A Autonomia da Vontade nos Contratos e a Possibilidade de sua Revisão Judicial



A Autonomia da Vontade nos Contratos e a Possibilidade de sua Revisão Judicial

Introdução

As mutáveis relações de consumo e o desenvolvimento científico e econômico fizeram com que a legislação buscasse o equilíbrio nas relações contratuais, podendo até romper acordos para obtenção de harmonia e imparcialidade nas relações contratuais.

A possibilidade de revisão do contrato foi se desenvolvendo como teoria, acompanhando as relações comerciais entre os homens, tornando-se mais complexas, passando, assim, a influenciar o seu contexto social.

Porém, muitas vezes, os juízes não têm condições de tomar uma decisão melhor do que a decisão que foi tomada pelos contratantes, no momento da celebração do contrato, com base em critérios que nortearam aquela tomada de decisão no momento de contratar, sendo que a substituição destes critérios por outros, limitados, pois o juiz trabalha apenas com aquilo que é apresentado a ele pelas partes (conteúdo muitas vezes limitado), o que possibilita, ainda mais, que a decisão proferida pelo magistrado não seja a mais justa àquelas partes contratantes.

O tema central do presente artigo demanda a necessidade de observância dos mecanismos de intervenção judicial nos contratos, previstos no ordenamento jurídico, a serem utilizados numa situação de desequilíbrio entre as partes, porém, sua utilização deve ser medida caso a caso, pois os contratos nascem para ser extintos e não para se perpetuarem em situações de inadimplência.

Teorias relacionadas

Diversos institutos de Direito Civil, que até então eram tidos como intangíveis, foram flexibilizados a partir do século XX, como o princípio do "pacta sunt servanda" (significa que o contrato é lei entre as partes e deve ser cumprido rigorosamente).

A cláusula "rebus sic stantibus" é uma atenuante do princípio supracitado. O princípio do "pacta sunt servanda", que significa que o contrato tem força obrigatória e não pode ser alterado. Este era o caráter individualista que a doutrina atribuía aos contratos.

A cláusula "rebus sic stantibus" tem como núcleo de sua célula que o contrato só pode permanecer como está se os fatos não se modificarem, ou seja, "como regra geral, portanto, os contratos devem ser cumpridos enquanto as condições externas vigentes no momento da celebração se conservarem imutáveis." (TARTUCE, Flávio. Direito Civil, vol. 3. 3ª ed. São Paulo: Método, 2008, 171.)

Para que haja a possibilidade de revisão judicial dos contratos, é preciso primeiro saber se estamos diante de um caso de contrato ligado ao direito do consumidor ou ao direito civil.

Feita essa diferenciação, chegamos a 2 (duas) teorias distintas:

1) Se nós estivermos diante de uma relação de consumo, teremos uma teoria, originada no direito italiano, chamada de "teoria da onerosidade excessiva", que regula as relações no direito do consumidor, que se baseia em 2 elementos: (1) a presença de um consumidor na relação jurídica; e (2) a presença da "onerosidade excessiva" (um desequilíbrio na distribuição dos deveres e das prestações no próprio contrato, gerando para uma das partes uma excessiva onerosidade).

Nesse contexto, a aplicação de mecanismos de intervenção contratual previstos no Código de Defesa do Consumidor são extremamente amplos e dão aos juízes um poder de modificação do contrato, tanto para anulação, quanto para tornar a cláusula do contrato ineficaz, ou até mesmo declarar uma cláusula como não-escrita.

2) Porém, quando se está frente a uma relação jurídica regulada pelo Código Civil, a situação é muito mais complicada, pois temos que verificar se houve uma ruptura do "sinalágma genético" (o contrato se tornou injusto quando do seu nascimento), ou se essa ruptura do equilíbrio deu-se no plano "funcional" (descobriu-se um desequilíbrio no contrato após algum tempo de sua execução, após o cumprimento de algumas de suas prestações).

Esta diferenciação do momento em que se deu esse desequilíbrio no contrato faz com que tenhamos diferentes institutos dentro do Código Civil para a solução deste problema. Se este equilíbrio foi quebrado no momento em que nasceu o contrato, surgirão como forma de reequilibrar o contrato, alguns mecanismos, como o instituto da lesão, ou do estado de perigo.

