Princípios Norteadores Do Processo Penal Brasileiro



1 NOÇÕES GERAIS

O Processo Penal brasileiro é regido por uma série de princípios, cujo estudo aprofundado e exata compreensão é de suma importância para a boa aplicação do Direito. Os princípios podem ser classificados como espécies do gênero normas jurídicas, juntamente com as regras. Essa classificação, contudo, nem sempre foi aceita pela ciência jurídica.

O doutrinador Luiz Roberto BARROSO ensina que, com a superação do Jusnaturalismo (corrente filosófica que defendia a existência de um direito natural, que era legitimado por uma ética superior), e o fracasso político do Positivismo Jurídico (corrente filosófica que defendia a vinculação estrita do Direito à norma, sendo esta um ato emanado do Estado com caráter imperativo e força coativa, desatrelado dos valores morais), surge uma nova ordem jurídica, denominada pós-positivismo.1

A aludida corrente filosófica, iniciada na segunda metade do século XX, representa uma alternativa aos fundamentos vagos e abstratos do jusnaturalismo, e à separação do Direito e da ética determinada pelo positivismo. A nova ordem jurídica promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre a ética e o Direito, considerando todos os avanços advindos do positivismo e resgatando as idéias de justiça e legitimidade oriundas do Jusnaturalismo.

Nesse contexto, os valores compartilhados por toda a comunidade também passam a constituir o ordenamento jurídico, explícita ou implicitamente, materializados nos princípios, os quais espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos e seus fins. A grande inovação trazida pelo pós-positivismo foi, portanto, o reconhecimento da normatividade dos princípios.

Destarte, pode-se afirmar que as normas em geral dividem-se em duas grandes categorias: os princípios e as regras, sendo que inexiste hierarquia entre os dois. Aqueles são mais abstratos, contêm maior carga valorativa, um fundamento ético, indicando uma determinada direção a ser seguida, enquanto essas consistem em comandos puramente objetivos que não dão margem a questionamentos sobre sua incidência.

As regras apenas não são aplicadas quando for constatada sua invalidade, diante da existência de outra regra mais específica para o caso em concreto, ou quando não estiverem mais em vigor. Os princípios, pelo contrário, não têm incidência condicionada à validade ou à invalidade. Sua aplicação se dá, predominantemente, pela ponderação, ou seja, diante do caso concreto em que existam princípios contrapostos, deve-se estabelecer o peso relativo de cada um deles, fazendo concessões recíprocas.

Restam evidenciadas, então, algumas das grandes diferenças entre as regras e os princípios: enquanto as regras são aplicadas em sua plenitude, ou então são violadas, os princípios são ponderados; noutro passo, ao contrário do que acontece com a regras, não existe hierarquia entre os princípios, não existe um critério que imponha a supremacia de um princípio sobre outro.

Nesse sentido, os princípios podem ser conceituados como espécies do gênero norma, consubstanciados em proposições abstratas e dotadas de grande conteúdo axiológico, que conferem estrutura e dão forma a todo o ordenamento jurídico.

Para o doutrinador Marco Antonio de BARROS, "princípio é o dogma fundamental que tem o condão de harmonizar o sistema normativo com lógica e racionalidade".2

No Processo Penal brasileiro, os princípios representam os postulados fundamentais da política processual penal do Estado e, como refletem as características de determinado momento histórico, sofrem oscilações de acordo as alterações do regime político. Como se vive sob a égide de um regime democrático, os princípios que regem o Processo Penal devem estar em consonância com a liberdade individual, valor tido como absoluto pela Constituição Federal de 1988.

Os inúmeros princípios que norteiam o Processo Penal brasileiro encontram-se determinados tanto pela Constituição Federal quanto pelo Código de Processo Penal, sendo que pode-se destacar os princípios do Juiz natural, do Promotor natural, do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, do duplo grau de jurisdição, da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos, da inocência ou da não-culpabilidade, do favor rei, da iniciativa das partes, do impulso oficial, da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública, da imparcialidade do Juiz, da persuasão racional ou do livre convencimento, do ne eat judex ultra petita partium, do ne bis in idem e, por fim, da verdade material ou verdade real.

A despeito desta enumeração, vigoram, também, no ordenamento jurídico processual do país, os princípios da humanidade, da igualdade das partes, da publicidade, da oficialidade, da motivação das decisões judiciais, da lealdade processual e da economia processual. Contudo, apenas os princípios mencionados naquele parágrafo serão analisados no presente trabalho por guardarem maior ligação com o tema proposto.

I

2 PRINCÍPIOSCONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

2.1 Princípio do Juiz Natural e do Promotor Natural

Consagrado pela CF/88, em seu art. 5º, LIII, o princípio do Juiz natural estabelece que ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, representando a garantia de um órgão julgador técnico e isento, com competência estabelecida na própria Constituição e nas leis de organização judiciária de cada Estado.

Juiz natural é, assim, aquele previamente conhecido, segundo regras objetivas de competência estabelecida anteriormente à infração penal, investido de garantias que lhe assegurem absoluta independência e imparcialidade.

