelos teus pecados?

- Não tenho tempo para isso. Respondeu Acácio com ar de tédio. Dom Roque começou a ficar impaciente.

- Me disseram que zombas das pessoas e que maltratas os animais. É verdade?

- Eles reclamaram? Gatos e cachorros são inúteis!...

As faces do bispo se tornaram rubras.

- Sabes rezar? Conheces os mandamentos de Deus?

- Não gosto de rezar e não tenho tempo, mas de vez em quando falo com meus botões.

- Então não acreditas em Deus?

Acácio ergueu os ombros, torceu a boca.

- Não sei, se eu o visse pelo menos...

Roque fechou as mãos com impaciência e após um momento de reflexão, ergueu a voz.

- Olhai este homem! As sombras do mal cobrem a sua alma, os seus ouvidos, os seus olhos. Nenhuma luz iluminará o seu caminho, a sua alma, se ele não se arrepender e confessar os seus pecados.

O bispo fez um sinal e os soldados agarraram o rapaz, o despiram da camisa e o amarram a um poste. O padre inquisidor meteu a mão por baixo da túnica e retirou do flanco, um chicote de couro trançado.

- Irmãos, é preciso mostrar o caminho da luz a essa alma perdida em pecado. Vinte chicotadas é o que ele precisa para refletir sobre sua vida de trevas. Acreditas em Deus?

Tornou o bispo a perguntar. Acácio olhou para o chicote na mão do sacerdote.

- Se ele paralisar o vosso braço e secar a vossa mão...Talvez!

Dom Roque bufou e estirou o chicote para trás. Terêncio adiantou-se, aflito.

- Padre, isso é necessário? Acácio é um pobre coitado!...

- Talvez queiras dividir a sentença? Dez chicotadas para cada um?

Terêncio ficou calado e deu um passo para trás. Dom Roque tomou fôlego e preparou-se para dar a primeira chicotada, quando surgiu um homem colocando a bota sobre o chicote.

O sacerdote olhou para trás irritado e encarou o insolente. Era um homem de meia idade, espadaúdo, de pele queimada pelo sol, vestindo camisa e calça de algodão, trazendo na ilharga, um alforje de couro.

- Espere um instante. Disse ele.

- Quem sois, e com que autoridade vem interromper o Santo Ofício da Inquisição?

- Me chamam Jerônimo Falcão, ocupando o cargo de Alcaide. Acabo de chegar de viagem e encontro um de meus companheiros sendo julgado e condenado por uma causa que ainda desconheço. Posso saber que acusação pesa sobre esse jovem, e que mereça tal suplício?

O sacerdote respirou fundo.

- Esse homem foi acusado de viver em heresia, de viver em pecado.

Jerônimo sacudiu a cabeça lentamente.

- Na qualidade de defensor das causas públicas, conseqüentemente, do acusado, e sem querer ofender o vosso título, tampouco questionar o vosso ofício, é meu dever conhecer os fatos.

Dom Roque olhou ao redor, impaciente. Apontou para Acácio com o chicote.

- Esse homem ofendeu uma autoridade religiosa, é descrente, maltrata animais e conversa com espíritos malignos.

- Vosmecê conversa com espíritos malignos? Perguntou Jerônimo para Acácio.

Abraçando o poste, o rapaz respondeu:

- Não falei nada disso, o que eu disse foi que, como vivo sozinho, às vezes penso em voz alta. E eu não maltrato animais coisa nada, uma vez dei um pontapé num cachorro que estava no meu caminho, matei o gato que estava comendo meus passarinhos, mas isso foi em legitima defesa, e o burro morreu por que estava velho demais...

Acácio calou-se e Jerônimo encarou o bispo. Fez um gesto em direção da carruagem que estava sendo preparada para partir.

- E os senhores que vieram de tão longe à custa do esforço e do sofrimento dos animais? Quantas vezes vossa reverência reclamou da lama, da umidade, dos insetos e do cansaço da viagem? Quantas vezes mandaram o cocheiro açoitar os cavalos para andar mais rápido e chegar mais cedo ao seu destino? Quantas vezes vacilou em sua fé diante da tempestade, ou do rugir das feras na escuridão da noite?

Roque explodiu.

- Chega! Prendam-no!

