Regaço



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Liberdade


SALVADOR. Após a agitação da primeira noite de carnaval, Mariana contemplava da sacada do apartamento os primeiros raios do sol que cintilavam sobre a névoa formada pelas ondas encapeladas que batiam nos rochedos do quebra-mar. De repente a porta da sala se abriu e projetou Elias, o marido, bêbado, aos trambolhões. Entrou, apagou o cigarro no cinzeiro e tartamudeou: "Mariana, se tiver alguma reclamação a fazer, escreva na minha agenda..." Mal acabou de falar, arreou no tapete e passou a roncar, exalando nicotina e álcool por todos os poros. Em silêncio, pois sabia que qualquer reclamação seria inútil, deu de ombros, foi para o quarto de dormir, debruçou-se a meio corpo fora da janela, respirou ar puro, olhou para a praia e viu alguns casais de namorados entregando-se aos meandros da sexualidade. Uma loira de cabelos longos e seios volumosos instigava o parceiro, remexendo os quadris e mordendo o lábio inferior. Deitada em decúbito ventral, uma garota fazia sexo com o namorado. Excitada com o visual, Mariana foi para a cama, despiu-se e passou a fazer afagos em si mesma... Após o relaxamento daquele momento sublime, apanhou o controle remoto e ligou a tevê: passava uma reportagem sobre o carnaval na Bahia. "O carnaval é uma celebração da carne, quando as repressões e proibições da vida normal já não existem, e de repente todas as formas de prazer são possíveis", disse um folião.
Passava de nove horas da manhã quando o interfone trilou: era o porteiro do prédio avisando que o carro o qual levaria Elias ao aeroporto havia chegado. Elias, competente engenheiro de uma empresa prestadora de serviços à Petrobras, ficaria duas semanas, em alto-mar, numa plataforma de prospecção de petróleo. Após o banho, enquanto selecionava roupas para a viagem, ele lamentava a infelicidade de ter sido sorteado para trabalhar no período carnavalesco.
? Eu não queria viajar, mas a obrigação é maior.
? Também não gostaria que você viajasse. Sentirei uma falta enorme...
Ele colocou a valise no ombro e perguntou:
? Você decidiu se vai passar o carnaval em Porto Seguro?
? É claro que vou.
? Por mim...
? Não me diga que passou pela sua cabeça que eu ficaria em Salvador?
Ele não respondeu e mirou o elevador que acabara de parar de forma silenciosa.. Despediram-se. Ele se foi.
O telefone trinava quando ela retornou ao apartamento: era a secretária da Clínica Pedro de Moura avisando que o resultado dos exames médicos estava pronto. Ao longo dos últimos dias, de férias, Mariana havia feito um check up a pedido da empresa em que trabalhava, uma multinacional americana distribuidora de cosméticos. Era secretária.
A manhã passou-se rapidamente. Era meio-dia e meia quando seu apartamento foi invadido por um som ensurdecedor de um trio elétrico, arrastando milhares de foliões, rumo à praça Castro Alves. Em meio à chuva de confetes e serpentinas, aglomeravam-se centenas de pessoas que dançavam ao som do frevo de Gil, Caetano e outros ilustres.
O carnaval em Salvador começa na quinta e vai até a Quarta-Feira de Cinzas, numa mistura de magia, alegria e axé. São mais de vinte quilômetros de ruas e praças interditadas e embelezadas por mulatas, negras, louras e mestiças embaladas pela música baiana, as quais exibem lindos corpos seminus, como se estivessem em constante clímax sexual. A quase-nudez comanda a maior festa brasileira, rememorando as celebrações do gozo, da alegria e do prazer dos tempos de Sodoma e Gomorra, dos desbragamentos das farras babilônicas e das arruaças saturnais em Roma. Milhares de turistas de toda parte do Brasil e do exterior juntam-se a grupos de lésbicas, gays, prostitutas, travestis, em excitação sexual morbidante, fazendo da primeira capital brasileira uma cidade lasciva. Salvador rende-se ao frenesi do mulherio, que em molejos sensuais proporciona belo espetáculo.
Ao ver aquele cenário, Mariana desceu as escadas e meteu-se na multidão: Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu... Com os braços esticados para cima, vestida num top branco tomara-que-caia, sacudia o bumbum, balançava os seios. Com 23 anos, olhos verdes, morena bronzeada de 1,70 de altura, cabelos castanhos cacheados até o pescoço, era sinônimo de sensualidade e sedução. Não demorou cinco minutos, um folião meteu-lhe no nariz um lenço embebido de lança-perfume: teve a sensação de levitar, e o sol pareceu incrivelmente mais brilhante.
