Continuidade e inovação na política externa brasileira atual



Os principais elementos da Política Externa Independente (doravante PEI) e do Pragmatismo Responsável (doravante PR) foram confrontados no artigo "Mundos diversos, argumentos afins", escrito pelo Embaixador Gelson Fonseca Júnior. Nesse texto, busca-se demonstrar a coerência dos argumentos e da atuação da política externa brasileira, não obstante contextos históricos distintos, tanto no plano interno como externo. Confrontar a PEI e o PR com a política externa brasileira atual se afigura, pois, estabelecer os paralelos e contrastes entre essas três visões, em que podem ser observados traços de continuidade e inovação, considerando a posição brasileira diante dos principais temas da agenda internacional.
A PEI, que inicia no breve governo de Jânio Quadros e é institucionalizada durante o mandato de João Goulart (até a instauração do regime militar em 1964), consagra a posição brasileira diante do contexto político da época. A autonomia, a autodeterminação dos povos, a crítica a alianças ideológicas, a busca do desenvolvimento, a diversificação de parcerias e o desarmamento são temas prementes desse período. Os referenciais da PEI são as atuações dos chanceleres San Tiago Dantas e Araújo de Castro ? esse último, conhecido por proferir, na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1963, "O discurso dos três Ds". Os "três Ds" referem-se aos temas do desenvolvimento, da descolonização e do desarmamento. Na política externa brasileira atual, muitos dos argumentos defendidos naquele discurso mostram-se ainda candentes e atuais, não obstante, no dizer de Gelson Fonseca Júnior, sob "mundos diversos".
O tema do desenvolvimento, na PEI, apresentava-se tanto no viés multilateral (rodadas que culminariam com a 1a UNCTAD, em 1964), quanto no viés bilateral (através da busca de diversificação de parceiros comerciais). Durante o PR, em que se observa um período de degelo entre as superpotências URSS e EUA, as discussões acerca do desenvolvimento se acentuam, e as discussões sistêmicas na arena internacional passam a destacar a dicotomia entre o "norte" e o "sul", a saber, entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, respectivamente. No entanto, as rodadas multilaterais que se seguiram não lograram êxito no estabelecer regras equânimes em comércio internacional, o que corroborou para que anos mais tarde o PR buscasse o desenvolvimento através de acordos bilaterais ? tanto mediante busca de mercados consumidores (estreitamento de laços comerciais com países africanos e asiáticos), como na busca de cooperação na área tecnológica com países europeus, tendo em vista a diversificação da matriz energética nacional. Na política externa brasileira atual, a busca do desenvolvimento permanece prioritária e a atuação brasileira se destaca tanto pelas discussões no âmbito da Organização Mundial de Comércio (relevante atuação em Cancún, no ano de 2003, em que o País se destaca como líder dos países em desenvolvimento) quanto pela prioridade atribuída ao tema no âmbito das Nações Unidas (há de se ressaltar que o multilateralismo, hodiernamente, é vertente institucionalizada na política externa brasileira). Outro fator central de destaque é a alta prioridade conferida à cooperação com os países emergentes ? "cooperação sul-sul" ? em que o conceito de desenvolvimento é tomado a partir de um viés social, com destaque para as ações de combate à fome e à miséria.
O desarmamento, tema sensível durante todo o período da Guerra Fria, teve grande impacto tanto na PEI quanto no PR. No "discurso dos 3 Ds", o Brasil mostrava-se crítico no tocante à corrida armamentista entre as duas superpotências, chegando a sugerir que parte dos recursos financeiros dirigidos aos orçamentos militares à época fosse destinada a um fundo, que visasse atenuar os efeitos do subdesenvolvimento nos países periféricos. Já, no PR, a questão do desarmamento apresenta-se sobre um viés militar e soberanista: o governo Geisel, por razões de desentendimentos políticos com os EUA, denuncia o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, de 1952, e assina acordo com a Alemanha Ocidental com a finalidade de investir em energia nuclear ? projeto que culminou com a construção da usina de Angra dos Reis. Outra discussão assaz candente no período referia-se ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de 1968. À época do PR, a postura brasileira era de ampla crítica a tal acordo, por considerá-lo um "oligopólio de potências nuclearizadas", que apenas contribuía para o congelamento do poder mundial. Na política externa brasileira atual, a ratificação do TNP já não é motivo de controvérsia (o Brasil aderiu ao Tratado em 1998). Entretanto, o País é favorável ao domínio da tecnologia nuclear, desde que para fins pacíficos. Tal postura, especificamente no caso do Irã, recentemente vem ensejando ampla oposição norte-americana e européia.
