Marx, Sociedade Civil e Estado em A Questão Judaica



Em sua obra de 1843, intitulada: A questão judaica, Marx envereda por um exame incisivo do intento almejado e dos rumos propostos por Bruno Bauer. A crítica marxiana traz a luz não apenas a contestação das concepções do filósofo idealista, pois a faz de modo típico, isto é, concomitantemente com a edificação de seu pensamento acerca do real, que na obra em questão aponta, sobre tudo, na direção da problemática do Estado, da distinção entre emancipação política e humana, assim como, desnuda a existência de uma cisão entre indivíduo e gênero humano, entre sociedade civil e Estado, cuja bipartição se torna mais perceptível, ou melhor, tem seu antagonismo direto e contundente no Estado politicamente emancipado.
Para tornar a contenda dos dois pensadores mais tangível e, essencialmente, a cognição marxiana do concreto, alcançada neste escrito; temos que voltar os olhos para a origem e pontos basilares da mesma.
A formulação de Bauer está emanando da realidade alemã da primeira metade do século XIX, período no qual seu país passa por uma situação de atraso em relação ao desenvolvimento capitalista de ponta; E em destaque aqui da fundamentação do Estado Alemão que estava associado à religião, ou seja, somente os devotos da religião adotada pelo Estado tinham seus direitos amparados.
Bauer ao analisar a questão judaica na Alemanha propõe a supressão da religião, não só do judaísmo, mas de toda religião, acreditando que desta forma haveria uma aproximação dos indivíduos e uma igualdade promovida pelo Estado, que seria o gestor da simétrica participação política, isto é, através do abandono da religião a emancipação seria obtida, sendo assim:

A forma mais rígida da antítese entre o judeu e o cristão é a antítese religiosa.Como se resolve uma antítese? Tornando-a impossível.E como se torna impossível uma antítese religiosa? Abolindo a religião.Tão logo o judeu e o cristão reconheçam que suas respectivas religiões nada mais são do que fases diferentes do desenvolvimento do espírito humano, diferentes peles de serpente com que cambiou a história, sendo o homem a serpente que muda de pele em cada uma destas fases, já não se enfrentarão mais num plano religioso, mas somente no plano crítico, cientifico, num plano humano.A ciência será, então, sua unidade.E, no plano cientifico, a própria ciência se encarrega de resolver as antíteses.(Marx, Karl. A questão judaica, 4.ed. Centauro.São Paulo,2002.p.15)

Em suma, nesses termos captamos o núcleo da proposta de Bauer; pois bem, a crítica de Marx se direciona em um primeiro momento, a desmontagem da idéia Baueriana que prega o abandono da religião como pressuposto preponderante para construção de um Estado laico.
Marx demonstra que Bauer incorre no erro de não distinguir emancipação política de emancipação humana, por não trazer a discussão para esses termos, não obstante, problematiza as condições para a emancipação política de forma equivocada, haja vista, que para tal emancipação não é necessário o abandono da religião, isso é atestado em alguns Estados já na época. Trata-se então de libertar o Estado da religião e não seus cidadãos, portanto "temos nisto a prova de que a existência da religião não se opõe a perfeição do Estado" (idem. P.20).
O filósofo idealista vê na religião um elo de contraposição entre os indivíduos, por isso, entende que a igualização dos homens, a emancipação deveria ocorrer pela supressão da mesma.Já para Marx:

A emancipação política do judeu, do cristão e do homem religioso em geral é a emancipação do Estado do judaísmo, do cristianismo e, em geral da religião.De modo peculiar sua essência, como Estado, o Estado se emancipa da religião ao emancipar-se da religião do Estado, isto é, quando o Estado como tal não professa nenhuma religião, quando o Estado se reconhece muito bem como tal.A emancipação política da religião não é a emancipação da religião de modo radical e isento de contradições, porque a emancipação política não é o modo radical e isento de contradições da emancipação humana.(idem).

Assim podemos perceber que a emancipação política possui um limite evidente, pois "o Estado pode livra-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre"(idem,p.21).Em virtude dessas últimas argüições explicitadas e de seu discernimento apropriado, chegamos a uma conclusão na qual, torna explicito como a desvinculação do Estado da religião não contribui para uma dissociação da última, da sociedade civil, ou do exaurir da sua presença.De modo que:

Conclui-se, finalmente, ainda quando se proclame ateu por mediação do Estado, isto é, proclamando o Estado ateu, o homem continua sujeito as cadeias religiosas, precisamente porque só se reconhece a si mesmo mediante um subterfúgio, através de um meio.A religião é, cabalmente, o reconhecimento do homem através de um mediador.O Estado é o mediador entre o homem e a sua liberdade.(idem).