No caso da lesão temos um exemplo clássico que é a internação de um individuo em um hospital privado, onde este se vê na situação de assumir uma obrigação excessivamente onerosa, diante de sua necessidade iminente.

Um outro exemplo é aquele em que o cidadão que é obrigado a vender um bem para conseguir pagar o tratamento do seu filho, fazendo com que este indivíduo celebre um negócio extremamente desvantajoso, podendo, pedir ao Judiciário a anulação deste contrato.

De outro plano, tem-se o desenvolvimento do contrato, suas cláusulas são perfeitamente aplicáveis, suas prestações vão sendo cumpridas normalmente, porém chega um determinado momento em que, pela ocorrência de "alterações das circunstâncias", o contrato se torna excessivamente oneroso.

Ocorrendo isso, temos uma forma de resolver o problema dentro do Código Civil, que é uma combinação de 2 (duas) teorias: a italiana da "onerosidade excessiva", prevista no Código de Defesa do Consumidor, e a teoria francesa, chamada de "teoria da imprevisão".
A teoria da imprevisão foi adotada pelo Código Civil:

"Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação".

"Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação".

A III Jornada de Direito Civil se posicionou sobre o tema, em seu enunciado n.º 176. Vejamos:
"176 - Art. 478: Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual".

Na IV Jornada, o seguinte enunciado foi aprovado:

"365 - Art. 478. A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena.".

Mesmo encontrando os elementos da chamada "teoria da imprevisão" (a impossibilidade de se prever a alteração das circunstâncias) no Código Civil, existe uma enorme dificuldade de aplicação deste instituto, pois a jurisprudência brasileira entende que eventos como inflação, variação cambial e crises econômicas, são considerados fatos previsíveis para um brasileiro.

A Função Social dos Contratos, a Boa-Fé Objetiva na Revisão Judicial

A função social dos contratos e a boa fé objetiva desempenham um importante papel no atual ordenamento constitucional, valorizando a dignidade da pessoa humana, colaborando para que o princípio do "pacta sunt servanda" fosse relativizado.

A função social do contrato está prevista no Código Civil vigente, no Título V, abrindo as disposições reguladoras dos "Contratos em Geral". Vejamos:

"Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".

Já a boa-fé objetiva (é objetiva pelo fato de apresentar-se como uma exigência de honestidade, lealdade e probidade com a qual a pessoa condiciona o seu comportamento) está prevista logo a seguir, no mesmo diploma legal:

"Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

É uma técnica que adapta o direito ao comportamento médio em uso em uma sociedade qualquer num determinado momento. Seria de um padrão de conduta do homem mediano em um caso concreto, considerando os aspectos sociais envolvidos.

A boa-fé objetiva seria aplicada na relação interna, entre os contratantes, para regular as condutas deles e a função social dos contratos teria um efeito externo, na relação dos contratantes com outrem.

Temos como exemplo de aplicação da função social, a possibilidade de contratação contra a própria vontade de um dos contratantes, para não discriminar determinada pessoa, como é o caso dos fornecedores de água e energia elétrica, pois tratando-se de um bem essencial, eles são obrigados a aceitar qualquer pessoa como contratante. Um outro exemplo seria a manutenção de estudantes inadimplentes dentro de sala de aula.

O grande problema é que ocorre no Brasil é um desvio metodológico, onde a aplicação de regras excessivamente protetivas são feitas em situações onde não há hipossuficiência, o que beneficia indivíduos que se utilizam dessa situação para protelar a resolução de casos de descumprimento em contratos que deveriam ser adimplidos sem tergiversações e/ou delongas.

Desta forma, contratos que se extinguiriam normalmente, a seu tempo, acabam se perpetuando em uma situação de inadimplência. Com essa falta de adequação na interpretação da boa-fé nas relações privadas, o direito processual se transformou em um direito que podemos chamar de "pro credor", através de mecanismos que facilita o recebimento do crédito pelo credor no procedimento judicial, ou seja, de uma judicialização desnecessária, pois o próprio direito material (Civil) poderia servir de desestimulo dessas condutas de inadimplência, evitando-se um procedimento judicial para que o credor pudesse ver seu contrato cumprido normalmente pelo devedor.