Decorre desse princípio a proibição de criação de juízos ou tribunais de exceção, insculpida no art. 5º, XXXVII, que impõe a declaração de nulidade de qualquer ato judicial emanado de um juízo ou tribunal que houver sido instituído após a prática de determinados fatos criminosos, especificamente para processar e julgar determinadas pessoas.

Faz-se mister esclarecer que a proibição da constituição de tribunais de exceção não significa impedimento à criação de justiça especializada ou de vara especializada, já que, nesse caso, apenas são reservados a determinados órgãos, inseridos na estrutura judiciária fixada na própria Constituição, o julgamento de matérias específicas.

No mesmo sentido, o princípio do Promotor natural também encontra amparo no art. 5º, LIII, da CF/88, ao determinar que ninguém será processado senão por autoridade competente.

O mencionado dispositivo deve ser interpretado em consonância com os arts. 127 e 129 daquele diploma legal, ou seja, ninguém poderá ser processado criminalmente senão pelo órgão do Ministério Público, dotado de amplas garantias pessoais e institucionais de absoluta independência e liberdade de convicção e com atribuições previamente fixadas e conhecidas.

A garantia do promotor natural consagra a independência do órgão de acusação pública. Representa, ainda, uma garantia de ordem individual, já que limita a possibilidade de persecuções criminais pré-determinadas ou a escolha de promotores específicos para a atuação em certas ações penais.

Sobre o assunto, vale transcrever o posicionamento adotado pelo doutrinador Antônio Scarance FERNANDES:

Se, por um lado, o princípio tem a vantagem de evitar a possibilidade de o Procurador-Geral, movido por influências estranhas, retirar do promotor natural a atribuição para atuar em determinado inquérito ou processo, traz também o risco de fazer com que o Ministério Público, instituição que pela sua natureza deve ter como característica fundamental a agilidade, o dinamismo, mormente antes as exigências contemporâneas de maior atuação na fase de investigação e de maior eficiência no combate aos crimes graves e à criminalidade organizada, torne-se um órgão inerte, burocrático.3

Conquanto existam divergências doutrinárias acerca da existência do princípio do promotor natural no ordenamento jurídico pátrio, o Supremo Tribunal Federal já o reconheceu quando, por maioria absoluta, vedou a designação casuística de promotor, pelo Dirigente da Instituição, para promover a acusação em caso específico, uma vez que tal procedimento chancelaria a figura do chamado "promotor de exceção".4

Em outra oportunidade, aquela mesma Corte Constitucional vedou a possibilidade de nomeação de um promotor para exercer as funções de outro, que havia sido regularmente investido no respectivo cargo.5

2.2 Princípio do Devido Processo Legal

A CF/88 inovou em relação às anteriores Constituições brasileiras as quais, a despeito de observarem o princípio do devido processo legal, não o previam expressamente.

Hoje o aludido princípio foi erigido à categoria de dogma constitucional, encontrando-se disposto no art. 5º, LIV, da Carta Magna, consistindo no direito concedido a todos de não serem privados de sua liberdade e de seus bens sem a garantia que supõe a tramitação de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei.

O devido processo legal, portanto, configura proteção ao indivíduo tanto sob o aspecto material, com a garantia de proteção ao direito de liberdade, quanto sob o aspecto formal, assegurando-lhe a plenitude da defesa e igualdade de condições com o Estado-persecutor.

Pode-se conceituar o princípio em estudo, de acordo com a lição do doutrinador Marcos Alexandre Coelho ZILLI, como sendo uma garantia constitucional, atualmente incorporada no campo dos direitos e garantias fundamentais, que visa assegurar às partes interessadas o estabelecimento e o respeito a um processo judicial instituído em lei e conduzido por um juiz natural, sendo que este deve ser dotado de independência e imparcialidade, resguardando-se o contraditório, a ampla defesa, a publicidade dos atos e a motivação das decisões ali proferidas.6

2.3 Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa

Os princípios do contraditório e da ampla defesa encontram previsão expressa no art. 5º, LV da CF/88, que dispõe: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes."

Os princípios em comento encontram-se estritamente ligados, já que a efetividade de um depende da observância do outro. Nesse sentido, os doutrinadores Ada Pellegrine GRINOVER, Antonio Scarance FERNANDES e Antônio Magalhães GOMES FILHO lecionam:

Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório.7

O princípio do contraditório consubstancia-se na necessidade de confrontar as partes, dando ciência à parte adversa de todos os atos praticados pela parte autora, para que possa contraditá-los, e vice-versa. Infere-se que, ao menos no processo penal, mencionado princípio não se limita a dar ciência ao réu da instauração de uma ação em seu desfavor, devendo ser pleno, ou seja, observado em todo o desenrolar processual, até o seu encerramento.

O princípio do contraditório decorre do princípio da igualdade processual, pelo qual as partes encontram-se em posição de similitude perante o Estado e perante o Juiz, sendo que ambas deverão ser ouvidas, em plena igualdade de condições.

O CPP assegura a efetividade dessa garantia constitucional em diversos dispositivos. Exemplo há no art. 364 quando determinada que o Juiz, ao receber a denúncia ou a queixa, deve, dentre outras providências, ordenar a citação do réu e a notificação do Ministério Público.

