DA JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL



DA JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Antônio Colaço Martins Filho
RESUMO ? O presente artigo objetiva analisar as decisões do Supremo Tribunal Federal publicadas entre 1997 e 2009 , nas demandas que pleiteiam decisão judicial de natureza mandamental que ordene o Poder Executivo a implementar condições objetivas para o exercício dos direitos fundamentais sociais a prestação. Busca-se, portanto, saber se e de que forma - na ótica da Corte Suprema, revelada a partir do estudo de 52 (cinqüenta e duas) decisões - os direitos fundamentais sociais que estipulam obrigação de fazer do Estado são exigíveis judicialmente.
Palavras-chave: Justiciabilidade. Direitos fundamentais. Direitos sociais. Supremo Tribunal Federal. Dignidade da pessoa humana. Separação de poderes.
INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo consiste em extrair os vetores doutrinários fundamentais da jurisprudência do órgão máximo do Poder Judiciário e enuclear os seus parâmetros e critérios constitucionais e doutrinários, para dar resposta às seguintes questões: 1) Os direitos fundamentais sociais são direitos públicos subjetivos? 2) Os direitos a prestações positivas do Estado são passíveis de garantia pela via judicial? 3) Até onde existe discricionariedade dos Poderes Executivo e Legislativo na alocação de receitas? 4) A formulação de políticas públicas está sempre no âmbito de discricionariedade do ente público? 5) O Poder Judiciário pode criar políticas públicas? 6) Pode o Poder Judiciário determinar a implantação de condições fáticas para efetivar direitos fundamentais sociais? 7) Se e em que casos afigura-se legítima a invocação do princípio da reserva do financeiramente possível como fator obstativo da exigibilidade judicial dos direitos fundamentais sociais?
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Hegel concebe o pensamento como um vir-a-ser dialético, onde "todo elemento da realidade, estabelecendo-se a si mesmo absolutamente (tese) e não esgotando o absoluto que é um momento, demanda o seu oposto (antítese), que nega e o qual integra, em uma realidade mais rica (síntese), para daqui começar de novo o processo dialético" (PADOVANI e CASTAGNOLA, 1978: 388). Pode-se enxergar, nesse contexto, a ideologia estatolátrica do totalitarismo como antítese do individualismo burguês do liberalismo (tese). Por outro lado, enquanto o totalitarismo (antítese) baseava-se na concepção estatolátrica de que os indivíduos são instrumentos que servem ao coletivo , as sociedades democráticas ocidentais, após a Segunda Guerra Mundial (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008:153; BULOS, 2008: 390) acolhem abertamente o antropocentrismo, situando o homem como o próprio fim a que serve o Estado e acolhendo o vetor da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado juridicamente constituído pelas Cartas Constitucionais e, portanto, valor supremo a ser protegido e fomentado pelo aparato estatal, para que se alcance, no contexto da dialética hegeliana, uma "realidade mais rica"(síntese). Fiel à citada evolução e inspirada, principalmente, na Lei Fundamental de Bonn de 1949 , a Constituição de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (inciso III, artigo 1º).
Repousa na doutrina de Kant a mais remota menção ao precitado valor, e é desse manancial que se abeberaram os filósofos, juristas e constituintes da segunda parte do século XX no resgate do homem ao centro das sociedades modernas. Para o filósofo, o homem excele de tudo o que mais existe, na medida em que tem liberdade no exercício da razão prática para construir uma personalidade que é única, sendo impossível atribuir-lhe preço ou substituí-lo por algo equivalente, pois tem fim em si mesmo, valor interno, ou seja, dignidade (KANT, 2004: 65).
Firme em Kant, a doutrina majoritária, respaldada, ademais, pelas mais importantes Cortes Constitucionais, confere à dignidade da pessoa humana valor "pré-constituinte", de hierarquia "supra-constitucional", classificando como "princípio absoluto", "metajurídico" (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008:150.) ou "sobreprincípio" (BULOS, 2009: 390). Não obstante, juristas do quilate de Robert Alexy negam o caráter absoluto do referido valor, sustentando a possibilidade de sopesamento deste com outros valores e bens no caso concreto. Ocorre que, com a devida vênia, o atual patamar axiológico das democracias ocidentais não permite tal ilação e parece albergar o precitado valor com predominância em relação aos demais.