Após duas horas de folia, retornou ao apartamento, tomou banho, meteu-se numa saia jeans, vestiu camiseta branca, símbolo no peito da campanha de prevenção do câncer de mama, pegou o carro e foi à clínica. Chegou em meia hora. Ao entrar, percebeu que havia cerca de dez pessoas sentadas, envoltas num semblante de preocupação, à espera de atendimento. Ela foi até o balcão de informações.
? Qual é o seu nome? a atendente indagou.
? Mariana Velasquez.
? Seus exames estão com o médico; ele está atendendo a uma senhora, mas você poderá entrar no consultório tão logo ela saia.
Na sala de espera, recostado na parede, havia um imenso sofá em forma de ele, e, no centro, cadeiras de vime forradas de almofadas verdes, uma de frente para outra, numa das quais Mariana sentou-se ao lado de uma senhora de 40 anos, um pouco mais ou menos, acompanhada da filha adolescente, grávida.
? Sua filha vai ser mãe bem jovem.
? Infelizmente; se ela tivesse me ouvido, não estaria nessa situação.
? A senhora não queria ser avó?
? Olhe, moça, namorar homem casado é perda de tempo.
? Cala a boca, mamãe; vai contar minha história para o mundo todo, é?
? Avisei a você, minha filha, homem casado só tem passado, pouco presente e nenhum futuro.
Mariana riu, mas não opinou. Enquanto isso, aproveitando-se da descontração daquela conversa, um certo rapaz, sentado à frente, com uma fisionomia feia, mas expressiva, tinha as coxas de Mariana sob a mira e não perdia um lance sequer quando ela cruzava e descruzava as pernas. É certo que, embora tentasse, ela não conseguia esconder o branco da calcinha. O rapaz estava em transe, com os olhos dardejando de desejo.
Finalmente Mariana foi autorizada a entrar no consultório. O médico convidou-a a sentar. Passaram a conversar. Ele tinha 40 anos, era alto, olhos castanhos, pele clara. Brandão era o nome dele. Seu olhar penetrante fazia qualquer mulher arrepiar de desejos. Ele perguntou:
? Como está a animação para o carnaval?
? Ótima.
? Você costuma passar o carnaval em Salvador?
? Ah! Não perco o carnaval em Porto Seguro por nada neste mundo.
? Havia esquecido que você nasceu em Porto Seguro.
? Com prazer.
? Elias, como vai?
? Bem.
? Há mais de um ano ele não vem ao meu consultório; não acredito que ele tenha me trocado por outro médico?
? Não, doutor. Você é o médico em que ele mais confia.
? Ele vai viajar com você?
? Não, infelizmente ele está trabalhando.
? Ele não se importa que você viaje só?
? Importa, sim; mas se eu for dar ouvido a marido... quero nem falar.
? Como está a saúde dele?
? Para quem tem mais de 40 anos, a saúde está ótima.
? É verdade, estou vendo aqui na ficha: ele tem 43 anos.
Em seguida o médico pediu para ela deitar na cama. Com o estetoscópio, passou a auscultar-lhe o coração e outros órgãos.
? E a minha saúde, doutor?
Nesse mesmo instante o telefone toca, o médico atende: era um representante de drogas: "Doutor, a comissão foi depositada." "Ótimo, ótimo... tudo bem... tá... obrigado." E desliga.
? Ok, pode levantar-se. Em relação aos seus exames, houve um pequeno problema.
? Problema, doutor?
? De dois meses para cá, o laboratório em que você fez os exames está deixando a desejar. Dessa forma, você vai ter de repeti-los em outro laboratório.
? Alguma coisa grave?
? Olhe bem...
? Não, doutor! Pode dizer. Estou com alguma doença contagiosa?
? Olhe...
? Fale, pode falar.
Ele olhou com os olhos fixos nos olhos dela e bradou:
? O teste de HIV deu positivo.
Fez-se um silêncio súbito e profundo. O choque embargou-lhe a voz. Ela sentiu o coração bater acelerado, o mundo desabar sobre si. Teve a sensação que recebia uma sentença de morte. Bateu um sentimento de culpa, vergonha e desespero. Ela apanhou a bolsa e saiu do consultório, transtornada. O médico ainda tentou falar com ela, inutilmente. Desorientada, sem condição de raciocinar, entrou no carro e arrancou a toda. Confusa e perdida num emaranhado de pensamentos, estava entregue aos desatinos da imaginação. Por pouco não cruzou o sinal vermelho: parou em cima da faixa. Com as mãos suadas sobre o volante, nem ao menos percebeu um flanelinha a lhe pedir esmolas. Engatou a marcha e saiu. Ao entrar no estacionamento do seu prédio, não percebeu que o vizinho do quarto andar lhe acenara. Desceu do carro e tomou o elevador... Entrou no apartamento, aflita.