Impende anotar que a garantia do contraditório não abrange a fase do inquérito policial. Isso porque, nessa fase, ainda não existe qualquer acusação, restando impossibilitada a aplicação de qualquer pena. Ademais, para as medidas cautelares impostas na fase inquisitorial existem as contra-cautelas específicas, também asseguradas constitucionalmente, como o Habeas Corpus, previsto no art. 5º, LXVIII da CF/88.

A ampla defesa, por sua vez, cuja possibilidade de exercício nasce justamente com a efetivação do contraditório, como anteriormente mencionado, possui dois aspectos, quais sejam, defesa técnica e autodefesa. A violação a esse princípio pode acarretar nulidade absoluta ou relativa, conforme o vício prejudique a ampla defesa como um todo ou não.

A defesa técnica consubstancia-se na necessidade de o acusado ser processualmente representado por profissional legalmente habilitado. Por ser condição de igualdade entre as partes, a representação do acusado por advogado é indispensável.

Em observância ao princípio em comento, o art. 261 do CPP dispõe que "nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor". O art. 263 do mesmo diploma legal acrescenta que, caso o acusado não tenha defensor, ao magistrado caberá a nomeação de um advogado, ressalvada a possibilidade de o acusado, a qualquer momento, substituí-lo por um de sua confiança, ou mesmo defender-se a si próprio, desde que seja habilitado para tanto.

A autodefesa, por sua vez, compõe-se de dois aspectos: o direito de audiência, ou seja, a possibilidade de o acusado influir sobre a formação do convencimento do Juiz quando da realização do interrogatório, e o direito de presença, ou seja, a oportunidade concedida ao acusado de presenciar a realização dos atos processuais, principalmente os instrutórios.

A autodefesa, justamente por ser uma faculdade concedida ao acusado, não deve ser imposta. Nem por isso o magistrado está autorizado a dispensá-la. Por essa razão, a limitação da colaboração do acusado com seu defensor pode ser considerada como cerceamento de defesa, dando causa, inclusive à nulidade de determinado ato processual, ou mesmo de todo o processo.

Sobre o tema, posiciona-se a jurisprudência:

Dois princípios incidem no processo penal: o contraditório e defesa plena. Esta, por seu turno, é bifronte: defesa técnica e defesa pessoal. A primeira se impõe, ainda que haja oposição do réu. A segunda pode ser desprezada, todavia, o réu tem o direito de exercê-la como parte processual, querendo, tem direito à atuação. O DPP moderno exige que o réu participe, seja autor, não se resumindo a mero espectador do processo.8

2.4 Princípio do Duplo Grau de Jurisdição

A despeito de não se encontrar expressamente previsto na CF/88, o princípio do duplo grau de jurisdição decorre de nosso próprio sistema constitucional, quando estabelece a competência dos tribunais para julgar, em grau de recurso, determinadas causas.

É imperioso observar a determinação contida no art. 108, II, da Magna Carta, que diz competir aos Tribunais Regionais Federais "julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição".

Vale ressaltar que a mesma regra aplica-se aos Tribunais Estaduais, aos Tribunais Regionais Eleitorais, aos Tribunais Militares e aos Tribunais Regionais do Trabalho, nas causas decididas pelos respectivos órgãos de primeiro grau de jurisdição.

Ademais, a aplicabilidade do princípio do duplo grau de jurisdição no ordenamento jurídico pátrio encontra amparo no parágrafo 2o do art. 5o da Lei Maior que determina que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes de tratados internacionais em que o Brasil seja parte, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), a qual o Brasil aderiu através Decreto n.º 678/92 e que prevê a plena aplicabilidade do princípio em estudo.

Nesse sentido, vale transcrever a lição de Fernando da Costa TOURINHO FILHO, quando leciona:

Por outro lado, como o § 2º do art. 5º da Lei Maior dispõe que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, e considerando que a República Federativa do Brasil, pelo Decreto n. 678, de 6-11-1992, fez o depósito da Carta de Adesão ao ato internacional da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), considerando que o art. 8º, 2, daquela Convenção dispõe que durante o processo toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma série de garantias mínimas, dentre estas a de recorrer da sentença para Juiz ou Tribunal Superior, pode-se concluir que o duplo grau é garantia constitucional.9

O aludido princípio tem como fundamento a idéia de que os juízes, como homens que são, também estão sujeitos a erros. Daí surge a necessidade de um órgão hierarquicamente superior competente para revisar as decisões proferidas pelos magistrados da instancia de origem.

O duplo grau pressupõe a existência de dois órgãos jurisdicionais: o inferior, que conhece da causa, e o superior, que tem a função precípua de rever as decisões proferidas pelo inferior.

A observância do duplo grau de jurisdição, ou seja, um segundo exame de uma relação jurídica litigiosa, confere maior efetividade à atuação jurisdicional, mostrando-se imprescindível para a justa composição do conflito de interesses. Por outro lado, inexistindo o duplo grau de jurisdição, aumentar-se-ia o risco de consagrar-se uma injustiça.