A religião, portanto é uma mediação entre os homens, do mesmo modo que o Estado é a mediação entre a humanidade e sua liberdade, este é justamente o motivo pelo qual o Estado deve banir a religião de sua esfera, pois esta é a única forma de poder amparar, de assegurar os direitos de todos os indivíduos da comunidade, de se tornar um mediador efetivo, igualando os indivíduos a seu modo.
O fato dos homens se reconhecerem, se igualar e obterem liberdade por algo exterior, por intermédios e não diretamente, evidência um problema.Este por sua vez na sua condição de Estado emancipado politicamente, tem sua existência alicerçada no caráter concorrêncial da vida moderna, o que provoca uma bipartição na vida dos indivíduos, uma cisão entre vida pública e privada, entre Estado e sociedade civil.
Essa cisão se fundamenta na incapacidade dos homens de assumir sua forma plena, de atingir diretamente sua forma genérica humana, já que, está é, sua condição intrínseca de ser social. Logo sua condição natural é a interatividade, é a vida em sociedade; sintetizando, esta é a condição genérica dos homens, todavia o caminho histórico percorrido desembocou na contraposição dos indivíduos, na vida concorrêncial que nega sua qualidade genérica, em outras palavras, os homens não podem abdicar da sua vida social, no entanto, necessitam se contrapor uns aos outros.Dessa forma a reciprocidade dos indivíduos não pode ocorrer diretamente, cristalizando assim a presença dos fatores intermediários de tal relação.Podemos mencionar com tais; A religião que opera no plano da consciência, no reconhecimento dos homens perante Deus; O Estado cuja atuação e na esfera política e; O dinheiro que agi diretamente no cotidiano, isto é, no campo prático.
A origem do Estado é a contraposição entre os indivíduos e não sua harmonia.Enquanto mediador este deve em sua forma plena possibilitar a representação da vida coletiva, entretanto, para isso deve se eqüidistar dos membros da comunidade, extinguindo politicamente a propriedade privada.
Não obstante, a anulação política da propriedade privada, ao contrário e longe de destituir a propriedade privada, a pressupõe.O Estado anula a seu modo, as diferenças de nascimento, de status social, de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o status social, a cultura e a ocupação do homem de diferenças não políticas, ao proclamar todo membro do povo, a atender a estas diferenças, co-participante da soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado.(idem. P.22).

Quando o Estado assume está posição deixa as diferenças mencionadas acima fora da esfera política e não visa extirpa-las, pois "o Estado só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua generalidade em contraposição a estes elementos" (idem.).
O patamar atingido pelo Estado amplo traz a baila à separação já aludida. Individuo e gênero se colocam em condições oposta, pois o "Estado político acabado é, pela própria essência, a vida genérica do homem em oposição a sua vida material"(idem.p.23), ou seja, todas "as premissas desta vida egoísta permanecem de pé a margem da esfera estatal, na sociedade civil"(idem), em outras palavras, o homem se considera ente coletivo na sua comunidade política e um ser particular na sociedade civil."O homem, em sua realidade imediata/.../, onde passa ante si mesmo e frente os outros por um individuo real, é uma manifestação carente de verdade"(idem), Isto é, os homens competem uns com os outros na sociedade civil para levar sua vida, ao passo, que deterioram seu caráter genérico, atuando como indivíduos isolados, prescindindo de sua condição concreta de ser social.Já na vida pública, "no Estado, onde o homem é considerado como um ser genérico/.../, acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de uma generalidade irreal" (idem) Nesse outro lado da duplicação da vida o homem encontra sua condição genérica por intermédio de algo exterior e dissociada da legitimidade de suas atividades cotidianas.
Em outros termos, "a comunidade política usurpa o gênero humano dos homens reais e a pletora dos homens isolados, degradando e retendo para si toda a efetividade possível, privam a política de corpo; ou, visto em termos da individualidade: o homem real é roubado da cidadania, enquanto o cidadão é saqueado em suas forças sociais"(Chasin, José.A determinação ontonegativa da politicidade, Revista Ad Hominem Tomo III ? política.2000. P.149.)
Percebemos que os homens se igualam na esfera do Estado negando sua existência especifica, negam pela equiparação abstrata da propriedade privada, não imputando relevância às diferenças abissais entre os indivíduos, sendo assim, evidenciamos a impossibilidade do Estado em solucionar pela sua ampliação ou emancipação política - como propunha Bauer - os problemas efetivos da comunidade humana, pois este abdica de todas as diferenças existentes na sociedade civil pela igualização abstrata em apenas um nível, o dá propriedade privada.
O direito da propriedade privada molda também a declaração dos direitos dos homens, em termos claros e concisos, Tal declaração é a dos direitos do homem fragmentado, uma vez que o direito a propriedade, a igualdade, a liberdade e a segurança zelam pela dualidade da vida. Isso ocorre pelo fato do direito à liberdade, ser o da liberdade do indivíduo isolado, pois esse direito é o de fazer o que convier sem anular a liberdade do outro, ou seja, o indivíduo ? o ser social ? em contra nos outros indivíduos uma barreira a sua liberdade, os homens restringem ? se uns aos outros, portanto é a liberdade do isolamento, do indivíduo fragmentado. Enquanto o direito a segurança é o da guarnição, da defesa da propriedade privada. Já os dois primeiros direitos citados já foram anteriormente aludidos.
A superação da cisão entre individuo e gênero não pode advir da emancipação, da esfera política. A transformação deve irrevogavelmente ocorrer pela revolução social, pela modificação cabal do modo de produção da vida, haja vista, que somente através desta é possível à abolição de todos os mediadores da relação humana, isto é, da supressão da religião, do dinheiro, intermediário mais incisivo que encarna em si o trabalho, o dispêndio da destreza produtiva humana, e, do Estado, usurpador da capacidade do ser social de gerir diretamente sua vida por meio da interatividade dos homens, da reciprocidade de seu caráter genérico.
Concluímos que a emancipação humana deriva da transformação radical do modo de produção da vida, única maneira capaz de colocar o indivíduo, no mesmo eixo de seu gênero humano, visto que dentro da riqueza do intercâmbio social real e direto de homens concretos - forjado da associação livre de indivíduos livres - tornar-se factível a ampliação sem limites da individuação.
Autor: Wellington Oliveira Santos


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