À dignidade da pessoa humana vinculam-se, umbilicalmente, os direitos fundamentais , numa relação instrumental em que estes são ferramentas para a consecução daquela. Vale ressaltar que alguns direitos fundamentais, por sua natureza e de acordo com os valores de cada sociedade, relacionam-se de forma mais estreita com a dignidade da pessoa humana. A esse conjunto de direitos "sem os quais a dignidade da pessoa humana é confiscada" , dá-se o nome de "mínimo existencial", consistindo em patamar jurídico mínimo, imprescindível para uma vida condigna.
Buscando dar máxima amplitude ao princípio fundamental, a Constituição Federal de 1988 teceu uma longa e sinuosa malha normativa, dando rica textura a direitos fundamentais de todas as gerações, destacando-se, outrossim, pelo disciplinamento dos direitos sociais, "categoria de direitos que assinalam o primado da Sociedade sobre o Estado e o indivíduo, ou que fazem do homem o destinatário da norma constitucional." (BONAVIDES, 2000: 333).
Entrementes, para que as promessas constitucionais não redundassem em promessas sem compromisso com a realidade, proferidas no apagar das luzes de um regime autoritário, a Carta Maior previu novas garantias fundamentais, a saber: mandado de injunção e mandado de segurança coletivo e estatuiu a aplicabilidade imediata das normas de direitos e garantias fundamentais (parágrafo 1º, artigo 5º).
Nesse contexto, em que se chocam as realidades estática (texto normativo) e dinâmica (realidade) da constituição (BONAVIDES, 2000: 338), grassam no Supremo Tribunal Federal, pela via difusa de controle de constitucionalidade, ações onde se pleiteia ordem judicial de natureza mandamental que impila o poder público a disponibilizar as condições objetivas necessárias e suficientes para efetivar direitos fundamentais sociais, invocando-se, como fundamento jurídico, além da dignidade da pessoa humana, os direitos: da criança e do adolescente (artigo 227), à educação (artigo 208) e à saúde (artigo 196 e seguintes), englobando, com menos expressividade, o direito à assistência (artigo 203).
Tratando-se de pretensões embasadas em direitos fundamentais, a subjetividade, a eficácia e a aplicabilidade das normas constitucionais são pontos nodais para se entender a questão da justiciabilidade ou judicialização desses direitos, a saber, a possibilidade de se exigir que o Poder Judiciário garanta a efetividade dos mesmos .
DOS DIREITOS SUBJETIVOS, DA JUSTICIABILIDADE, DA EFICÁCIA E DA APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Primeiramente, consigne-se que a fundamentalidade dos direitos fundamentais não implica, no entendimento da doutrina majoritária e da jurisprudência, que esses sejam, sempre e de forma automática, direitos subjetivos, aqui entendidos como aqueles que atribuem algo que o seu titular pode exigir do destinatário (CANOTILHO, 2003: 1254).
Com efeito, quando se transita no campo das normas de direitos fundamentais, vislumbram-se duas hipóteses de conformação: a) quando a norma constitucional define que o indivíduo (titular) tem direito a um determinado ato (objeto do direito) em face do Estado (destinatário), que, por sua vez, tem o dever de praticar esse ato (CANOTILHO, 2003: 1254), trata-se, sem dúvida, de um direito fundamental subjetivo, cujo traço essencial consiste na relação triádica (ALEXY, 2008: 194) ou trilateral (CANOTILHO, 2003: 1254) acima descrita; b) quando a norma atribui deveres ao Estado (vinculação objetiva) sem definir titulares concretos, prescrevendo apenas um dever ao destinatário está-se diante de "normas de direitos fundamentais objectivas" (CANOTILHO, 2003: 1254), caso em que não se pode falar em direito subjetivo (CANOTILHO, 2003: 1254).
Como exemplos de normas que denotam estruturalmente a presença de direitos fundamentais sociais subjetivos, têm-se os artigos 196, 205, 208 ("caput" e parágrafo 1º), e 227 da Constituição, de onde se extraem os elementos: titular (todos, criança e adolescente), destinatário (Estado, principalmente), e objeto do direito (saúde, educação, vida, dignidade etc).