Excepcionalmente, o princípio em comento não é observado nas ações originárias dos Tribunais. Como exemplo, pode-se citar o caso de um Deputado Federal processado e julgado, pela prática de uma infração penal comum, pelo STF, consoante o disposto no art. 102, I, b, da CF/88. Nesse caso, diante de inexistência de órgão jurisdicional superior, não haverá o duplo grau.

2.5 Princípio da Inadmissibilidade de Provas Obtidas por Meios Ilícitos

A CF/88 inovou ao vedar expressamente a utilização, no processo, de provas obtidas por meios ilícitos, consoante o disposto no inc. LVI de seu art. 5º. Essa vedação decorre da observância do princípio da dignidade da pessoa humana, que deve se sobrepor à atuação estatal, limitando a persecução penal.

Conquanto a Magna Carta refira-se à prova ilícita, deve-se entender que a proibição abrange as provas ilegais como um todo, incluindo as provas ilegítimas. Pode-se dizer que a prova ilegal é o gênero do qual as provas ilícitas e as ilegítimas são espécies: essas são produzidas com violação a normas de direito processual, enquanto aquelas são produzidas com violação a normas de direito material. As provas podem ser, ainda, ilícitas e ilegítimas ao mesmo tempo, quando contrariarem tanto normas de natureza processual, quanto normas de natureza material.

A inadmissibilidade de provas ilegais estende-se às provas ilegais por derivação, ou seja, aquelas que, a despeito de terem sido colhidas regularmente, com a observância das normas de direito material e processual, a autoridade, para descobri-la, fez uso de meios ilegais, ou seja, a prova legal foi alcançada por intermédio de uma prova ilegal.

Não existe regra expressa nesse sentido no ordenamento jurídico pátrio. A mencionada proibição advém da adoção da regra consagrada pelo direito americano, revelada pela expressão fruits of the poisonous tree (frutos da árvore envenenada).

O STF tem se manifestado pela inadmissibilidade das provas ilegais por derivação, adotando a teoria dos frutos da árvore envenenada, senão vejamos:

A prova ilícita contaminou as provas obtidas a partir dela. A apreensão dos 80 quilos de cocaína só foi possível em virtude de interceptação telefônica10

Vedar que se possa trazer ao processo a própria degravação das conversar telefônicas, mas admitir que as informações nela colhidas possam ser aproveitadas pela autoridade, que agiu ilicitamente, para chegar a outras provas, que sem tais informações não colheria, evidentemente, é estimular, e não reprimir a atividade ilícita da escuta e da gravação clandestina e conversas privadas

E finalizando: ou se leva às últimas conseqüências a garantia constitucional ou ela será facilmente contornada pelos frutos da informação ilicitamente obtida.11

A vedação da utilização das provas ilegais no processo, contudo, vem sendo atenuada pela aplicação da teoria da proporcionalidade, ou da ponderação de interesses, segundo a qual deve prevalecer, no caso concreto, o princípio que parece ser o mais importante. Destarte, se a prova ilegal foi produzida com o fim de resguardar outro bem protegido pela Constituição, de maior valor que este, inexistirá a restrição à sua utilização.

Como forma de manifestação da teoria acima mencionada, tem-se admitido a utilização, no processo, de provas ilegais favoráveis ao acusado, desde que sejam indispensáveis e que tenham sido produzidas pelo próprio interessado. Nesse caso, a ilegalidade da prova seria eliminada pela legítima defesa do réu, causa excludente de antijuridicidade.

Ademais, a admissibilidade da prova ilícita pro reo está em consonância com outro princípio norteador do processo penal, o princípio do favor rei, o qual será posteriormente estudado, e também com do direito à liberdade, tutelado constitucionalmente.

2.6 Princípio da Inocência ou da Não Culpabilidade

Erigido à categoria de dogma constitucional, o princípio da inocência, também denominado princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, já acolhido por diversos tratados internacionais sobre direitos humanos, encontra-se previsto no art. 5º, inc. LVII, da CF/88 que diz que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória".

Consoante o aludido princípio, existe uma presunção de inocência do acusado da prática de uma infração penal até que haja uma sentença condenatória irrecorrível que o declare culpado, ou seja, é assegurado a todo e qualquer indivíduo um prévio estado de inocência, que só pode ser afastado se houver prova plena do cometimento de um delito.

Nos termos dos ensinamentos trazidos pelo jurista Antônio Magalhães GOMES FILHO, o princípio em estudo não se limita a uma garantia política do estado de inocência dos cidadãos, devendo, também, ser analisado sob o enfoque técnico jurídico, como regra de julgamento a ser adotada sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão do processo, quando a presunção de inocência confunde-se com o princípio in dubio pro reo. Ademais, a mencionada norma deve orientar o tratamento do acusado ao longo de todo o processo, impedindo que ele seja equiparado ao culpado.12

Se analisada restritivamente, essa norma poderia impedir a aplicação de qualquer medida coativa contra o acusado ou o suspeito até o trânsito em julgado da sentença, a exemplo das prisões provisória e temporária.

