Lei de redução de dano



Leis de Redução de Dano:
breve estudo da mudança de perspectiva do
legislador frente a comportamentos não desejados


Gisele Mascarelli Salgado



Sumário: Introdução, 1. Leis e Direção de comportamento, 2. Comportamentos anti-sociais, 3. Papel das leis de Redução de dano, 4. Diminuição da eficácia da sanção, Considerações finais , Bibliografia

Palavras-chave: Leis de redução de dano, Risco, Sanção, Filosofia do Direito



Introdução

As leis de redução de dano lidam com um dos principais elementos da sociedade pós- moderna que é o risco. O Direito passa a lidar em suas leis não mais com a segurança jurídica e com a paz social, pois essas se mostraram patamares quase impossíveis de se alcançar e muito difíceis de lidar, mesmo quando utilizadas como presunções jurídicas. A diminuição do risco faz com que a sociedade se torne mais previsível, as ações individuais são mais controláveis, e com isso pode-se geralmente prever uma resposta para um determinado tipo de ação.
Há diversas condutas que não são desejadas pela sociedade. Porém, há de se perguntar que sociedade é essa, antes de perguntar que condutas ela condena. Existem diversos matizes, valores, preferências, padrões que são compartilhados por alguns grupos da sociedade. É difícil toda uma sociedade compartilhar dos mesmos valores. Assim, o padrão legislativo não é apenas um padrão qualquer, mas um padrão específico que foi designado como ideal para todos e é universalmente imposto.



1. Leis e Direção de comportamento

As leis foram criadas pelos homens com o objetivo de regular as condutas nas sociedades. Grande parte das leis se fere a regramentos da conduta humana, expressando o que cada indivíduo deveria fazer ou não. Existem outros tipos de leis que não estão dirigidas as condutas humanas, mas sim a regramentos de uma sociedade, Estado, entidade, etc.. Porém, essas condutas não levam a sanções jurídicas uma vez que são regras de administração da sociedade, aqui entendida no seu sentido mais amplo. São as regras de conduta que estabelecem sanções jurídicas, direcionando, restringindo e determinando comportamentos.
Dirigir comportamentos é delimitar entre as mais variadas condutas àquelas que são interessantes para a sociedade ou a grupos dessa sociedade. Há uma redução do campo de atuação das pessoas em suas condutas. Assim, há uma série de condutas possíveis, mas somente algumas delas serão efetivamente realizadas. A lei não restringe, mas direciona comportamentos ao tornar algumas condutas mais vantajosas, desejáveis e interessantes, do que outras.
Há comportamentos que não são regulados pelas leis. Isso pode ocorrer devido a falta de regulamentação que é necessária, mas que ainda não foi estabelecida ou por um desinteresse dos legisladores sobre o assunto. Esse desinteresse não vem de negligência, mas sim, porque se entende que nem todas as condutas precisam ser regulamentadas, sob pena de excesso legislativo e de restrição ao máximo da liberdade. Muitas condutas que eram antes positivadas estão sendo desregulamentadas, pois o legislador entende que os acordos devem ser pautados por entendimentos particulares e não mais sob a tutela estatal. Outras condutas estão sendo descriminalizadas, ou seja, deixam de ser consideradas como crimes, mesmo quando continuam ser indesejadas socialmente.
Essas práticas dos legisladores atuais parecem para muitos, como um afrouxamento da legislação, que deixa de regulamentar pelo Direito algumas condutas. Porém, essa posição não leva em conta que nem todas as condutas precisam ser reguladas pelo Direito, pois há outras formas de regulação como as dadas pela moral e pela regulamentação social. Esses dois tipos de regulamentação também têm sanções, que direcionam comportamentos. A eliminação das sanções jurídicas não significa que os comportamentos indesejados terão maior incidência, isso porque, concorrem com a sanção jurídica, outros tipos de controle social tão eficientes, quanto esta.
O Direito tem modificado sua forma de atuação em algumas condutas humanas, passando a incentivar comportamentos. Assim, a direção ocorre não através de penas, mas também de prêmios ou incentivos. Tal prática ficou conhecida como políticas de incentivo que são implantadas pelas sanções positivas.
As leis de redução de dano direcionam comportamentos ao incentivar ações que causem menos dano à saúde do indivíduo e à sociedade como um todo. Esse incentivo é diferente das sanções premiais, pois não visa dar um prêmio ou incentivo para ações que ocorrem em um futuro. As leis de redução de dano em geral entendem que o valor primordial a ser protegido na sociedade é a vida humana e, portanto, o incentivo é justamente para que se proteja a vida. Assim, não há de se falar de uma sanção premial ou mesmo de uma sanção negativa, para aquele que pratica um ato indesejado socialmente. Trata-se de uma política de proteção à vida, que não tem como objetivo sancionar, mas sim apoiar o indivíduo.



