O Limite da Liberdade de Crença



Por Francisco Nascimento

Não há divergência quanto ao entendimento que os direitos fundamentais não são absolutos, quando em conflito com outros, a solução deve ser feita mediante a utilização do princípio da ponderação de valores (interesses).

Porém, parece que a maioria das pessoas entende que o direto da liberdade de crença (art. 5º, VI da Constituição) é absoluto, o que resulta na absurda proliferação dos chamados "estelionatários da fé". Assim, muitos criminosos, estelionatários mesmos, cometem crimes usando da cegueira de um fanático. Este é uma presa fácil desses criminosos.

Observa-se que prolifera a cada dia um templo religioso, que não tem como objetivo aprimorar os espíritos, a liberdade da alma, mas a prática do estelionato. É preciso que a liberdade de crença seja conjugada com o direito à educação, à informação (cf. artigo 206, II da Constituição), à cultura (e não à alienação), ao aprimoramento do intelecto (art. 215, alínea "d" da Constituição).

Ainda não se entende o motivo da omissão pela não punição das pessoas que colam cartazes em postes e muros com os dizeres "trago a pessoa amada em 3 dias. Mãe ?não- sei-de-que. Telefone xxxx", nos quais têm até o número de telefone dos possíveis criminosos. De imediato configura crime contra o meio ambiente bem como publicidade irregular. E há evidência que pode configurar o crime de charlatanismo (art. 283 do CP) ou de curandeirismo (art. 284 do CP), quando não mais grave, que é o estelionato (art. 171 do CP). Como se sabe, estes tipos penais não foram revogados, e não podem ser cometidos sob a alegação que se trata de liberdade de crença.

Já está na hora de o Poder Judiciário delimitar o que é liberdade de crença, para que esta não seja um dogma a ponto de eliminar as outras liberdades; direitos fundamentais também essenciais.

O inciso VI do art. 5º da Constituição não deve ser interpretado como hierarquicamente superior aos demais direitos fundamentais, sempre deve haver ponderação com os outros direitos. A liberdade de credo deve ser conjugada com as outras liberdades do ser humano, devem ser observados os outros incisos do art. 5º da CF, tais como os IV, V, IX, X. Não se pode permitir absurdos em nome do direito da liberdade de crença religiosa.

Richard Dawkins, no seu livro "Deus, um delírio", faz uma crítica aos estranhos privilégios dados às religiões. Cita uma decisão da Suprema Corte dos EUA, que no dia 21 de fevereiro de 2006, determinou, de acordo com a Constituição, que uma igreja do Novo México (da chamada União do Vegetal, uma corrente do Daime) deveria ser isenta de cumprir uma lei, a que proíbe o uso de drogas alucinógenas. No caso, a Suprema Corte dos EUA permitiu o uso do chá ayhuasca (o famoso chá do Daime, que há poucos dias ocupou a imprensa aqui do Brasil, devido ao homicídio de um líder dessas igrejas e de seu filho por um discípulo, que no entanto não se pode afirmar que foi devido ao uso do chá, evidentemente), que contém a substância dimetiltriptmina proibida nos EUA e aqui no Brasil. Mas liberada para fins religiosos.


Atualmente, o assunto no Brasil foi regulamentado pela Resolução 1/ 2010 ?CONAD. Ou seja, em nome da religião tudo é permitido, critica Dawkins, com quem estamos, em parte, de acordo.

Nada contra a liberação do chá, porém há discriminação se não for permitido que também se faça uso da maconha numa seita, por exemplo, sob os mesmos argumentos, ou seja, que é para fins religiosos, para a busca de Deus, critica o escritor Dawkins (Cf. p. 47 do livro citado). Não estamos criticando a liberação do chá para fins religiosos, até porque sabemos que houve um grande estudo a respeito. Que o mesmo seja feito em relação às outras substâncias que mesmo sendo proibidas, mas em havendo estudos, como foi o caso do chá ayhuasca, sejam liberadas para "os fins ritualísticos da religião".

Reiteramos: ao falarmos de liberdade de crença, no caso específico crença religiosa, para evitar abusos é preciso que outras liberdades sejam observadas. Que o direito da informação seja garantida, que seja evitada a alienação do ser humano por pessoas que agem de má-fé, os quais chamamos de estelionatários da fé. E mais: que seja respeitada a liberdade de não ter crença religiosa, de não acreditar em deus ou deuses nem no diabo ou diabos, em nada de sobrenatural.

E também está na hora de punir os sacrifícios de animais nos rituais de algumas seitas. Repita-se: a liberdade de crença não pode prevalecer sobre o direito do indivíduo não ser alienado, a ponto de sacrificar sua própria vida e a dos outros animais, que também são protegidos pela lei dos crimes ambientais, entre outras.

O Poder Judiciário brasileiro já começou a atuar para conter o abuso dos estelionatários da fé. Confira a decisão do TJ/MG:
EMENTA: INDENIZAÇÃO. CONTRADIÇÃO NA SENTENÇA. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. DÍZIMO. EMISSÃO DE CHEQUES. AGENTE INCAPAZ. NULIDADE DO ATO. VALOR SUPERIOR ÀS POSSES DO EMITENTE. CULPA DA INSTITUIÇÃO RELIGIOSA. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. I - Não há contradição na sentença quando o julgador, motivado e coerentemente, interpreta os fatos e avalia as provas dos autos na busca da justa prestação jurisdicional. II - O negócio jurídico praticado por absolutamente incapaz é nulo, mesmo antes da sentença de interdição, se comprovado que, à época da emissão de vontade, o agente não tinha discernimento do ato. III - Declarada a nulidade do negócio jurídico, deve ser restabelecido o status quo ante, não sendo possível, como no caso dos autos, em que os cheques foram colocados em circulação, o agente incapaz deve ser indenizado por todo o montante doado. IV - A instituição religiosa que recebe como doação valor muito superior às posses do doador, sem a devida cautela, responde civilmente pela conduta desidiosa. V - Os honorários sucumbenciais devem ser condizentes com a atividade exercida pelo advogado. APELAÇÃO CÍVEL N 1.0024.03.965628-5/001. N. única: 9656285-91.2003.8.13.0024. Relator EXMO. SR. DES. FERNANDO BOTELHO, 13ª Câmara Cível do TJ/MG.

Concluímos com a citação de uma bela frase de Bernard Shaw, citado por Richard Dawkins, "O fato de um crente ser mais feliz que um cético não quer dizer muito mais que o fato de um homem bêbado ser mais feliz que um sóbrio".

Francisco Nascimento é escritor, bacharel em direito e pós- graduado em Direito Processual Civil.
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Autor: Francisco Nascimento


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