A doutrina majoritária, amparada por entendimento jurisprudencial dominante, contudo, entende que o princípio da presunção de inocência não é absoluto, razão pela qual não impede a adoção de medidas coercitivas em face do acusado, no decorrer do processo ou mesmo antes da instauração deste, quando devidamente justificadas.

Sobre o assunto, comenta Julio Fabbrini MIRABETE:

Não se impede, assim, que, de maneira mais ou menos intensa, seja reforçada a presunção de culpabilidade com os elementos probatórios colhidos nos autos de modo a justificar medidas coercitivas contra o acusado. Dessa forma, ao contrário do que já tem se afirmado, não foram revogados pela norma constitucional citada os dispositivos legais que permitem a prisão provisória, decorrentes de flagrante, pronúncia, sentença condenatória recorrível e decreto de custódia preventiva, ou outros atos coercitivos (busca e apreensão, seqüestro, exame de insanidade mental etc.).13

Nesse mesmo sentido, a Súmula 9 do STJ sinaliza que "a exigência de prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência".

A adoção do princípio da inocência pela CF/88 traz algumas conseqüências processuais, tais como: a restrição à liberdade do acusado antes do trânsito em julgado da sentença definitiva só deve ser admitida a título de medida cautelar, com fidedigna observação de todos os dispositivos processuais penais referentes ao tema; o ônus da prova é atribuído ao órgão acusador, seja ele o Ministério Público ou o querelante, estando o acusado desobrigado de provar sua inocência; o magistrado necessita de plena convicção de que o acusado é responsável pelo delito para que possa condená-lo, enquanto que, para sua absolvição, basta a dúvida a respeito de sua culpa.

3 PRINCÍPIOS GERAIS DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

3.1 Princípio do Favor Rei

Também conhecido como princípio do favor inocentiae, favor libertatis, ou in dubio pro reo, o princípio do favor rei pode ser considerado como um dos mais importantes princípios do Processo Penal, configurando a base de toda a legislação processual penal de um Estado efetivamente democrático. Pode-se dizer que decorre do princípio da presunção de inocência anteriormente estudado.

Consubstancia-se na predominância do direito de liberdade do acusado quando colocado em confronto com o direito de punir do Estado, ou seja, na dúvida, sempre prevalece o interesse do réu. O mencionado princípio deve orientar, inclusive, as regras de interpretação, de forma que, diante da existência de duas interpretações antagônicas, deve-se escolher aquela que se apresenta mais favorável ao acusado.

Nesse sentido, posiciona-se parte da doutrina:

No processo penal, para que seja proferida uma sentença condenatória, é necessário que haja prova da existência de todos os elementos objetivos e subjetivos da norma penal e também da inexistência de qualquer elemento capaz de excluir a culpabilidade e a pena. Não só os elementos do delito, mas também a punibilidade está subordinada ao in dubio pro reo. Pesa sobre a acusação o ônus da prova de "todo complexo ato punível".14

O CPP consagra esse princípio em diversos dispositivos. Como exemplo, pode-se citar o art. 386, inc. VI, que permite a absolvição do réu pelo juiz nos casos de inexistência de provas suficientes para a condenação; o art. 607, que trata do protesto por novo júri, recurso privativo da defesa; e ainda, o art. 617, que proíbe a majoração da pena pelo tribunal, quando somente o réu tiver apelado da sentença (reformatio in pejus).

3.2 Princípios da Iniciativa das Partes e do Impulso Oficial

O princípio da iniciativa das partes é assinalado pelos axiomas latinos nemo judex sine actore e ne procedat judex ex officio, ou seja, não há juiz sem autor, ou o juiz não pode dar início ao processo de ofício, sem a provocação da parte interessada.

Sabe-se que a ação penal é o direito de se invocar a tutela jurisdicional-penal do Estado, de forma a ser inviável que o Juiz, órgão estatal incumbido da jurisdição, deduza a pretensão punitiva perante o Estado, ou melhor, perante a si próprio, já que atua como representante daquele. Por essa razão, deverá o magistrado permanecer inerte, ao menos nesse momento inicial.

O CPP prevê expressamente o aludido princípio quando, por intermédio dos arts. 24 e 30, dispõe que a ação penal pública deve ser promovida pelo Ministério Público, através da denúncia, e que a ação penal privada deve ser promovida pelo ofendido ou por quem caiba representá-lo, mediante queixa.

Tais dispositivos podem ser corroborados pelo art. 28 do mesmo diploma legal, o qual dispõe que, nos casos em que o órgão do Ministério Público deixa de oferecer a denúncia para requerer o arquivamento do inquérito policial, ainda que o Juiz não concorde com as alegações do Parquet, não poderá dar início à ação penal ex officio, devendo remeter os autos ao Procurador Geral para que esse tome as providencias que julgar cabíveis.

Pode-se entender, destarte, que o princípio da iniciativa das partes consiste no fato de que é o próprio titular do direito à ação quem deve provocar a atuação jurisdicional, ou seja, deve levar o fato ao conhecimento do magistrado, requerendo-lhe a aplicação da Lei Penal.