2. Comportamentos "anti-sociais"


As leis que implementam políticas de redução de dano entendem que existem comportamentos que mesmo indesejados pela sociedade, são praticados pelos indivíduos e que a mera sanção não impede que esses comportamentos existam. Assim, essas políticas buscam minorar os danos que alguns comportamentos trazem à sociedade e ao indivíduo. Não se trata de afastar, punir, impedir as condutas, mas de assumir a existência dessas condutas e buscar uma melhora na sociedade e na vida das pessoas, mesmo com condutas tidas como indesejadas socialmente.
A partir da codificação do Direito que data do século XIX diversas condutas indesejadas passaram a ser consideradas como crime e a sanção era o principal mecanismo para impedir que essas fossem praticadas. A medida que aumentava a positivação do Direito, surgiam mais e mais crimes. Condutas antes indesejadas se tornaram crimes e uma vez cometidas levavam o indivíduo a cumprir uma pena. Há uma grande diferença entre entender que a conduta é indesejada e que a mesma deva ser considerada como um crime. Porém, o Direito introduzindo um código binário de análise de comportamentos que admitia o lícito e o ilícito, incorporou as condutas indesejadas no código do ilícito.
Existe uma ampla gama de comportamentos que não causam dano direto à sociedade, porém que causam dano ao indivíduo. O suicídio é uma das práticas que causa um mal direto a quem pratica, não sendo uma prática nociva aos outros. Esta prática é desestimulada no âmbito da moral e socialmente sancionada. No âmbito do Direito não há nada que sancione a própria pessoa que comete ou tenta cometer o suicídio.
Ingerir uma quantidade grande de alimentos calóricos, de tabaco, bebida ou de drogas, a princípio são práticas que fazem mal diretamente àquele que pratica esses atos. Porém, esses comportamentos têm conseqüências indiretas para toda a sociedade. Não é apenas o ato isolado que é ruim ou não. O ato tem de ser analisado a partir das conseqüências para a sociedade em que está inserido aquele indivíduo. Assim, o comportamento de uma pessoa que beba muito é prejudicial ao seu organismo, mas é prejudicial à sociedade que pode ter mais riscos, uma vez que se generaliza que pessoas bêbadas têm redução da habilidade de dirigir, se tornam mais violentas, etc.. Trata-se de uma presunção, pois é possível que nada disso ocorra com aquele indivíduo específico.
O comportamento daqueles que não seguem os padrões sociais, tido como normais, pois são esses os comportamentos esperados socialmente, são classificados como comportamentos "anti-sociais". Coloca-se o termo entre aspas, pois entende-se que todo comportamento humano dentro de uma sociedade é um comportamento social. Esses comportamentos não são anti-sociais, mas sim, comportamentos fora dos padrões ideais estabelecidos por uma sociedade em uma dada localidade e tempo. Trata-se de um comportamento fora do ideal de comportamento buscado.
Com isso evidencia-se ao caráter idealista das leis jurídicas e sociais, que toma como padrão a ser praticado na vida, algo que é pautado no plano de um padrão ideal. Assim, se pode compreender com mais facilidade que ruídos entre o ideal e o real acontecem e que se deve saber lidar com eles, pois não é uma disfunção social, mas sim algo que é inerente a sociedade. O ideal não é algo a ser afastado, pois é importante como meta a mudanças sociais, porém não pode ser tomado como padrão rígido de um comportamento humano, que porque humano não segue sempre os padrões.