O relógio de pêndulo na parede marcava dezessete horas em ponto. Como não tinha filhos e a secretária havia saído, sentou-se no sofá e, numa desconsolação infinita, amodorrou-se numa grande melancolia. Entrou em colapso com um ataque de choro histérico. Era um choro angustiado, próprio de quem perde a esperança de viver. Uma indignação, uma tristeza profunda, uma decepção com a vida dominava-a. Sentia o estômago embrulhado e, na cabeça, uma dor lancinante. Minutos depois, teve um momento de lucidez e imaginou como pegara o vírus da aids. A primeira pessoa a lembrar foi o marido. Será que Elias está contaminado?, indagou a si mesma. Levantou-se do sofá e caminhou até a janela. A imagem da morte lampejava-lhe à mente. O desencanto com a vida era notório em seu semblante. Indizivelmente deprimida, olhou ao longe e contemplou o crepúsculo que tingia a tarde de dourado. Por que este problema haveria de acontecer logo comigo? divagou.
A lua estava alta, quando Mariana foi para o quarto de dormir. Ligou a tevê, mas não conseguiu concentrar-se... Decidiu então tomar um Lexotan. Deitada, imaginou como seria sua vida dali em diante. Quanto mais pensava mais confusa ficava. Rezou e mesmo assim não conseguiu dormir; não tinha forças bastantes para repelir os terríveis pensamentos que a atormentavam. Levantou-se e tomou outro comprimido... As horas se passavam... Sem conseguir dormir, seu corpo estava exausto e a mente em parafuso. Dormiu, não por muito tempo. No meio da madrugada, acordou sobressaltada. No silêncio do quarto, seus dentes batiam e um tremor incontrolável tomou conta do corpo, como se estivesse com calafrios de febre. Ficou a imaginar se aquilo era delírio ou realidade. Era uma sensação desesperadora saber que caminhava para o fim de tudo. Por um instante pensou que a razão de viver havia acabado. E se o resultado do exame estiver errado? indagou a si própria. Lembrou um caso de uma jovem de 15 anos que quase foi à loucura depois do laboratório trocar-lhe o exame com o de outra pessoa contaminada pelo HIV. A dúvida aliviou-lhe a tensão. Seria melhor fazer um novo exame e esperar o resultado. Respirou fundo e esforçou-se para relaxar. Mas, de todo modo, não conseguia pensar noutra coisa. Em meio àquilo, lembrou que havia combinado com Lorena, velha amiga de infância, para viajarem juntas a Porto Seguro, justamente na manhã daquele sábado. Lorena e ela haviam estudado no mesmo colégio, em Porto Seguro, e, agora, em Salvador, ambas faziam o curso de Sociologia na Universidade Federal.
O relógio de cabeceira marcava quatro e meia da manhã. Ao olhar pela vidraça da janela, viu que ainda estava escuro; fechou os olhos e adormeceu... Minutos depois, teve um pesadelo horrível: suas amigas, ao saberem de sua contaminação, haviam sumido. Santo Deus! Tenho 23 anos e vou morrer abandonada. De um pulo, saltou da cama, debruçou-se na janela do quarto e tentou esquecer aquele sonho maluco. Ali, teve consciência que o pior de tudo é a perspectiva do abandono de amigos e parentes.
Deu cinco horas o bimbalhar dos sinos da Basílica da Conceição da Praia. Do lado de fora a neblina matinal anunciava um sábado chuvoso. Isso a fez enlanguescer em melancolia. Chegou a pensar em não viajar. Contudo, se ficasse sozinha no apartamento, só exacerbaria a tristeza arraigada no fundo da alma. Despiu-se e foi para o chuveiro. Com a água quente caindo-lhe na cabeça, concluiu que nada lhe adiantaria afastar-se do mundo: só aumentaria a melancolia. Ficar chorando em casa e deixar de fazer o que mais gostava na vida, brincar o carnaval, só se estivesse em estado terminal. Ainda pensou no risco da estrada, mas optou pelo estado de espírito otimista. Selecionou roupas e enfiou-as na valise. Telefonou para Lorena: disse que passaria em sua casa em meia hora. Ligou para o porteiro do edifício e pediu-lhe que levasse a bagagem até o carro: era um automóvel vermelho, Honda, novinho em folha. Lembrou que a viagem era longa, e o ar condicionado esfriava horrores; voltou ao guarda-roupa e apanhou dois blusões. Também não esqueceu que, sendo sábado, a estrada estava congestionada e quanto mais cedo saísse de casa melhor seria. Trancou o apartamento, desceu pelo elevador, entrou no carro e saiu. Parou num posto de gasolina, abasteceu, comprou água mineral, gelo, copo descartável, refrigerante, biscoito e jornal. Saiu e, quinze minutos depois, parou defronte ao edifício em que Lorena morava. Buzinou e ficou lendo o jornal enquanto a amiga chegava: Dois milhões de turistas invadem a Bahia. Era a manchete. Quando levantou a vista, Lorena se aproximava. Desceu do carro e foi ao encontro dela: beijinhos na face... Lorena era loira, alta, magra, pernas grossas, corpo torneado. Assim como Mariana, tinha as faces coradíssimas, parecendo maquiadas, ao contrário de muitas mulheres que puxam para o pálido. Podia-se até dizer que Lorena, apesar de não ser bonita quanto Mariana, era uma mulher elegante.