Existiam, no ordenamento jurídico pátrio, duas exceções ao princípio em estudo, quais sejam: o procedimento penal de ofício das contravenções, previsto nos arts. 531 e seguintes do CPP, e o procedimento judicialiforme referente aos crimes de lesão corporal e homicídio culposos, previsto na Lei. n.º 4.611/1965, que determinava que o Juiz ou o Delegado de polícia poderiam dar início às ações penais, mesmo não sendo partes. Tais exceções, contudo, foram revogadas pelo art. 129, I, da CF/88, que atribui exclusivamente ao Ministério Público a titularidade das ações penais públicas.

A regra do ne procedat judex ex officio, contudo, não transforma o Juiz em um órgão absolutamente inerte, já que, iniciada a ação pela parte interessada, deve o magistrado promover o bom e rápido andamento do feito, dando continuidade aos atos processuais, segundo a ordem do procedimento, até que a instância se finde.

A condução do processo, a efetivação da passagem de um ato processual a outro, a ativação da causa é justamente o que pode-se chamar de princípio do impulso oficial, com o qual resta impedida a paralisação do processo por simples inércia ou omissão das partes

O CPP elenca diversos atos que devem ser praticados pelo magistrado, tendo como fim dar andamento ao processo, até solução final, tais como: determinação de diligências de ofício (art. 156), realização de exame de corpo de delito complementar (art. 168), a possibilidade de reinterrogar o réu (art. 196), coleta de documentos probantes de relevo para a causa (art. 234), a reinquirição das testemunhas e do ofendido (art. 502, parágrafo único), dentre outros.

Em suma, pode-se dizer que o processo penal começa por iniciativa das partes, mas desenvolve-se por impulso oficial do juiz.

3.3 Princípios da Obrigatoriedade e da Indisponibilidade da Ação Penal

O princípio da obrigatoriedade da ação penal fundamenta-se na necessidade de defesa social contra o crime, obrigando a autoridade policial e o órgão do Ministério Público a promoverem o jus puniendi estatal, sem que possam apreciar a conveniência ou a oportunidade de tal ato.

Diante da ocorrência de crime de ação penal pública incondicionada, estão os órgãos incumbidos da persecução penal obrigados a instaurar inquérito policial para apuração do fato delituoso, bem como promover ação penal em momento posterior.

A obrigatoriedade de propositura de ação penal, contudo, não é absoluta. TOURINHO FILHO ensina ser indispensável que ocorram os pressupostos gerais da ação penal, sem os quais resta impossibilitada sua propositura, quais sejam, autoria conhecida, fato típico não atingido por uma causa extintiva de punibilidade e um mínimo de suporte probatório.15

O CPP consagra o princípio em comento quando, em seus arts. 5º, 6º e 24, determina o momento e a forma de instauração de inquérito policial, bem como da propositura da ação penal.

Anote-se que a obrigatoriedade refere-se apenas às ações penais públicas incondicionadas, e contrapõe-se diretamente ao princípio da oportunidade, que rege as ações penais privadas e as públicas condicionadas à representação do ofendido ou à requisição o Ministro da Justiça, segundo o qual o órgão estatal tem a faculdade de promover ou não a ação penal, conforme seja ou não conveniente.

Ressalte-se, entretanto que a Lei n.º 9.099/1995 criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais com competência para o processamento, julgamento e execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, instituiu regra mitigadora deste princípio, autorizando a composição civil do dano (art. 74) como causa de exclusão do processo, e ainda, estabelecendo hipóteses de aplicação imediata da pena não privativa de liberdade, mediante transação penal ofertada pelo Ministério Público (art. 76).

A mencionada inovação está em consonância com as modernas tendências do Direito Criminal, que defendem a aplicação da Lei Penal e Processual Penal apenas aos casos mais graves, de maior relevância. É o que pode-se chamar de Direito Penal Mínimo.

Como derivado do princípio da obrigatoriedade, tem-se o princípio da indisponibilidade da ação penal pública, que vigora, inclusive, na fase do inquérito policial. A adoção desse princípio proíbe a paralisação injustificada da investigação policial ou seu arquivamento pela autoridade policial, bem como a obstacularização da própria ação penal, salvo por justa causa.

Como garantia do aludido princípio, a lei processual penal determina os prazos para a conclusão do inquérito policial, sendo estes de 10 (dez) dias se o indiciado estiver preso e de 30 (trinta) dias se estiver solto (art. 10), e, ainda, proíbe a autoridade policial de formular pedido de arquivamento do instrumento persecutório (art. 17).

Com relação à indisponibilidade da ação penal propriamente dita, aquele diploma legal veda a possibilidade de desistência da ação penal pelo órgão do Ministério Público (art. 576), impedindo, inclusive, que o Parquet desista de recurso que haja interposto em ação penal pública (art. 576).

Cumpre observar, ainda, que o art. 28 do CPP situa o juiz como fiscal dos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública, ao lhe conceder a possibilidade de remeter os autos ao Procurador Geral quando discordar das razões apresentadas por membro do Ministério Público em pedido de arquivamento de inquérito.