Um dos soldados movimentou-se na direção de Jerônimo e o mateiro, num gesto rápido, jogou o homem ao chão. Os outros sacaram suas espadas. O Vice-Rei surgiu de repente.

- O que está acontecendo?

Dom Roque apontou um dedo trêmulo para Jerônimo.

- Eu estava aplicando uma penitencia a um pecador, quando esse homem interrompeu o processo.

- Quem sois vós? Perguntou o governador.

- Jerônimo Falcão. Fui capitão em muitas expedições por este sertão a fora. Comandei a expedição do coronel João Pitanga, que sucumbiu aos selvagens na serra e guiei os sobreviventes à civilização. Prestei muitos serviços a Coroa.

- Um homem ilustre e um herói, mas isso não lhe dá o direito de interromper o oficio de um superior da igreja!...

- Vossa excelência tem razão, mas o acusado é digno de benevolência. Ele tem juízo de criança, é ignorante, ficou órfão muito cedo e vive jogado no mundo. Se há culpados somos nós que ignoramos o seu estado.

- Tens um pensamento nobre, porém se o réu transgrediu a lei, deve ser punido.

Jerônimo insistiu.

- Merece açoite a pessoa que não conhece os mandamentos de Deus? Este rapaz nunca teve um professor, ninguém que o ensinasse a seguir os preceitos cristãos!

- Eu cumpro a lei! Retrucou Roque, indignado.

- Essa lei não é justa. Afirmou Jerônimo. Roque exasperou-se, jogou o chicote no chão e voltou-se para o governador.

- Excelência, esse homem está passando dos limites!

Jerônimo pegou o chicote.

- Tens fé, padre?

- Mas claro, por quem me tomas?

Jerônimo sorriu.

- Deus disse; a fé remove montanhas. O senhor que tem fé é capaz de transformar esse chicote numa serpente?

O sacerdote hesitou, confuso. O governador pegou uma cadeira e sentou-se para apreciar o debate.

- Claro que não! Isso é coisa de bruxos!

- Então, Moisés era um bruxo? Não foi ele capaz de transformar o seu cajado numa serpente diante do Faraó?

- Foi pelo poder de Deus. Retrucou o bispo. Jerônimo colocou o chicote dentro do seu alforje.

- Vou ficar com seu chicote.

Roque dirigiu-se ao Vice-Rei.

- Excelência, esse homem deve ser punido!...

Os soldados olharam para o governador, esperando por sua ordem.

- Desculpem. Pediu o mateiro e meteu a mão dentro do alforje.

- Vou devolver o seu chicote porque para mim, não tem utilidade alguma.

Jerônimo jogou o objeto no chão, aos pés do sacerdote. Dom Roque inclinou-se para pegar o chicote e recuou, assustado. No chão estava uma serpente.

- Está morta. Garantiu o mateiro.

- Esse homem é um bruxo! Exclamou Roque. O governador olhou para Jerônimo desconfiado. Jerônimo voltou a meter a mão no alforje e desta vez jogou o chicote, dizendo:

- Aí tem o vosso instrumento de tortura, um objeto sem vida que dilacera a carne, ao contrário da cobra que morde, mas está morta. Esta é uma situação clara de ilusão, tomais uma coisa pela outra. Talvez vossa excelência tenha se enganado, quanto à aplicação da lei!...

Jerônimo aproximou-se de Acácio.

- Nós, mortais, devemos julgar e condenar os criminosos, mas somente Deus pode condenar ou absolver os pecadores. Acácio te arrepende de teus pecados?

- Sim, claro, retiro tudo o que disse ou que tenha feito de mal...Isto é...Se Deus assim permitir. Amém

Jerônimo desamarrou o rapaz. Dom Roque permaneceu confuso. O governador ergueu-se.

- Vamos partir. Anunciou ele e dirigiu-se para a carruagem. Antes de entrar, o sacerdote perguntou ao cocheiro:

- Os cavalos estão bem descansados e alimentados?

- Certamente reverendíssimo. Respondeu o homem. Logo depois a carruagem partiu, sumindo na curva do caminho. O povo se dispersou e Acácio aproveitou o banco da praça para continuar o sono interrompido.

FIM

Antonio Stegues Batista
Autor: Antonio Stegues Batista


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