3. Redução de riscos

A sociedade atual busca reduzir cada vez mais o risco. Uma das práticas para essa tarefa é prever comportamentos. As leis proibitivas de comportamentos que contém em grande parte sanções negativas, busca desestimular comportamentos indesejados e por outro lado estimular os comportamentos conforme um padrão. O padrão estipulado pela lei abarca aquilo que se chamou de homem médio, que é uma ficção de um padrão de comportamento esperado de uma pessoa dentro da sociedade em que vive, seguindo as leis estatais e as normas sociais. De acordo com esse padrão a pessoa também deve estar inserida no estilo de vida do moderno capitalismo, ocupando grande parte de sua vida com o trabalho e consumindo produtos e serviços. Dentro desse padrão de comportamento há algumas ações que serão evitadas por grande parte da população, que irá adotar o padrão desejado. Porém, como a sociedade nunca é heterogênea há indivíduos que não adotam esse padrão, por diversos motivos.
A redução de riscos em uma sociedade somente tem sentido quando se consegue controlar a maioria dos comportamentos humanos e ao mesmo tempo se valer de um controle da natureza. O risco é inerente de uma sociedade capitalista em que se busca prever e controlar o futuro. A sina, o fatalismo e a fortuna passam a ser figuras de um outro tempo, em que não se podia controlar o homem e natureza. O homem é em grande parte controlado pelas normas jurídicas, sociais e por sua adequação a um modo de vida difundido pela sociedade como bom e desejado. A natureza é controlada pela tecnologia, que transforma as grandes catástrofes metereológicas, que antes eram imprevisíveis em acontecimentos previsíveis, que podem ser conhecidos de antemão e com isso ter seus riscos minorados. O risco está institucionalizado e pode ser calculado. Os acontecimentos passam a ser cada vez mais projetados e menos acidentais.
Viver em uma sociedade em que o risco é inerente do capitalismo e ao mesmo tempo, em que o risco deve ser calculado a todo custo, leva as pessoas se cercarem de uma série de mecanismos de calcular e evitar situações potencialmente perigosas. Isso faz com que cresça uma indústria do risco, com as seguranças particulares, companhias de seguro, empresas especializadas em prever reações do mercado, etc..
O risco também deve ser calculado na vida particular, evitando-se situações que podem apressar a morte. Há uma busca por diagnósticos precoces de doenças e uma tentativa de se evitar outras, com adoção de modos de vida, alimentos e remédios que buscam diminuir os riscos de morte prematura. Porém, essas regras para diminuir o risco são ditadas pelos especialistas, que alteram sua posição ao longo do tempo, gerando uma espécie de modismo na lista dos riscos. Assim, a manteiga, o pão, a carne vermelha são alimentos que ora aparecem como bons ora como condenados dependendo dos cientistas, que acreditam ou não que esses alimentos possam aumentar o risco de morte.
O risco se une aqui a uma outra preocupação da sociedade moderna, o cuidado com o corpo. A busca por uma manutenção da saúde e do corpo passa a ser uma das grandes preocupações, levando as pessoas a gastarem considerável tempo e dinheiro com isso. Tudo o que pode levar a um corpo e mente não saudáveis deve ser evitado e a insistência em comportamentos que não adotem os novos padrões de preocupação com limpeza, alimentação, saúde e diversos cuidados com o corpo, levam a diferentes tipos de segregação.
A sociedade moderna irá condenar o uso de drogas ilegais e de comportamentos não saudáveis que são buscados deliberadamente por algumas pessoas. Há uma dupla posição em relação às drogas, que são bem vindas enquanto legais e produzidas com a intenção de melhorar a saúde (drogas medicamentosas) ou servir como alimento. As drogas psicotrópicas passam a ser condenadas socialmente e passam a figurar em uma lista de substâncias ilícitas, cujo uso, porte ou comercialização implicam em crime. Ao contrário das sociedades antigas as drogas psicotrópicas se encontram desritualizada e marginalizada. Há a presunção generalizada de que consumir esse tipo de droga é aceitar um comportamento de risco em relação à saúde e leva a pessoa à marginalidade. Por outro lado, essa mesma sociedade que condena o consumo desse tipo de drogas, se alimenta de uma indústria do tráfico, de uma indústria anti-tráfico, de cura e reabilitação das pessoas envolvidas com esse consumo, etc..
A questão das drogas, que é uma questão não somente de saúde, mas de política estatal, tem relação direta com a questão da lei de redução de danos e com a busca de minoração de riscos. As leis de redução de dano apresentam um outro tipo de política estatal, que se contrapõe a uma política meramente proibitiva de comportamentos não desejados socialmente. Há uma mudança de postura do legislador frente a essas questões. É importante frisar que a política proibitivista em relação as drogas psicotrópicas é muito recente, iniciando-se no século XX . Porém, ela se tornou hegemônica e passou a ser quase inquestionada.
Algumas vozes se opõem a essa posição proibitivista, apresentando estudos que essa política não é eficaz para a sociedade atual e propondo um outro tipo de política, que é a política das leis de redução de dano. Ao buscar o instrumento da lei de redução de dano para casos polêmicos como as drogas psicotrópicas e seus usuários, profissionais de saúde e outros especialistas, trouxeram a luz esse instrumento legislativo. A sociedade passou a associar o instrumento ao tipo de política ligada as drogas, seus usuários e efeitos. Porém, o instrumento da lei de redução de danos pode ser aplicado a qualquer situação, em que se vise diminuir algum tipo de risco. É o risco o principal componente desse tipo de instrumento. O que se visa diminuir ou extinguir não é o dano propriamente, pois esse dano é futuro e pode não ocorrer. O risco é o grande vilão e o grande motivador da sociedade capitalista, que se move para evitá-lo e não consegue viver sem ele.