? Você está triste? perguntou Lorena tão logo entrou no carro.
? Nada disso, estou animadíssima, só apreensiva com a estrada.
? Então cinto de segurança e fé em Deus.
Era pouco mais de seis horas da manhã quando pegaram a estrada rumo a Porto Seguro. Seriam mais de setecentos quilômetros. Era uma estrada que Mariana conhecia bem, pois fizera este percurso inúmeras vezes, ao longo dos últimos anos. Contudo, tinha de manter os olhos bem abertos, não podia perder a concentração.
Passaram a trocar idéias.
? Há algo estranho comigo, porque todo homem que se aproxima de mim é casado! ? comentou Lorena. ? Tenho um imã para atrair esses miseráveis. É por causa da minha idade. Como os solteiros só querem garotas jovens, mulher de 25 anos, como eu, acaba sendo o prato predileto dos casdos.
? Você namorou quantos?
? Nos últimos dois anos, de oito a dez. Só na faculdade, namorei cinco.
? Desses, alguém de futuro?
? Nenhum. A maioria mente muito. Teve um que, sem beber, era um gentleman; mas, bêbado, sai de baixo. Só agüentei sair com ele uma vez. Fomos a um restaurante, jantamos, conversamos até as dez da noite. Depois, sem combinar, ele me levou para um motel. Fiquei puta. Quando falei que não entraria no apartamento (estávamos na garagem do motel), ele me pegou pelos cabelos e me arrastou à força para o quarto. Jamais esperei que ele tivesse coragem de fazer aquilo. Quando gritei, foi pior, ele tirou o cinturão e passou a me bater. Os olhos dele pareciam duas tochas de fogo. No auge da loucura, ele berrava: dizia que se eu não fizesse sexo, ele me estrangularia.
? E aí?
? Para não morrer, não tive outro jeito a não ser abrir as pernas para aquele filho da puta.
? O que você acha quando acontece de uma mulher ser estuprada?
? Todos nós temos uma proteção divina diretamente proporcional aos atos praticados nesta e em outras vidas. Como Deus é justo, qualquer coisa que nos acontece de bom ou ruim é porque somos merecedoras.
? Você acha que mereceu aquele estupro?
? Nada acontece por acaso.
? Uma criança quando nasce com problemas físicos e mentais é por que ela é merecedora desses defeitos?
? Não podemos achar que Deus é injusto quando crianças inocentes nascem com defeitos físicos. Em outras vidas, praticaram atitudes negativas, lesaram o equilíbrio espiritual e então nasceram mutiladas.
? E uma pessoa contaminada com o vírus da aids?
? Existem doenças que matam mais rapidamente do que a aids. Por exemplo: o câncer, a meningite, a dengue, a tuberculose, a gripe. Não sei por que toda essa celeuma em relação à aids. Quem vive na Terra está sujeito a tudo isso. Existem pessoas mais precavidas que raramente adoecem. Outras, como exageram no livre-arbítrio, estão mais propensas à contaminação.
Por um momento Mariana lembrou seu drama...
Como sempre a estrada estava péssima, com vários buracos, em parte pelo uso, em parte pela chuva que caíra nos últimos dias. Com cuidado desviou de um ônibus, conduzindo dezenas de foliões embriagados. Gritavam palavras obscenas. Cem metros adiante, um caminhão era saqueado por dezenas de homens armados de foices e facões, os quais carregavam de um lado da cintura um cantil e do outro, uma faca ou então um cacete. Vestiam calças de couro de jumento, camisa de pele de cabra, usavam chapéus de couro e alpercatas sertanejas. Eram barbudos e davam ordens para que as mulheres se apoderassem da carga. Ao ver uma moça com uma caixa de leite na cabeça, Lorena quis saber a que movimento pertencia. "Vá tomar no cu. Vocês ricos apenas fingem que se preocupam com os pobres", desabafou a garota.
? Uma pessoa faminta é capaz de tudo ? comentou Lorena. ? Eu fico nervosa quando passa do horário costumeiro de me alimentar, imagine quem não tem o que comer.
? Que movimento é esse? Mariana indaga a uma senhora, envolta num vestido feio, sujo e velho. Ela carregava uma criança nos braços.
? Somos do SPN (sem-porra-nenhuma).