Vale frisar que, muitas vezes, as dimensões objetiva e subjetiva não se excluem, mas se complementam (MENDES; COELHO; BRANCO. 2008: 266), havendo decisão da Suprema Corte nesse sentido .
Esclarecido que as normas de direitos fundamentais sociais podem veicular ou não direitos subjetivos , vale esclarecer que os direitos subjetivos não comportam, necessariamente, a justiciabilidade, não tendo como qualidade imanente a exigibilidade judicial.
Nesse passo, embora não seja possível oferecer resposta definitiva para a questão da justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais que demandam uma prestação do poder público, o Supremo Tribunal Federal, considerando a natureza das normas que os albergam e a essencialidade no que tange ao desenvolvimento da personalidade tem reconhecido que: a) os direitos fundamentais sociais à saúde, à educação e os direitos fundamentais da criança e do adolescente, englobando as políticas constitucionais deles decorrentes, constituem direitos públicos subjetivos ; b) há direitos públicos subjetivos a prestações positivas do Estado, em princípio, passíveis de garantia pela via judicial. Por todos, colaciona-se o seguinte excerto:

Dessa forma, o ensino fundamental obrigatório e gratuito em escola próxima à residência do menor constitui direito público subjetivo a ser exercitado na hipótese de violação. E, segundo a lição de José Afonso da Silva, tal direito é plenamente eficaz e de aplicabilidade imediata, isto é, direito exigível judicialmente se não for prestado espontaneamente (Curso de Direito Constitucional Positivo, Ed. Malheiros, 8ª ed., págs. 279/280). Havendo violação a direito líquido e certo, cabe ao judiciário reparar a ofensa a fim de conferir ao interessado aquilo que a Constituição e a lei lhe asseguram. O juiz deu ao caso solução adequada, não tendo a sentença o condão de ocasionar ingerência do poder judiciário na esfera da administração pública, mas apenas o de garantir a efetivação do dever constitucional de fazer respeitar-se direito público subjetivo. Ao descumprir tais preceitos legais a autoridade violou direito líquido e certo da criança. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal ? Agravo de instrumento nº478367 ? SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJU 10/08/2004)

As condições em que o sodalício reconhece e impõe essa exigibilidade variam de acordo com as nuances de cada demanda, considerando, principalmente, os princípios da separação de poderes, e da reserva do possível, temas estudados adiante.
Dando continuidade às distinções conceituais preliminares, tem-se que a aplicabilidade concerne à possibilidade de a norma constitucional produzir efeitos sem necessidade de legislação infraconstitucional integradora, falando-se em aplicabilidade direta ou imediata quando a norma incide diretamente sobre situação concreta nela prevista .
Concebida à sombra de um período enodoado pelo inescrupuloso vilipêndio aos mais básicos direitos fundamentais e, conseqüentemente, à dignidade da pessoa humana, a Lei Fundamental de 1949 adotou o princípio da aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais, no que foi seguida pelas Constituições da Espanha (1976), de Portugal (1978) e do Brasil (1988) (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008: 251), onde se sagrou sob a seguinte fórmula: "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata." (parágrafo 1º, artigo 5º).
A despeito da literalidade do parágrafo 1º, artigo 5º da Carta Magna de 1988 e do significado, sinteticamente exposto, do princípio da aplicabilidade imediata, doutrina e jurisprudência rejeitam a rigidez do enunciado e adotam o "princípio da máxima efetividade" (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008: 111; HESSE, 1998: 68) ou "princípio da eficiência" (CANOTILHO, 2003: 1224), cuja aplicação no campo dos direitos fundamentais traduz-se na seguinte orientação: "no caso de dúvidas, deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais." (CANOTILHO, 2003:1224). Nesse sentido também se posiciona a doutrina majoritária (PAULO e ALEXANDRINO, 2007: 105; e SARLET e FIGUEIREDO, In: SARLET e TIMM (org.), 2008: 17).