3.4 Princípio da Imparcialidade do Juiz

O princípio da imparcialidade do Juiz rege tanto o Processo Penal quanto o Processo Civil. Justifica-se pela própria essência da função jurisdicional, que é a de dar a cada um o que é seu, a qual restaria profundamente prejudicada se exercida por um órgão estatal parcial. Sobre a imparcialidade do Juiz, a doutrina se posiciona:

Caracteriza-se pelo desinteresse subjetivo do juiz diante do caso posto a julgamento, ficando este impedido de servir aos interesses subjetivos de alguma das partes processuais. Deve, por conseqüência, atuar como um observador desapaixonado, exercendo o poder jurisdicional com isenção sem permitir que fatores alheios interfiram na condução da marcha processual e no conteúdo de sua decisão.16

A imparcialidade, contudo, pressupõe a independência do magistrado, razão pela qual a CF/88, em seu art. 95, lhe assegurou algumas prerrogativas, a fim de evitar que ele venha a sofrer quaisquer espécies de influências ou coações. São elas: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio.

A vitaliciedade é adquirida, em primeiro grau de jurisdição, após dois anos de exercício da magistratura, período em que o Juiz só perderá o cargo por decisão do Tribunal ao qual estiver vinculado. Vencido o período do estágio probatório, o Juiz só perderá o cargo por sentença judicial transitada em julgado.

A inamovibilidade consiste na impossibilidade de remoção compulsória do magistrado da comarca ou seção judiciária em que atua, salvo por motivo de interesse público, por decisão dada por votos de dois terços dos membros do Tribunal ao qual encontra-se vinculado, assegurada-lhe a ampla defesa.

A irredutibilidade de subsídio, por sua vez, visa preservar a segurança financeira do magistrado, para evitar que ele sofra qualquer ameaça no sentido de se ver obrigado a atuar de determinada forma para não correr o risco de não receber seus vencimentos.

A despeito das prerrogativas conferidas aos magistrados com o objetivo de garantir sua imparcialidade, o legislador ordinário, prevendo que esta poderia ser desrespeitada, estabeleceu situações em que ficaria o Juiz impedido de atuar em determinadas causas, justamente por lhe faltar capacidade subjetiva para tanto.

Nesse sentido, com o intuito de assegurar o princípio da imparcialidade do órgão julgador, o CPP estabeleceu, em seus arts. 252, 253 e 254, causas de impedimento e suspeição dos Juízes que, uma vez configuradas, os impedem de atuar no processo.

O impedimento é mais grave e configura-se com uma ligação direta do Juiz com o processo submetido a seu julgamento, como nos casos em que seu cônjuge tiver atuado no processo, quando ele mesmo tiver atuado como Juiz da causa em outra instancia, ou quando ele ou algum parente for parte ou diretamente interessado no feito.

Configurada alguma das causas de impedimento, deve o Magistrado afastar-se espontaneamente do feito e, caso não o faça, qualquer das partes poderá argüir o impedimento e, se devidamente provado, provocará seu afastamento.

A suspeição, a despeito de não ser tão grave quanto o impedimento, também interfere na imparcialidade do Juiz, razão pela qual poderá ser argüida pelo próprio Magistrado e, se este não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes.

Configura-se a suspeição quando, por exemplo, o Magistrado é amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes, quando tiver aconselhado qualquer das partes, ou mesmo quando for credor ou devedor do autor ou do réu.

As causas de impedimento e suspeição impedem o exercício da jurisdição do Magistrado no processo em que se apresentam, representando, assim, uma garantia conferida às partes de serem julgadas por Juiz imparcial.

3.5 Princípio da Persuasão Racional ou do Livre Convencimento

O princípio em comento limita o julgamento do magistrado aos fatos que estão devidamente demonstrados no processo, impedindo-o de julgar com o conhecimento que eventualmente tenha extra-autos. Advém do brocardo latino "Quod non est in actis non est in hoc mundo", ou seja, "O que não está nos autos, não está no mundo".

A despeito da necessidade do magistrado limitar sua atuação às provas constantes dos autos, ele deve avaliá-las segundo critérios críticos e racionais, observando, ainda, as regras legais porventura existentes, bem como as máximas de experiência. Pode-se entender que a sentença judicial consubstancia-se na exteriorização do convencimento do Juiz em face das provas produzidas no decorrer do processo.

O princípio da persuasão racional ou do livre convencimento foi consagrado pelo CPP que, no art. 157, determina que "o Juiz formará sua convicção pela livre apreciação das provas", diferindo dos sistemas da prova legal e da íntima convicção do Juiz.

Pelo sistema da prova legal, a cada prova é atribuído um valor específico, ficando a atuação jurisdicional estritamente vinculada a essas regras preestabelecidas, não restando ao julgador qualquer margem de discricionariedade para avaliar a importância de cada meio instrutório, devendo aplicá-las mecanicamente, sem qualquer valoração subjetiva.

Por outro lado, o sistema da íntima convicção concede ao Juiz liberdade ilimitada para decidir como quiser, inexistindo qualquer regra de valoração das provas, ou seja, não há nenhum critério orientador do julgamento a ser proferido pelo magistrado.