Numa faixa de trezentos metros, de cada lado da estrada, moradores das proximidades saíam de suas casas e se preparavam para saquear todo caminhão que por ali passasse.
? Se não houver um programa de segurança nas estradas, roubos e furtos de cargas se tornarão uma séria ameaça à propriedade, à integridade e à vida de todos quantos trabalham a rodar nas estradas ? conjeturou Lorena.
Enquanto isso chegaram policiais em três viaturas e passaram a dissolver à porretadas a multidão. Caídos no chão, como numa batalha campal, flagelados eram massacrados selvagemente.
? Não sei por que policial tem tanto ódio pelo povo? indagou Mariana.
? E vice-versa ? completou Lorena.
Dirigindo há mais de cinco horas, Mariana pediu a amiga que conduzisse o carro. Logo à diante, uma barreira de policiais fez Lorena parar. Ao mostrar a carteira de habilitação, o patrulheiro extravasou:
? A senhora tem todos os documentos, não vou perder tempo em vê-los. Hoje, minha missão é outra. Estamos angariando fundos para o pessoal do SPN, que, famintos de pão e água, estão cansados de ouvir a mesma cantilena: "Um dia as coisas vão melhorar." Faz-se necessário que todas as organizações, governamentais ou não acordem e se dê conta de que não é possível estarmos no terceiro milênio com o flagelo da fome a ameaçar a nossa sobrevivência. Mas esse governo sem-olhos só dará conta disso quando os sem-porra-nenhuma ocuparem ruas, praças, lojas, repartições públicas e, feito aqueles malucos na recessão de 1929, proporcionarem a maior destruição neste País. Não sobrará carro sobre carro, político sobre político ? concluiu o patrulheiro. Ele parecia indignado com o estado de penúria daquelas pessoas.
Lorena colocou cinco reais na sacola. Retomou a estrada e ainda percorreu cerca de cento e vinte quilômetros até chegar a Porto Seguro. Eram 16 horas quando o carro parou defronte a casa da tia de Lorena. A porta da casa se abriu e projetou dona Irene, senhora de 70 anos, cabelos grisalhos, cacarejando alegria. Ela bradou:
? Ainda bem que vocês chegaram; estava preocupada...
Elas desceram e foram prontamente recebidas por um cachorro pé-duro de nome Paton. O animal balançava o rabo e latia como se estivesse dando boas-vindas.
? Você está bem, tia Irene.
? Nada, sinto dor no corpo todo.
? É assim mesmo, tia. Gente velha que não sente dor é porque já está morta.
Dona Irene deu uma risada.
? Então estou viva, né?
Lorena acenou para o vizinho. Ele atendeu e conduziu a bagagem até a casa. Era uma mansão antiga, de grande fachada, construída pelos Jesuítas, provavelmente em 1549, com paredes de 40 centímetros de largura, feitas no sistema barroco: uma mistura grosseira composta de argila, pó de casca de moluscos, óleo de baleia e pequenas pedras. Na parede frontal havia uma trepadeira, de folhas miúdas, que escalava até o telhado. Mariana e Lorena entraram e sentaram-se à mesa da cozinha: tomaram café e comeram biscoitos.
? Mariana, como você alugou sua casa na praia, por que não fica conosco? indagou dona Irene.
? Não, tia Irene, já tentei de todas as maneiras, mas ela não quer ficar aqui. Ela prefere ficar no hotel.
De fato, de uns anos para cá, Mariana chegara à conclusão que, no carnaval, é preferível hospedar-se num hotel a ficar em qualquer outro lugar. Com o dinheiro do aluguel da casa, pagava a hospedagem no melhor hotel da cidade. "O bom é ficar livre das visitas indesejáveis que nessa época aparecem inoportunamente", era seu lema.
Finalmente por volta de 17 horas Mariana chegou ao hotel. O dia ainda estava claro. Tão logo organizou a bagagem, pensou em cochilar, mas, quando se espichou na cama, um turbilhão de pensamentos confusos invadiram-lhe à mente. Como não relaxaria, levantou-se, foi até a varanda do apartamento e passou a contemplar a piscina, onde dezenas de turistas se entretinham: uns bebiam uísque, outros liam, alguns mais apaixonados se acariciavam e outros curtiam o pôr-do-sol. Por um momento ela pensou em cair n?água, conhecer gente nova, tomar uma taça de vinho, mas optou por passear pela cidade. Tomou banho, perfumou-se, vestiu um short jeans, camiseta amarela, tênis, e cruzou o portão do hotel. Minutos depois, chegou à Passarela do Álcool ? ruela de casario antigo e de botecos que lotam de blocos, trios elétricos e bandas. Ao entrar num barzinho, ouviu alguém gritar seu nome. Ao virar-se, viu algumas pessoas lhe acenando: era a turma da faculdade, cerca de dez garotas e cinco rapazes sentados à mesa. Caminhou até eles. Cumprindo o manual de etiqueta e boas maneiras, os homens levantaram-se e cumprimentaram-na: uns, com a face; outros, com a mão. As mulheres trataram logo de lhe arrumar um bom lugar entre elas. Ao sentar-se, notou todos vestindo a camisa do bloco Surubaianus.