4. Papel das leis de Redução de Dano


As leis de redução de dano são um tipo de mecanismo relativamente novo na legislação brasileira e tem como objetivo direcionar comportamentos através de políticas públicas. Estas leis visam levar a sociedade e o indivíduo a adotar um comportamento mais saudável e com menos riscos a sua vida. As leis de redução de dano assumem a ineficiência da sanção para evitar alguns tipos de comportamentos, mesmo quando nocivos ao indivíduo e a sociedade.
As políticas públicas que se utilizam dessas leis estão geralmente na área da saúde, das drogas (lícitas e ilícitas), da violência, do trânsito de veículos e no âmbito da proteção ambiental. Certamente é na área da saúde e nas questões relativas às drogas que as leis de redução de dano têm um maior destaque na mídia gerando grande polêmica. Isso ocorre porque essas leis mostram a ineficácia da sanção para direcionar todos os comportamentos sociais e assume que comportamentos de risco existem não podendo ser totalmente evitados, porém esses podem ser minorados.
As leis de redução de dano nas áreas de saúde e relativa às drogas têm como objetivo principal a manutenção da vida do indivíduo. É a vida que deve ser preservada mesmo diante de um comportamento de risco do indivíduo. Esse tipo de lei não lida com os comportamentos que se deseja que o homem tenha, mas efetivamente com aqueles comportamentos que existem na sociedade contemporânea. Por ter uma visão mais realista de qual comportamento regrar para alcançar o melhor para uma sociedade, não lidando com uma posição idealista, muitas vezes essas leis entendidas como um incentivo à comportamentos não desejáveis na sociedade.
Essas leis de redução de dano atuam como mecanismo de estruturação da realidade caótica do mundo moderno, não se aproximando das leis que tem objetivo de programa e visam uma sociedade melhor para um futuro. Com isso, essas leis são mais realistas, mais pragmáticas e mais tolerantes com os comportamentos desviantes das normas jurídicas e morais. As leis de redução de dano não se limitam a proibir comportamentos tidos como nocivos ou de risco à saúde do indivíduo e da coletividade, mas procurar trazer uma série de instrumentos para minorar esses riscos e em etapas seguintes conseguir até mesmo suprimi-lo.
Um dos exemplos de leis de redução de dano ligadas à área de saúde, estão as leis que visam diminuir os casos de Aids e de Hepatite no Brasil. Essas políticas publicas implantadas a partir de leis que datam de 1999, visa distribuir entre os usuários de drogas, agulhas e instrumentos descartáveis para consumo da droga, evitando a transmissão do vírus HIV e da hepatite, por esse meio. Outra ação dessas leis era distribuir preservativos, estabelecer campanhas na grande mídia alertando para o comportamento de risco e informar medidas que poderiam ser tomadas uma vez que fosse assumido o comportamento de risco para a redução de dano.
Essa lei tornava claro que a mera proibição legal ou moral ao consumo de drogas não era eficiente para evitar que milhões de pessoas morressem. Assumia também que as políticas públicas de saúde tradicionais, não eram suficientes para resolver o problema e que esse somente poderia ser controlado a partir de uma mudança de comportamentos por parte da sociedade. O Estado por meio dessas leis chama a sociedade para ajudar à regular os comportamentos sociais, minorando os possíveis danos causados caso não tivesse nenhuma intervenção.
Grande parte das leis existentes na legislação brasileira são leis de repressão, que visam dirigir os comportamentos sociais a partir de sanções negativas, que são aquelas que de algum modo causam um mal. Essas sanções podem ser expressas em multas, penas (dentre elas os diversos tipos de sanções penais), indenizações, etc..
Esse tipo de lei não é uma lei que meramente sanciona comportamentos, isso porque os comportamentos não queridos já se encontram sancionados juridicamente ou mesmo moralmente. A lei de redução de dano também não promove comportamentos através de sanções positivas, como é o caso de incentivos fiscais utilizados nas leis tributárias ou de incentivo à cultura. São leis que incentivam comportamentos menos nocivos e perigosos á saúde dos indivíduos e da sociedade, mesmo que esses comportamentos não sejam o ideal desejado.
A função dessas leis não é a de reprimir comportamentos, nem de incentivar comportamentos desejados, mas de lidar com o comportamento social existente tornando-o dentro do possível melhor para a sociedade como um todo. Trata-se de uma medida de colaboração do Estado e da sociedade, para lidar com problemas centrais na sociedade moderna, em que o valor da vida prevalece em relação à saúde e à segurança do indivíduo ou social.



