Um dilema ético e três questões



Um dilema ético e três questões

Os gregos deixaram um dilema ético de difícil solução para a cristandade. Por mais bem intencionado que o cristianismo seja em relação à Humanidade e Jesus Cristo uma bela metáfora, a utilização da história como endosso dessa fé religiosa e como um instrumento da sua propagação, feriu gravemente o significado trivial do termo "verdade". A clareza dessa idéia é fundamental e precisa continuar sendo, para todos. Como se falar em verdade divina faltando com a verdade humana? Eis a primeira questão.
Para começar, o referido dilema sequer é admitido oficialmente, o que lhe dá uma inexistência aparente. Assim sendo, fica creditado à implicância dos ateus, os deserdados de Deus. Procura-se ganhar tempo enquanto não se sabe o que fazer. Todavia, para fazer justiça ao título de "ciência" a história deve cumprir as expectativas do entendimento contemporâneo que conta com ela como mais um instrumento de elucidação do que como um albergue das boas intenções passadas. Será que todos os historiadores contemporâneos concordam com a submissão da história à religião? Eis a segunda questão.
Não temos aqui a desbotada falácia "ciência x religião". Remotamente, ambas provinham do templo e a fé, como certeza íntima, nunca foi estranha à ciência e nem se apoquentava com esta. Ciência é uma palavra latina que significa "conhecimento". Portanto, o Homem antigo tinha conhecimento da importância e do peso da fé na sociedade, condensados na forma da religião.
Há quase dois milênios atrás, a disputa pelo poder cultural que conduziria a Humanidade teve suas necessidades humanamente satisfeitas. Ora, claro que as conseqüências disso eram impossíveis de serem perfeitamente avaliadas. O que fazer? Fazer assim mesmo e assim foi feito. A idéia de que só a mudança não muda é muito antiga, mas só servia como um lembrete diante de tamanha impossibilidade. Portanto, estavam perfeitamente cientes da margem de risco, isto é, não desconheciam que nesse tipo de empreitada a ousadia das transformações exigia o máximo alinhamento com a verdade, sem relativismos, ainda que a necessidade política reclamasse o lado prático. Pouca gente sabe que o mundo, hoje, só não é judeu por causa dos gregos.
Como sempre, foi o inesperado a se ocupar com a voracidade das mudanças que na época nem em sonho existia. O tempo era lento. Algo que sempre esteve presente no cotidiano e pouca importância lhe davam pela sua função utilitária, mudaria o mundo mais uma vez a tecnologia. Conceitos e notícias que velejavam preguiçosamente aos ouvidos distantes ganharam celeridade com a imprensa, o rádio, a televisão, a comunicação via satélite e a internet. Foi ficando cada vez mais difícil mentir e enganar. Foi essa a maior contribuição da tecnologia para o progresso moral da Humanidade.
As crenças religiosas que se dizem históricas, isto é, factuais em suas alegadas origens, experimentarão dissabores inexoráveis. A pedofilia, herança grega na Igreja Católica, que se ocultava desde sempre sob o manto púrpura, é notícia em toda parte do mundo. Algo insuportável para o judaísmo, a outra parte uma mesma cultura. As diferenças que surgem da privacidade revelada são as mais desconcertantes e inconciliáveis. Enfim, continua sendo mais fácil bater na Igreja de Pedro e Paulo. Por quê? Eis a terceira questão.
Esta Igreja surgiu do desentendimento em uma única instituição que se partiu. Obra de uma nova cultura que, contraditoriamente, buscava o entendimento entre todos os homens. Os gregos desprezavam os latinos que acabaram se tornando os novos ricos da religião. Uma nova Europa desabrochava com a civilização das suas tribos sob a tutela cristã. Uma realidade muito diferente daquela vivida pela Igreja grega na Ásia Menor, com um povo mais estruturado socialmente e condizente com os valores religiosos que ele mesmo havia criado. Como a Santa Inquisição se deu na Europa, para dobrar a rebeldia que não existia com tanta intensidade na Ásia Menor, a Igreja Católica Apostólica Romana acabou se convertendo no bode expiatório do cristianismo. Fato que mascara a questão.
A nossa cultura heleno-judaica e não judaico-cristã, como se pretende, possui dois suportes fundamentais na sustentação o seu aspecto religioso: teologia/filosofia e história. O primeiro é o mais forte e bem resolvido. Portanto, a argumentação no campo da teologia e da filosofia é preferencial. O treino na retórica ou na técnica do convencimento favorece tremendamente o estudante religioso. O segundo é o mais frágil fora da história da Igreja. Por isso, insistem sempre nela. Quando as evidências do lado da história pagã começam a incomodar, a estratégia é debandar para o outro, onde se sentem mais à vontade evocando uma sabedoria tão profunda que ninguém vê.
A defesa ideológica se faz de coração e a história não procura culpados, sim esclarecimentos. A carga emocional dessa mistura circunstancial entre a fé e a história trouxe dificuldades a ambas. O dilema ético surgido daí não pode e não deve continuar ignorado como se não existisse. É preciso desatar esse nó e pôr um ponto final nesse constrangimento para maior conforto íntimo das gerações futuras. A riqueza que ainda se oculta nessa história mal contada é inestimável e pode dar bons frutos às ciências humanas. Quero crer que, à medida que as evidências forem chegando ao conhecimento público, os antigos contos religiosos encontrarão seus lugares precisos na história do aprendizado humano para alívio da fé, que não precisa ser, necessariamente, religiosa.
O estímulo a pesquisas favorece a elucidação, que tem um papel fundamental na arte do aprimoramento de uma moralidade cheia de lacunas. Moral significa costume, e a nossa cultura Heleno-Judaica nada mais é do que a mistura de costumes antagônicos (gregos e judeus). Daí as suas contradições públicas e privadas. Portanto, a importância do conhecimento desse processo, que deu início a uma nova cultura e, posteriormente, a uma nova Era, não deve ser minimizada. O olhar livre de preconceitos propicia a assimilação do saldo positivo das experiências passadas e libera a Humanidade para o próximo passo, sem traumas, disputas e ressentimentos.

Autor: Ivani De Araujo Medina


Artigos Relacionados


História Da História: Civilização Ocidental

O Lado "b" Da Mesma História

Traído Pela Língua

A Igreja CatÓlica E Sua FundaÇÃo

O Mal-estar Do Cristianismo

A Conspiração Grega (substituição)

O Que é História?