Quanto à questão da eficácia, merece destaque, para os fins desse artigo, a festejada classificação de José Afonso da Silva, que buscou parâmetros racionais de classificação das normas constitucionais segundo o grau de eficácia e aplicabilidade das mesmas, sendo adotada pelo Supremo Tribunal Federal em muitos dos seus julgados. O catedrático da Universidade de São Paulo propõe a adoção de três categorias básicas: a) "normas constitucionais de eficácia plena": que podem ser aplicadas independentemente de normas integrativas; b) "normas constitucionais de eficácia contida": que podem ser aplicadas diretamente, podendo, contudo, sofrer restrição em seu conteúdo por disposição infraconstitucional superveniente; e c) "normas constitucionais de eficácia limitada": onde não há incidência direta da norma constitucional, mas não se nega a existência de eficácia jurídica imediata, direta e vinculante.
Seguindo a lição de José Afonso da Silva, as normas constitucionais de eficácia limitada c) podem ser de duas espécies: c.1) "normas de princípio institutivo", que instituem regras estruturais de entidades e órgãos (LENZA, 2008: 108); e c.2) "normas de princípios programáticos", que estabelecem, como sugere a denominação, compromissos ou programas a serem desenvolvidos, principalmente, pelo Estado.
Embora o Supremo Tribunal Federal entenda que não há um critério objetivo para identificar normas auto-aplicáveis e apartá-las radicalmente das normas não auto-aplicáveis (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008: 28), a tendência doutrinária é no sentido de considerar que as normas de direitos fundamentais sociais são "derivadas" (CANOTILHO, 2003: 477 e 478) e não auto-executáveis (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008: 252 e 262; LENZA, 2008: 108; CANOTILHO, 2003: 477, 478, 519, 520). As normas de direitos fundamentais sociais seriam, portanto, programáticas , ou seja, demandariam a elaboração de outras normas para consecução dos seus programas de cunho social.
DA DISCRICIONARIEDADE
Robert Alexy (ALEXY, 2008: 196-202) deduz, com lógica impecável, o instituto da discricionariedade a partir do desmembramento do "direito a algo" em duas categorias: a) "direito a ações negativas (direitos de defesa)"; e b) "direito a ações positivas" . Seguindo o desenvolvimento lógico de Alexy, pela natureza dos direitos a ações negativas, todas as medidas que entrem em rota de colisão com o direito em questão são vedadas. Na outra extremidade, encontram-se os "direitos a ações positivas" que podem ser de duas espécies: b.1) "normativa", ou "direito a prestações em sentido amplo", que se satisfaz por meio de uma atividade de cunho legislativo; e b.2) "fática", ou "direito a prestações em sentido estrito", que demanda prestações estatais para saírem do plano das promessas e ingressarem no plano fático, de forma que várias medidas podem ser tomadas para a consecução do fim almejado pela norma constitucional . É aí onde reside a discricionariedade do administrador, haja vista que, se várias medidas são adequadas para se atingir um resultado, afasta-se, logicamente, a obrigatoriedade de todas elas. Existe forte orientação doutrinária no sentido de que, via de regra, a Administração Pública tem discricionariedade (liberdade na eleição de critério de conveniência e oportunidade) na escolha dos meios que reputa adequados para proteger e fomentar determinado direito a prestação (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008: 267 e 268; ALEXY, 2008: 463; CANOTILHO, 2003: 945).
DA SEPARAÇÃO DE PODERES
A idéia de separação de poderes ? cujo entendimento é essencial para o estudo ora empreendido - encontra em Aristóteles a mais antiga referência de que se tem notícia (ARISTÓTELES, 2000: 230). Atribui-se a John Locke, por outro lado, a primeira sistematização doutrinária acerca do tema (DALLARI, 2005: 218). O inglês identificou "quatro funções fundamentais" (DALLARI, 2005: 218), a saber, funções "legislativa", "executiva", "federativa", e "prerrogativa", sendo a primeira atribuída ao Parlamento, e as três últimas destinadas à Coroa (CANOTILHO, 2003: 580). Foi Montesquieu, por sua vez, quem distribuiu diferentes funções a poderes independentes e harmônicos entre si. Para Montesquieu, a separação de poderes faz-se necessária na medida em que permite que cada indivíduo cultive o sentimento de segurança, sem o qual não existe liberdade (MONTESQUIEU, In: MORRIS (org.), 2002: 166-167), tendo, portanto, como fim garantir a segurança e liberdade do súdito, na perspectiva político-histórica de reação ao Absolutismo, esquema organizatório que concentra o poder nas mãos de um monarca, em detrimento das liberdades individuais.
