A MECANIZAÇÃO DO DIA-A-DIA



Acorda às cinco da manhã que é para dar tempo de pegar um ônibus cedo a fim de chegar ao trabalho às oito da manhã. Já acorda mau humorado porque sabe que todo mundo irá fazer o mesmo que ele. Ainda zonzo, dirige-se à parada de ônibus, lotada. Assim como os ônibus. Assim como a avenida, lotada de carros, ônibus, bicicletas. Aquela mesma coisa de sempre, mas não pára para pensar nisso. Não, a letargia do sono ainda o domina. O freio brusco do motorista faz ele e metade do ônibus acordar do seu meio-sono. Dá uma olhada ao redor e guarda algumas das características das pessoas. Entra alguém vendendo balas por R$0,10. Será assim todo dia. Uma mãe que quer alimentar um filho. Um homem vendendo canetas para uma instituição contra drogas. Crianças tão pequenas mendigando. Será assim o dia todo. Todo dia. Chega ao trabalho. Aquele trabalho que o estressa, mas que se permite a tortura para conseguir uma renda. Oito horas depois está de volta a maldita parada de ônibus. Está cheia de novo. Uma hora, duas horas talvez, no processo de voltar para casa. O cansaço não o deixa (digamos que seja o cansaço...) ver que uma idosa entrou no ônibus e precisa de lugar. Não o deixa ver que alguém tenta inutilmente surfar dentro do ônibus lotado junto com a bagagem que trás. Olha para a janela e vê um homem sobre a bicicleta. Ele acompanha o curso do ônibus desde que subira, do lado de fora. Pensa consigo mesmo, pelo menos eu não estou numa bicicleta. Só que a bicicleta compete também com uma Pajero da Mitsubishi que acaba de passar. Logo se esquece da dor do outro para pensar em sua própria. Chega em casa. Janta. Põe-se agora a assistir as novelas que passam na televisão. Ficará ali até as onze da noite quando tudo irá se repetir.
É essa a rotina de muitos da classe média de nosso país, não? O próprio ritmo da vida faz com que não percebamos a prisão e o descaso que nos passa todos os dias. Fingimos inutilmente que somos as vitimas de todo o processo. No artigo de opinião escrito por Cristovam Buarque, A Pobreza dos Ricos, ao lê-lo me veio logo à mente esse processo de vitimalização que a classe média geralmente se impõe. É claro que o buraco é mais embaixo. Com medo, acreditamos que o universo do shopping Center é mais seguro. Que a presença do crime que nos rodeia todos os dias, aquele que esquecemos ou pelo sono, ou pelo cansaço, nos volta e não percebemos que somos os maiores provocadores do mesmo processo. Quem sabe nos refugiamos no Shopping Tacaruna, talvez?

Autor: Flávia Braga


Artigos Relacionados


NinguÉm

InexpressÃo

Cativeiro Iii

Um Dia De Domingo

Crise Com A Terceira Idade

Em Busca De RemÉdios Para A IrmÃ

Bom Dia!