Conforme já observado, prevalece no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da persuasão racional do Juiz. Contudo, os dois sistemas de apreciação das provas acima mencionados também são adotados por nossa legislação processual penal, de forma excepcional.

O sistema da prova legal pode ser observado, por exemplo, com a análise do art. 158 do CPP que determina que "quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado". O sistema da íntima convicção, por sua vez, pode ser observado nas decisões proferidas pelo júri popular, nas quais o jurado profere seu voto, sem necessidade de fundamentação.

Sobre o assunto, cumpre transcrever os ensinamentos de Fernando CAPEZ:

O Juiz, portanto, decide livremente de acordo com a sua consciência, devendo, contudo, explicitar motivadamente as razões de sua opção e obedecer a certos balizamentos legais, ainda que flexíveis.

(...)

Trata-se, na realidade, do sistema que conduz ao princípio da sociabilidade do convencimento, pois a convicção do Juiz em relação aos fatos e às provas não pode ser diferente da de qualquer pessoa que, desinteressadamente, examine e analise tais elementos. Vale dizer, o convencimento do Juiz deve ser tal que produza o mesmo resultado na maior parte das pessoas que, porventura, examinem o conteúdo probatório.17

Conclui-se, assim, que o princípio da persuasão racional ou do livre convencimento representa o ponto de equilíbrio entre o sistema da prova legal e da íntima convicção.

3.6 Ne Eat Judex Ultra Petita Partium

O princípio em comento decorre do princípio da iniciativa das partes, limitando a atividade jurisdicional ao que foi solicitado por elas, ou seja, o Juiz deve restringir seu pronunciamento àquilo que foi pedido, ao que foi exposto na peça processual inicial. O que efetivamente vincula o Juiz criminal, contudo, são os fatos submetidos à sua apreciação, e não a simples definição legal destes.

Pode-se dizer que, se o Promotor, na denúncia, imputa ao acusado a prática do crime de roubo, descrevendo toda a conduta delituosa e, ao classificar a infração, em observância ao preceituado pelo art. 41 do CPP, classifica-a como furto (art. 155 do CP), ou qualquer outro delito, é inquestionável que o Juiz poderá condenar o réu nas penas do art. 157 do CPP, sem necessidade de qualquer providência, já que "desde que os fatos imputados permaneçam inalterados, pode o Juiz dar-lhes definição jurídica diversa da constante da denúncia ou da queixa, mesmo sem aditamento dessas peças".18

Isso ocorre justamente porque o réu se defende dos fatos que lhe foram imputados, e não da simples capitulação jurídica que foi atribuída aos mesmos. Ademais, o Juiz não proferiu julgamento além do que foi pedido, apenas deu classificação diversa aos fatos narrados na denúncia.

Tal medida, denominada pela doutrina como emendatio libeli, encontra amparo no art. 383 do CPP, o qual determina que "o Juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave".

Por outro lado, se o membro do Ministério Público imputa ao réu a prática do crime de roubo, fazendo a classificação correta, e, afinal, apura-se que ele cometeu crime completamente diverso, como o estupro, o Juiz não poderá proferir condenação nem pelo estupro, já que não foi requerido pelo Promotor de Justiça, e muito menos pelo roubo, que sequer ocorreu.

Trata-se, nesse caso, de hipótese de mutatio libeli, devendo o Magistrado proceder de acordo com as determinações constantes do art. 384 e seu parágrafo único, do CPP, sob pena de proferir um julgamento ultra ou extra petita, em expressa desobediência ao princípio ne eat judex ultra petita patium.

1 Cf. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro, Revista Diálogo Jurídico, 2001, p. 13,24.

2A busca da Verdade no Processo Penal, 2002, p. 25.

3Processo Penal Constitucional, 1999, p. 239.

4 Cf. STF, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, HC 67.759/RJ, DJU, 01.07.1993, p. 13.142

5 Cf. STF, Tribunal Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, HC 69.599/RJ, DJU, 27.08.1993, p. 17020

6 A iniciativa instrutória do Juiz do Processo Penal, 2003, p.132.

7As nulidades no Processo Penal 1995, p. 68.

8 STJ, 6ª T., rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, Resp. 36.754-9/RJ, DJU, 03.04.1995.

9Processo Penal, 2000, p. 76, v. 1.

10 Informativo STF, n. 30, de 15-5-1996.

11 Informativo STF, n. 36, de 21-6-1996.

12 Cf. Presunção de Inocência e Prisão Cautelar, 1991, p. 37 e 39.

13 Processo Penal, 2002, p.42.

14 Gustavo HENRIQUE, Righi Ivahi BADARÓ, Ônus da prova no Processo Penal, 2003, p. 330.

15 Cf. Processo Penal, 2000, p.328, v. 1.

16 Marcos Alexandre Coelho ZILLI, A iniciativa instrutória do Juiz do Processo Penal, 2003, p. 140.

17Curso de Processo Penal, 2003, p.259.

18 Gustavo HENRIQUE, Righi Ivay BADARÓ, Correlação entre acusação e sentença, 2000, p. 166.


Autor: Clara Dias


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