? Você nem imagina quem está aniversariando, Mariana ? diz Gaby, colega de faculdade.
? Como poderia esquecer a data do aniversário do meu ex-amor ? levantou-se e abraçou Isaac. Ele fora um dos últimos namorados antes de ela casar-se com Elias.
? Você chegou no momento exato do meu discurso ? ele bradou.
A esse respeito, quando estava de pileque, Isaac tinha o hábito de fazer discursos. Corria-lhe nas veias o desejo de ser político. Ele então solicitou ao dono do restaurante que desligasse o som, por alguns minutos. Subiu numa cadeira e passou a discursar: "Haja vista os problemas que afligem Porto Seguro, no tocante à sexualidade, o Secretário municipal responsável por essa pasta afirmou que o Governo do Estado deve liberar verbas para as obras de construção de um grande motel nessa bela e aprazível cidade. Sendo assim, fazer sexo à beira-mar (como fizeram marinheiros portugueses há quinhentos anos) será apenas lembranças vivas do passado." Prosseguiu: "Em relação às nossas esposas e em especial às nossas namoradas, todas têm de estar em perfeita harmonia e devem expressar esse sentimento nos olhos, nos semblantes e em todos os gestos. Cada uma deve estar pronta a exercer sua função, como também disposta a auxiliar a rival no cumprimento da tarefa mais importante. Ou seja, cuidar bem do seu homem. Basta quererem o melhor para nós, que o melhor para elas será concedido. Deve reinar entre as mulheres o ambiente de paz e amor tal qual foi pregado pelo Mestre há dois mil anos." Em cima da mesa, Isaac agradeceu de joelhos a Pedro Álvares Cabral por ter trazido em sua esquadra um oficial português que teria tido relação sexual com sua hexavó (de Isaac), nas areias da praia, em 30 de abril de 1500, cujo dia Cabral e seus capitães desembarcaram em terra firme. Segundo a história, nesse dia havia quatrocentos nativos com os quais os portugueses passaram o dia dançando e cantando. Segundo Isaac, esse oficial da marinha portuguesa (encantado com a exuberância da paisagem nas paragens afrodisíacas da Ilha de Vera Cruz, com as benesses do clima e com a complacência dos nativos) escolheu aquela linda mulher, de olhos negros como a noite, e fez dela a primeira nativa a ser desvirginada por um estrangeiro. Oficialmente, é claro. Ao término do discurso, Isaac teve a honra de receber as manifestações, os aplausos públicos pela maneira como se houve.
Naquele clima de festa, regado a cerveja e camarão, entraram noite adentro ao som da banda Araketo e outras. Com 22 anos, um a menos que Mariana, Isaac era considerado o galã da turma. Era alto, amorenado pelo sol, cabelos pretos e olhos castanhos. Segundo as mexeriqueiras, ele, casado há dois anos, namorava a cunhada, uma loira de olhos verdes que havia ganhado um desfile de modas na cidade de Itabuna. Diziam até que fora a mulher de Isaac que aconselhara a irmã (ainda virgem à época) a fazer sexo com ele.
Lá pelas 8 da noite, quando se deram conta, perceberam que estavam a sós à mesa. Mariana disse:
? Sabe, é engraçado, sempre achei que quando nos encontrássemos, ficaríamos juntos.
? Também achava isso.
A amizade entre eles, há oito anos, era forte. Depois do casamento de Isaac, após ele passar no vestibular de medicina, em São Paulo, fato ocorrido há três anos (mesmo tempo em que Mariana estava casada), eles não haviam se encontrado. Anterior a tudo isso, tinham namorado quase um ano. Ora, foi Isaac o namorado que ela mais gostara, em especial pelo seu jeito de ser, sem preconceitos tolos, sem frescura: ele a aceitava do seu jeito. Por volta de 22 horas, ele a convidou para dar um giro por aí, como nos velhos tempos de namorados: de bar em bar, visitando amigos de copo. Naquele instante, ela imaginou como seria dar uma escapulida fora do casamento, depois de três anos de dedicação exclusiva ao marido. De todo modo, não tinha certeza se Isaac tinha isso em mente. Ela então perguntou-lhe pela esposa.
? Graças a Deus ela é evangélica e detesta carnaval.
Ele tomou cerveja e pensou: Se este é o momento, que seja aproveitado.