5. Diminuição da eficácia da sanção e os sujeitos das leis de redução de dano


A sanção foi utilizada como um dos instrumentos mais importante para coibir comportamentos não desejados pela sociedade. A partir de valores identificados na sociedade como desejáveis, afastavam-se os outros comportamentos. A sanção é um instrumento utilizado pela moral, pela sociedade e pelo Direito. Durante muito tempo o Direito utilizou-se da sanção, que tinha ao mesmo tempo uma função de educação e de punição aos comportamentos indesejados. A sanção buscava incentivar os comportamentos desejados, punindo os indesejados e mostrando as conseqüências existentes para àqueles que os praticassem. Nesse sentido a sanção funciona como um processo educativo. A sanção também buscava punir os comportamentos indesejados para que aqueles que praticaram esses comportamentos não voltassem a praticá-lo. A punição jurídica também visa uma restituição à sociedade por algo que lhe foi tirado, seja este um bem material ou mesmo a segurança e a paz social.
A sanção jurídica depende de uma valoração das condutas. Há condutas que são consideradas desejáveis e outras indesejáveis a partir de critérios que cada sociedade adota. Os comportamentos são valorados em cada sociedade de forma diferente, existindo comportamentos que são entendidos como desejáveis ou tolerados em uma sociedade, porém são indesejados ou reprimidos em outras. Não há comportamento indesejado universalmente. Isso indica que todo comportamento somente é valorado pela sociedade e é essa que pode aplicar ou não uma sanção para os comportamentos indesejados. Se há comportamentos indesejáveis semelhantes em diversas sociedades é porque elas partilham de valorações parecidas para o caso específico.
Dentro dos comportamentos indesejados há aqueles que são tolerados e outros que são sancionados, por multas e penas. Trata-se de uma valoração negativa dos comportamentos e que pretende infringir um mal àquele que a praticou ou a seu responsável legalmente. O Direito não trata dos comportamentos tolerados, mesmo sendo indesejados. As leis de redução de dano são exemplos de leis que lidam com comportamentos indesejados, mas que não eram considerados crimes, mesmo sendo comportamentos ditos imorais, ou com comportamentos que antes eram tidos como crimes e passam a ser descriminalizados, como no caso do consumo de algumas drogas ilícitas.
As leis de redução de dano estão endereçadas à diversos sujeitos, nem todos tendo um destaque nos meios comunicação. As leis que tratam da redução do dano ambiental têm pouca repercussão, muito provavelmente por que os sujeitos a quem estão endereçadas essas normas são sujeitos que o Direito geralmente acolhe em seu ordenamento. Outras leis de redução de dano provocam grandes discussões porque o sujeito a quem visam proteger são geralmente páreas sócias. Nesse caso o que se visa proteger através das leis de redução de dano é geralmente a saúde da pessoa.
Leis de saúde pública não são novidade, porém o que é novo é a preocupação estatal com o párea, o excluído e o marginalizado, como um cidadão portador de direitos fundamentais que devem ser protegidos. O que se destaca nas discussões jurídicas, políticas e também do grande público é o sujeito da lei de redução de dano, nesse último sentido, levando a conclusão apressada de que essas leis só se reduzem a esses sujeitos. O combate as leis de redução de dano vem muito da proteção aos direitos de um sujeito, que antes não era nem ao menos alçado a categoria de sujeito de Direito. Para esses sujeitos a sanção não era meio eficaz para que não cometessem condutas indesejadas, muitas vezes ilícitas.