Envolvendo grandes controvérsias políticas e ideológicas, uma questão bastante problemática com a qual a PEI se confrontou, no início dos anos 1960, foi a Revolução Cubana. A posição norte-americana, tradicionalmente monroísta, era de grave consternação ante a instauração de um regime socialista no continente. E, diante da iniciativa estadunidense de expulsar Cuba da Organização dos Estados Americanos, isolando-a do sistema regional, o Brasil absteve-se, argumentando em prol da descolonização e da autodeterminação dos povos. A recusa brasileira em alinhar-se aos EUA nessa questão gerou considerável divergência no entendimento entre os dois países, culminando com o apoio norte-americano ? ainda que indireto ? à deposição do presidente João Goulart, em 1964. Já no período do PR, a questão da descolonização já se apresenta menos ideologizada: Brasil reconhece o independência de Angola e o governo estabelecido MPLA, de caráter marxista-leninista, como legítimo. Tal atitude, geradora de graves discordâncias no âmbito da política interna, justificava-se pelo interesse do Brasil no potencial econômico daquele país africano. O desenvolvimento nacional sobrepujava, portanto, a ideologia ? em se tratando de política externa. Ainda que a política externa brasileira atual não se confronte com o tema da descolonização ? conforme em períodos anteriores ? permanece a coerência de sua posição, que privilegia o interesse nacional, preservando a autodeterminação dos povos e a não-intervenção.
O tema do meio ambiente é apreciado singularmente pela política externa brasileira atual. Se, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, realizada na cidade de Estocolmo, em 1972, o Brasil defendia uma posição soberanista e desenvolvimentista, tais preceitos, embora não tenham sido extintos, presentemente apresentam-se em bases mais cooperativas e atuantes. Como se pode notar nas últimas Conferências das Partes sobre Mudança Climática, ainda que o Brasil defenda uma responsabilidade diferenciada entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento e, obviamente, não renuncie à soberania, há considerável iniciativa de cooperação, representada tanto pela a assunção de metas de emissão de gases de efeito estufa quanto pelo investimento em energia renovável. Nesse último caso, naturalmente, há a busca de aliar a preservação do meio ambiente com o desenvolvimento, haja vista que o Brasil, por conta de seus recursos naturais, tem a possibilidade de se tornar um ator internacionalmente protagônico na produção mundial de biodiesel e etanol. Outro fato a ser destacado é a proposta brasileira de criação de uma organização internacional do meio ambiente, declarada na Conferência das Partes sobre Mudança Climática de 2009, realizada em Copenhague.
Nos anos 1970, a Comissão de Direitos Humanos da ONU adentra sua fase intervencionista. É o período em que passaram a ser elaborados os relatórios de Grupos de Trabalho Geográficos ? e o Chile chegou a ser condenado pelas violações aos direitos humanos, cometidas no governo de Augusto Pinochet. O Brasil, à época do governo Geisel, ingressa na Comissão de Direitos Humanos da ONU, no dizer de José Augusto Lindgren Alves, "em bases defensivas e acautelatórias". Como o Brasil também era governado por um regime militar, havia o receio de sofrer condenação semelhante à do Chile. Desta maneira, a atitude brasileira, à época, de ingressar na Comissão, foi tomada prioritariamente no intento de evitar uma possível condenação ao regime militar brasileiro. Na política externa brasileira atual, o tratamento conferido ao tema dos direitos humanos difere plenamente da época do PR (Governo Geisel). Desde a redemocratização do país, em 1985, são notáveis os avanços na matéria: adesão plena aos Pactos da ONU de 1966 e ao Pacto de San Jose (OEA), bem como a primazia aos direitos humanos, consagrada no artigo 4º da Constituição Federal de 1988. Na criação do Conselho de Direitos Humanos, em 2006 ? que corresponde à nova institucionalização dada ao tema pela Assembléia das Nações Unidas ? a participação do Brasil teve grande relevância, sobressaindo a proposta do Mecanismo de Revisão Periódica Universal. No plano interno, destaca-se a criação de secretarias de promoção da igualdade racial e de proteção aos direitos da mulher.
No período da redemocratização (segunda metade da década de 1980) o Brasil retornou ao Conselho de Segurança da ONU, após vinte anos de ausência, e desde aquela época a participação brasileira em operações de paz aumentou consideravelmente. Há de se destacar a liderança nas operações de paz no Haiti (MINUSTAH) desde 2004 até a presente data. Ainda no âmbito da ONU, é inovadora a iniciativa de criação da UNITAID, central internacional de medicamentos, que visa facilitar, aos países de menor desenvolvimento relativo, o acesso a medicamentos ? a fim de combater a AIDS, a malária e a tuberculose.
A política externa brasileira atual, em relação às visões de mundo da PEI e do PR, a par de compreender inovações necessárias, que a própria conjuntura internacional requer, apresenta indiscutível coerência e solidez. O pragmatismo, pautado pelos princípios de igualdade entre as nações, autonomia e desvinculação de preceitos ideológicos, permite identificar considerável similitude entre esses três períodos, ainda que indubitavelmente difiram as conjunturas sistêmicas. A habilidade em conciliar aspectos basilares ? já solidamente institucionalizados ? e os desafios que a conjuntura internacional apresenta, permite afirmar que a diplomacia brasileira consubstancia-se em uma política de Estado ? que se notabiliza pelo profissionalismo e pela defesa do interesse nacional, em busca do desenvolvimento.

Autor: José Luiz Araujo Dorea Junior


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