O princípio da separação de poderes é um dos cânones do movimento constitucionalista, um dos pilares do Estado moderno, não sendo por acaso que, a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776 (DALLARI, 2005:220), a Constituição dos Estados Unidos de 1787, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (DALLARI, 2005:220) e a Constituição Francesa de 1848 (BONAVIDES, 2000: 509) positivaram o festejado princípio em seus respectivos textos. A Constituição Federal de 1988, não discrepando dessa tradição, enunciou o princípio no artigo 2º , e o elevou à categoria de "cláusula pétrea" no inciso III, parágrafo 4º, artigo 60, o que equivale a blindar o princípio contra reformas constitucionais oportunistas, inclinadas a levar à ruína um valor de tão destacada importância para as sociedades ocidentais.
Montesquieu sabia que, na prática, as funções distribuídas segundo o princípio ora enfocado se intercalariam, tornando-se impossível conter as funções estatais em compartimentos herméticos, estáticos e não comunicáveis (DALLARI, 2005: 221), por isso, o pensador admitiu exceções ao esquema da repartição de poderes, prevendo uma combinação de poderes, onde, excepcionalmente, um poder pode exercer atribuições atípicas (MONTESQUIEU In: MORRIS (org.), 2002: 167 e 168).
A despeito do papel crucial que exerceu na oposição ao Absolutismo e da essencialidade e atualidade do enunciado para a preservação do Estado de Direito, não se pode negar que se sagraram outros vetores que ombreiam com o princípio da separação de poderes, a exemplo dos direitos e garantias individuais, bem como dos demais direitos e garantias fundamentais, emanações da dignidade da pessoa humana. Assim, para a solução das questões jurídico-constitucionais que tratam da exigibilidade de direitos fundamentais sociais propõe-se a releitura do princípio, através do uso dos pontos de vista interpretativos (tópicos), principalmente, dos princípios da "unidade da Constituição" e da "concordância prática ou da harmonização" . Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal e a doutrina dão sinais da necessidade de oxigenação desse princípio por meio da sua ponderação com outros enunciados constitucionais (CANOTILHO, 2003: 580; e MENDES; COELHO; BRANCO, 2008: 97). De fato, se é verdade que os Poderes Legislativo e Executivo têm a liberdade política para definir a forma de satisfação dos direitos sociais, por outro lado, deve-se também consignar que há limites constitucionais e lógicos à precitada discricionariedade.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal reconhece e sacramenta a existência de políticas públicas constitucionalmente priorizadas, que limitam a discricionariedade, principalmente no que diz respeito aos direitos sociais fundamentais, cumprindo papel fundamental na tentativa de estabelecimento de parâmetros para a solução das questões jurídico-constitucionais que envolvem a judicialização dos direitos sociais. É o que transparece o excerto abaixo colacionado:

Esse dado pode ser importante para a construção de um critério ou parâmetro para a decisão em casos como este, no qual se discute, primordialmente, o problema da interferência do Poder Judiciário na esfera dos outros Poderes. O primeiro dado a ser considerado é a existência, ou não, de política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte no processo. Ao deferir uma prestação de saúde incluída entre as políticas sociais e econômicas formuladas pelo Sistema Único de Saúde, o judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento. [...]

Conclui-se, portanto, com espeque na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que a discricionariedade, no campo da definição de políticas públicas sociais foi clara e propositalmente reduzida pela Constituição Cidadã, de forma que Parlamento e o Administrador estão constitucionalmente obrigados, como conseqüência do Princípio da Supremacia da Constituição, a elaborar políticas públicas levando em conta a escala prioritária de bens jurídicos a serem defendidos e promovidos, segundo a Lei Maior.