A sanção jurídica presente na legislação dos países ocidentais a partir do século XIX era o principal instrumento do Direito para direcionar comportamentos. A sanção tinha como objetivo a punição de comportamentos. Punia-se as pessoas por comportamentos desviantes da lei, visando a não reincidência dessas mesmas condutas pela pessoa que a cometeu e ao mesmo tempo serviam como um aviso para que outras pessoas não praticassem essas condutas. O caráter educativo da punição sempre foi muito forte.
A educação pelo sofrimento devido à pena, ou mesmo através do medo da punição, sempre foi muito forte. Sempre que possível o sistema judiciário possibilitava por suas leis, uma nova chance para o indivíduo não praticar mais a conduta indesejada. Mesmo quando o indivíduo já tinha recebido sua pena, poderia em um momento posterior não voltar a praticá-la. A educação que visa a formatação se adequando a um modelo social esperado é o grande poder da sanção, que muitas vezes fica oculto. Educar para que as pessoas adotem um padrão pré-estabelecido como o padrão ótimo é um grande instrumento de poder. Isso proporciona uma coesão social à medida que desfaz e não considera as diferenças. Porém, o respeito e o incentivo a existência das diferenças é um dos grandes lemas de uma sociedade democrática. Cria-se com isso a divisão: comportamentos em que a diferença é aceita e comportamentos em que se prega à adequação ao padrão desejado.
Há também de se considerar que muitos indivíduos ou grupos que consideram que a lei não se aplica à eles, devido ao seu status econômico, estima social elevada ou mesmo a um estilo de vida diferenciado. Historicamente sempre existiram indivíduos que transitavam à margem da lei, sem se sentirem, nem serem excluídos da sociedade. Isso mostra que a sociedade não é heterogênea, mas é um complexo de grupos sociais que podem ter valores e padrões diferentes. A sociedade moderna permite a existência da diferença social.
Porém, a legislação desconsidera essa diferença entre as pessoas, para que possa exercer o poder estatal. Assim, não há pessoas em que determinadas leis não são aplicadas, ou não se destinam à elas. Isto porque há uma presunção jurídica de que toda lei é universalmente aplicada. Não se pode esquecer que isso é uma presunção, uma vez que a análise social não permite afirmar essa universalidade.
Essa mesma análise social não permite dizer que a conduta indesejada levará o indivíduo ou mesmo seu grupo social à uma situação de exclusão social, seja ela de que nível for. Há um padrão hegemônico social e também há padrões adotados pelos diferentes grupos sociais aos quais as pessoas participam. A legislação não considera, ou melhor, desconsidera essas diferenças e sanciona igualmente. A sociedade a partir de suas leis sociais, não desconsidera essas diferenças e aplica as sanções sociais diferentemente para cada grupo de pessoas ou pessoa.
A legislação jurídica costuma praticar através das sanções à exclusão daqueles indivíduos ou grupos sociais, que não se utilizam de um padrão desejado legalmente. Desse modo, utiliza-se não só do padrão lícito e ilícito, mas também do incluído e excluído. Isso aproximava a conduta ilícita da exclusão da pessoa que a praticou. Isso está longe de corresponder ao que acontece na sociedade, mas é o padrão do direito para lidar com as condutas sociais. Essa política utilizada durante muitos anos é de exclusão, segregação e estigmatização.