É o caso da Cláusula Penal. Porém, este instituto encontra-se enfraquecido, com as reduções excessivas realizadas em seu cerne (houve uma modificação considerável em seu regime jurídico, o que ocasionou uma redução de sua eficácia, em várias situações ? como a redução pelo descumprimento parcial, redução pela vinculação por prejuízo e a vinculação ao cumprimento da função social do contrato, o que esvaziou a cláusula penal em sua função de desestimulo ao descumprimento contratual).

Parte da doutrina acredita que a Cláusula Penal foi substituída pela figura da pena pecuniária compulsória, as "astreintes", ou seja, o juiz exerce uma função de coibir o inadimplemento, quando o próprio direito material já poderia fazê-la.

Esse é o desvio metodológico, deixando chegar ao direito processual o que o direito material poderia fazer, por si só.

A mora e a possibilidade de revisão

Era pacífico que para um indivíduo pudesse discutir um contrato, deveria estar em situação de adimplente, o que demonstrava que o indivíduo estava de boa-fé. Mas, a jurisprudência acabou criando um aparato no sentido de que a cobrança abusiva ou indevida descaracterizaria a mora.

Com isso, adotou-se um mecanismo muito interessante de prestígio ao adimplemento, que é rever somente as situações que realmente merecem ser revistas, por conta da alteração de circunstâncias ou da superveniência de condições que não foram efetivamente capturadas pelos elaboradores do contrato, e colocar num outro extremo aquele indivíduo que se vale da revisão contratual para mascarar sua condição de inadimplente.

Em verdade, o mais importante no direito é captar a realidade dos fatos na íntegra, o que deve corresponder à legislação vigente, tanto o estabelecido pelo legislador como o emerge do encontro das vontades dos contratantes.

Conclusão

É inegável que a flexibilização do "pacta sunt servanda", que trouxe a possibilidade de se rever uma relação comercial desequilibrada, seja em seu nascimento ou no decorrer de seu cumprimento, é um importante instrumento jurídico no desenvolvimento das relações negociais, possibilitando a revisão de situações injustas (parciais e desarmônicas).

A existência de mecanismos de intervenção judicial nos contratos, previstos no ordenamento jurídico, como a lesão, o estado de perigo, a nulidade, a anulabilidade não devem ser vistos como formas de se perpetuar uma relação negocial, criada para ser extinta naturalmente. Contratos nascem para ser extintos e não para se perpetuarem em situações de inadimplência.

Portanto, a aplicação dos mecanismos da teoria da imprevisão só deve ser considerada em casos que realmente necessitem ser revistos, haja vista que tanto os operadores do direito quanto o Poder Judiciário devem lutar pela preservação desses mecanismos contratuais fundamentados na autonomia privada e que respeitam a capacidade do ser humano de decidir sobre o seu próprio destino e suas opções pessoais.








Referências Bibliográficas

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2006.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2005.

TARTUCE, Flávio. A Função Social dos Contratos do Código de Defesa do Consumidor ao Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2005.

AGUIAR, Rui Rosado de. Projeto do Código Civil: As Obrigações e os Contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2005.

JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas Gerais no Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004.

NEGRÃO, Theotônio e GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código Civil e Legislação Civil em vigor. São Paulo: Saraiva, 2003.

NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado e legislação extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

NERY, Nelson. Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

Autor: André Luiz Do Nascimento Barboza


Artigos Relacionados


Os Efeitos Da ConstitucionalizaÇÃo Do Direito E A FunÇÃo Social Dos Contratos

Contrato De Adesão Nas Relações De Consumo

A Intervenção Judicial No Rompimento Contratual

A Intervenção Judicial No Rompimento Contratual

Revisão Judicial De Contratos

A Volta Ao Mundo Contratual: De Aristóteles A Aristóteles

A Boa Fé Na Relação Contratual