Outrossim, a Suprema Corte tem entendido que, embora os Poderes Executivo e Legislativo tenham discricionariedade na alocação de receitas, essa liberdade encontra diretrizes e limites no próprio texto constitucional que a embasa, devendo-se observar, portanto, as prioridades constitucionalmente definidas , inclusive quando da elaboração dos orçamentos .
Assim, com arrimo na lição de Alexy que, nesse ponto, anda lado a lado com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conclui-se que: se a única medida efetiva para a proteção e fomento do direito em questão consiste na implementação de determinada condição fática (disponibilização de leitos de UTI, construção de unidade para recuperação de jovens infratores, fornecimento de medicamento etc), então, o Poder Judiciário pode, em princípio, determinar ao Poder Executivo que implemente as condições objetivas necessárias e suficientes para a efetividade de direitos fundamentais sociais, mormente quando se trata de política constitucionalmente prevista . A posição do Pretório Excelso, obviamente, é sensivelmente diversa quando se vislumbra outro meio eficaz para o tratamento da moléstia .
Conforme se observa, o Princípio da Separação de Poderes é confrontado com os demais princípios, segundo a técnica da ponderação de princípios, sempre tendo em vista os "princípios da unidade da constituição", da "concordância prática" e da proporcionalidade para que se chegue a uma solução que preserve e otimize ao máximo todos os princípios entabulados.
Contudo, não é apenas a discricionariedade que encontra seus limites na Lei Fundamental; também a justiciabilidade ou exigibilidade dos direitos fundamentais sociais tem suas arestas aparadas pela "Lex Legum". Assim, a questão que versa acerca dos limites do Poder Judiciário na justiciabilidade de direitos fundamentais sociais encontra resposta no "princípio da correção funcional", na "teoria do núcleo essencial" (CANOTILHO, 2003: 559) e no princípio da reserva do possível, adiante explanado.
DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL
Fruto da experiência jurisprudencial alemã da década de 1970, o princípio da reserva do possível ("Der Vorbehalt des Möglichen") consiste em ressalva à efetividade dos direitos fundamentais (SARLET e FIGUEIREDO, 2008: 29 e 30). Sendo uma ressalva ou um temperamento à efetividade, esse enunciado relaciona-se com o postulado da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais ("as normas de direitos fundamentais devem ter a máxima eficácia e efetividade possíveis") (SARLET e FIGUEIREDO, 2008: 17). Desse relacionamento extrai-se o enunciado que dá o tom das discussões jurídico-constitucionais que permeiam a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no que concerne à justiciabilidade de direitos fundamentais sociais: a efetividade dos direitos sociais a prestações é condicionada pela disponibilidade financeira (material) e jurídica do Estado, segundo os princípios da proporcionalidade e razoabilidade (SARLET e FIGUEIREDO, 2008: 30).
Parte-se do entendimento de que as normas que estabelecem direitos sociais a prestação, por conseqüência de sua natureza, demandam custos, arcados pela sociedade. Assim, conclui-se - evidenciando o aspecto material do princípio - que o indivíduo não pode exigir da coletividade da qual faz parte uma prestação que esta não tem condições materiais de atender, tendo-se em vista o postulado lógico segundo o qual não se pode dar o que não se tem (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008: 260).
No aspecto processual, a boa doutrina (SARLET e FIGUEIREDO, 2008: 32) e a jurisprudência posicionam-se no sentido de que, sendo uma exceção, uma reserva, existe presunção em favor da efetividade das normas de direitos fundamentais sociais a prestação. Destarte, recai sobre o ente público o ônus de comprovar a efetiva falta de recursos financeiros para atender o direito a prestação. Não se pode, entretanto, dizer que o Pretório Excelso adota pacificamente esse entendimento.
Se a indisponibilidade material consiste na inexistência de meios financeiros para custear os direitos a prestação, a indisponibilidade jurídica capaz de permitir a evocação do princípio da reserva do possível consiste na ausência de previsão orçamentária daquele valor, que pode até existir nos cofres públicos, mas não pode ser, em princípio, manejado pelo administrador, por falta de previsão orçamentária (princípio da legalidade orçamentária). A questão não é estranha ao Supremo Tribunal, que enxerga na indisponibilidade jurídica argumento razoável, mas não intransponível na questão da justiciabilidade dos direitos sociais .