Saíram por aí. Bebiam cerveja e cheiravam lança-perfume. Ela deu uma cafungada tão violenta que os sinos badalaram nos ouvidos, as pernas cambalearam e o coração pulsou forte. Logo em seguida, teve a sensação de paz e tudo voltou ao normal. Para ela o lança-perfume era sinônimo de liberdade. Enquanto bebiam e conversavam com amigos num restaurante, caiu um toró seguido de relâmpagos e trovões. Tempo depois, decidiram então ir para o hotel onde ela estava hospedada, no qual acontecia um baile carnavalesco. Quando chegaram, embrenharam-se no salão. Eram duas da madrugada em ponto e a chuva não parava. Para desespero generalizado, aconteceu o inesperado: a luz apagou-se. Instalou-se um pandemônio no salão e ninguém se entendia. Diante da confusão, Isaac sugeriu ir para o apartamento dela. Caminhavam de mãos dadas, aqui e ali paravam, beijavam-se, caminhavam... Chegaram ao apartamento. Mal abriram a porta, as luzes se acenderam. Diante da cama, caprichosamente arrumada, ela não resistiu e deitou-se. Ele foi ao frigobar, apanhou uma cerveja, sentou-se na cama e passou a lhe falar do sonho que estava realizando: ser médico obstetra. Ele era terceiranista do curso de medicina na Universidade de Campinas, em São Paulo. Ao longo da conversa, ele perguntou:
? Você ainda não quis ter filhos?
? Quero, sim. Mas não engravido.
? Seu marido é estéril?
? Não. Não é. Ele fez exames e nada foi constatado.
? Saiba que, em primeiro lugar, o corpo da mulher só permite que os espermatozóides permaneçam férteis por não mais do que cinco dias após a ejaculação. Em segundo lugar, os espermatozóides necessitam de cerca de dois dias, dentro da mulher, para atingir o auge de sua fertilidade. Terceiro, as mulheres só produzem um óvulo a cada ciclo menstrual, mas este óvulo morre um dia depois de ser produzido pelo ovário. Para o homem ter uma a chance de engravidar a mulher, ele tem de inseminá-la pelo menos uma vez no período que vai de cinco dias antes da ovulação até cerca de doze horas depois. Quase sempre a mulher ovula no décimo quarto dia após a menstruação. Depende do tempo de duração do ciclo menstrual. Existem mulheres perfeitamente normais em que o ciclo menstrual varia de quatorze a quarenta e dois dias. Neste caso, a ovulação varia de quatro a vinte oito dias, depende do período. Como Elias passa quinze dias fora de casa, existe a possibilidade de que suas relações sexuais estejam ocorrendo nos dias não férteis.
Enquanto isso, a chuva continuava incessante. Ele apanhou uma garrafa de champanhe e bradou: "Brindemos o amor!" Beberam, abraçaram-se, deitaram-se na cama e beijaram-se na boca, profundamente. Ele tirou-lhe a blusa (como sempre ela estava sem sutiã), acariciou-lhe os seios, beijou-os enquanto ela desabotoava-lhe a camisa. Ambos ficaram despidos. Isaac encheu a taça de champanhe e, repetindo o gesto da época em que a namorava, derramou-lhe no corpo. Ela sentiu um friozinho na barriga. O champanhe gelado escorria rumo ao sulco vaginal enquanto ele passava a língua nos pêlos pubianos. Ao desfrutarem daqueles momentos de infidelidade, lançaram-se com voracidade ao sexo oral, num frenético e saboroso meia-nove. Com os lábios umedecidos de champanhe, ele roçou nos grandes lábios; com os dedos, abriu a gruta e introduziu a língua quente e macia, vicejando masculinidade e sensualidade. Naquele ambiente de liberdade e aventura, ele inoculou todo o extasiante deleite pelo sexo oral. Usava aprimoradas técnicas orais, de modo que a cada momento aumentava o grau de excitação dela. Seria impossível ela deixar de retribuir-lhe as gentilezas. As línguas, mornas e acariciadoras, os sussurros de volúpia, entremesclavam num só prazer. Na chama alta do desejo fremente, momento em que a razão desaparece, gozaram, loucos, em sonora paixão. Há anos, ela não sentia um prazer tão delicioso. Da parte dele também foi um sucesso, uma vez que sua mulher, por ser religiosa e conservadora, achava que o sexo oral era coisa do Satanás. Por sua vez Mariana sempre gostou de fazer amor com Isaac porque se sentia vibrante e desinibida, coisa essa não conseguida com o marido. Tinha orgasmo com mais facilidade e mais satisfação no sexo oral do que propriamente no ato sexual. A estimulação direta no clitóris, através da língua, deixava-a maluca de desejo. Eles fizeram daquela noite, a noite mais maravilhosa dos últimos anos. Experimentaram o sexo em várias posições e gozaram amiúde.
? Você continua a mulher de sempre: pervertida.