Aqueles indivíduos que não praticam comportamentos desejados e em que é exigido à adequação a um padrão, que por sua vez não é seguido, é muitas vezes afastado da sociedade. Esse indivíduo pode ser considerado como um pária, marginal ou ostracizado. Quando pária, o indivíduo ainda participa da sociedade, porém não é bem quisto, suas condutas não são tidas como desejáveis o que torna sua própria presença na sociedade indesejada. Nesse caso o indivíduo ainda pode se servir de políticas públicas, mesmo desprezado pela sociedade. Quando marginal, o indivíduo já não participa dos valores e práticas sociais, mantendo-se à sua margem. Porém, nesse caso conhece as condutas desejadas, mesmo não as praticando. Quando ostracizado, o indivíduo não mantém relações com a sociedade, apesar de alguns dos seus valores e práticas se reportarem à essa sociedade.
A sanção somente tem sentido para aqueles indivíduos que participam, mesmo que minimamente, da sociedade em que estão inseridos. Para um indivíduo marginalizado ou ostracizado não tem sentido a sanção, pois ela não piora a vida do indivíduo dentro de uma sociedade determinada, uma vez que esse já vive fora ou quase fora dela.
As leis de redução de dano ao adotar uma política legislativa que não visa à sanção, permite que o indivíduo que é considerado um pária ou mesmo que é marginalizado, possa se inserir novamente na sociedade. Não há sentido sancionar quem já não vive em sociedade. Assim, essas leis permitem a reintrodução do indivíduo na sociedade, mesmo quando não há uma adequação inteira ao padrão social desejado. Ao abrir mão da sanção e permitir uma conduta desviante, a sociedade não perde, mas ganha controle em cima de quem ela já não tinha controle algum. Esse controle permite que o indivíduo que é pária ou mesmo marginalizado, consiga uma inserção social, diminua os riscos à sua saúde e principalmente os riscos sociais. Não é sem razão que as leis de redução de dano ao implementarem as suas políticas enfatizem que estão resgatando os indivíduos, sua auto-estima e a cidadania.

Considerações finais

Os problemas sociais causados pelas conseqüências do uso de drogas crescem de uma maneira assustadora na sociedade contemporânea, especialmente por não haver políticas públicas para se lidar com a questão. Há uma dificuldade em todos os setores sociais de lidar com a existência e com as pessoas que fazem uso de drogas, em especial das ilícitas. A resposta mais comum é a mera proibição e repressão policial. Porém, esta política está longe de resolver os problemas complexos que o tema envolve. Buscando uma sociedade calcada em valores como a democracia, respeito às diferenças, autonomia e solidariedade é que as leis de redução de dano estão sendo propostas. Estas leis visam lidar com questões relacionadas às drogas, não apenas com sanções, mas com uma política que considere todos como cidadãos e portadores de direitos. As leis de redução de dano devem ser discutidas pela sociedade em busca de um futuro melhor, feito realmente por aqueles que pretendem mudar uma situação de descaso. O conteúdo dessas leis ainda é polêmico, porém não se pode negar seu valor humanitário supremo. Em busca de uma sociedade melhor é que se deve ter coragem para enfrentar esse tema tão difícil.


Autor: Gisele Salgado


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