Salta aos olhos, nesse átimo, problema intimamente conectado com a discricionariedade e que resulta da visão econômica do direito : os recursos são limitados (aspecto material); a limitação de recursos implica na necessidade de escolha dos bens a serem contemplados, atividade que a Constituição reserva aos poderes legislativo e executivo; disso decorre que algumas áreas não serão contempladas pelo orçamento (indisponibilidade jurídica). A liberdade nessa escolha de meios, todavia, encontra limites no próprio texto constitucional, de forma que o princípio da reserva do possível deve se conformar, no caso concreto, a outros princípios constitucionais.
A terceira dimensão que se aufere da reserva do possível liga-se ao secular princípio da proporcionalidade, amplamente utilizado pelo Pretório Excelso e explicado pela doutrina a partir de três elementos (BONAVIDES, 2000: 360 e 361): a) adequação, que consiste na idoneidade de um meio para a consecução de um determinado fim; b) necessidade, que se relaciona com escolha do meio estritamente necessário, leia-se, aquele que traga menos sacrifício ao princípio restringido; e c) proporcionalidade em sentido estrito, que, para alguns, confunde-se com o princípio da razoabilidade, que implica na escolha das medidas que melhor se coadunem com os interesses (princípios) em jogo. Nessas questões, definido que princípio vai prevalecer no caso concreto, o princípio da proporcionalidade vai informar ao operador do direito: a um, se as medidas pleiteadas são capazes de satisfazer os direitos mencionados; a dois, que meios implicam o menor sacrifício ao princípio não prevalecente; e, por fim, quais desses meios melhor atendem aos interesses em jogo. Trilhando esse caminho:

Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida. Por tal motivo, indefiro o pedido formulado pelo Estado de Santa Catarina [...]

O princípio da proporcionalidade, no seu aspecto necessidade, encontra importante aplicação no campo da justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais, na medida em que as decisões da Corte Suprema tomam em consideração a condição financeira do autor, de forma que se o titular do direito pleiteado tiver como garantir o próprio direito, sem prejuízo de outras necessidade essenciais, não se justifica o sacrifício da coletividade. Há doutrina (SARLET e FIGUEIREDO, 2008: 44) e jurisprudência nesse sentido .
Assim, conquanto não se possa falar em fórmulas fixas para solução dos casos concretos, as decisões do Supremo Tribunal Federal analisadas revelam que o princípio da reserva do possível tem o condão de afastar a exigibilidade judicial dos direitos fundamentais sociais quando: a) a questão não diz respeito a políticas públicas constitucionalmente previstas; b) o poder público tem êxito na comprovação de que não há reservas financeiras disponíveis; c) o autor tem condições de arcar com os custos para efetivação desse direito, sem que, para isso, precise se despojar do patrimônio mínimo para uma vida condigna.
CONCLUSÃO
O artigo, de forma sintética, revelou que o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais, fundamentando suas decisões, basicamente, no postulado da Dignidade da Pessoa Humana, sem descurar dos princípios da Separação dos Poderes e da Reserva do Possível, em leitura que harmoniza e dá efetividade aos mandamentos acima mencionados através do Princípio ou Procedimento da Proporcionalidade (MARCEL, 2006: 119). Embora tenham sido indentificados alguns parâmetros, a questão não pode, entretanto ser posta em termos absolutos, de modo que a resposta acerca da judiciabilidade só pode ser dada em vista do caso concreto.
THE JUSTICIABILITY OF THE SOCIAL FUNDAMENTAL RIGHTS IN THE FEDERAL SUPREME COURT OF JUSTICE
ABSTRACT ? This article intends to analize the Federal Supreme Court of Justice decisions published between the years of 1997 and 2009, in actions that aimed to obtain judicial orders to impel the Executive to promote objective conditions for the exercise of social fundamental rights. The goal is to know if and how - in the view of the Constitutional
Court, revealed through the study of 52 decisions - the social fundamental rights that establish to-do obligations are demandable.
Keywords: Justiciability. Human rights. Social rights. Constitutional Court. Human dignity. Separation of powers.
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Autor: Antonio Colaço Martins Filho


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