? E você, o homem mais delicioso que conheci.
Vendo o dia amanhecer com um desbotado céu acinzentado, ele decide ir para casa; não sem antes combinar para se encontrarem na chácara do deputado Coriolano, na tarde daquele dia, domingo, onde haveria um churrasco comemorativo ao aniversário do parlamentar. Coriolano era professor de Filosofia da Universidade Federal de Salvador, e Mariana fora sua aluna no semestre anterior.
Tão logo Isaac saiu, ela trancou a porta e mergulhou na cama. O peso na consciência de ter traído o marido pela primeira vez foi subitamente sufocado pelas lembranças dos melhores momentos da noite. Pensou: Quantas são as mulheres que agora mesmo estão pensando em trair seus maridos!?
O tempo estava aberto, com ventos leves e pouquíssimas nuvens brancas enfeitavam o céu azul-celeste. Ela acordou por volta de 14 horas. Depois de ficar de molho na piscina do hotel por mais de meia hora, pegou o carro e foi para o aniversário. Ao chegar à chácara, percebeu a euforia. A turma da faculdade estava em peso. Todos curtiam a roda de samba que viera especialmente de Salvador, para animar a festa. Isaac havia chegado, entretanto estava acompanhado de sua cunhada, no maior love. A garota estava metida num short branco, curto, de fino tecido, irradiando tesão. Era uma loira mimosa. Chamava-se Viviane.
Decorreram duas horas. Na festa, todos os presentes notaram a maneira solícita como o aniversariante tratava Mariana: aqui e ali ele perguntava-lhe se estava tudo bem; se lhe faltava algo. Por volta de 17 horas, o deputado cochichou-lhe no ouvido:
? Seria um prazer ver o pôr-do-sol ao seu lado.
Ela pensou em argumentar contra, mas desistiu.
? O prazer é todo meu.
O deputado era o tipo de homem sedutor. Era alto, tinha 45 anos, cabelos e barbas grisalhas. Charmoso. Ao volante do jipe Subaru branco 4x4, e com ela ao lado, ele seguiu pela beira-mar, em busca de um lugar estratégico.
O sol vermelho se despedia sobre a Mata Atlântica, mas a luz que banhava de tons laranja e violeta o imenso índigo mar ainda era suficiente para a vista alcançar a linha do horizonte onde a lua haveria de nascer. Mariana era fascinada pela beleza do crepúsculo, por achar que essa claridade frouxa produz na alma um forte estímulo sexual. Após a contemplação do ocaso, dirigiram-se à Passarela do Álcool, onde havia um sem-número de pessoas se divertindo. Lá permaneceram por mais de uma hora. Depois foram até a praia de Taperapuan, a meia hora dali, cujo local estão as melhores barracas de praia. Ao chegarem, tão logo desceram do carro, amigos do deputado, bebendo à mesa, aproximaram-se e passaram a saudá-los com uma mistura de Maisena, pó de café e urucu. O consenso parecia permitir que cada um se divertisse como quisesse: quer sujando o próximo ao entrar na barraca, quer quando passava nas imediações. Três folionas, passeando pela praia (deviam ser turistas, pois estavam impecavelmente vestidas de odaliscas), foram atacadas por cinco mulheres que portavam uma gororoba feita de ovo cru, Maisena, cerveja e azeite-de-dendê. Não havia dúvida: qualquer inocente transeunte que cruzasse a linha de fogo seria vítima da gororoba.
? Vocês vão beber o quê? pergunta o garçom.
? O deputado prefere uísque; eu, cerveja.
? Quando o carnaval chegou ao Brasil, importado de Portugal, era festa de elite em que se dançava ao som de marchinhas e fandangos ? afirmou o deputado.
? Que diabos é fandango? indaga um folião.
? Fandango é uma dança popular de três tempos e sapateada, de uso na Espanha e Portugal, trazida para cá pelos portugueses. Todavia anterior ao carnaval e muito mais popular era o entrudo, onde foliões tinham o hábito de jogar água e talco uns nos outros. Após alguns anos, passou a ser uma verdadeira batalha campal de arremesso de laranjas, ovos e outros artefatos feitos de cera de carnaúba (cheios de qualquer líquido, em especial de urina) jogados com entusiasmo e sem piedade nas costas e no rosto de transeuntes. Tudo indica que o entrudo, proibido em 1854, está voltando com características ainda mais violentas.
? Em comparação ao deputado, o meu conhecimento faz lembrar os bons tempos do Mobral ? gracejou um folião, com os olhos entupidos de Maisena.
Num dado momento, um rapaz que bebia à mesa ao lado perguntou maliciosamente:
? Deputado, Vossa Excelência ainda usa a abstrusidade como forma de embair a opinião pública?
O deputado reage de pronto:
? Os provenientes da raça artiodátilo não ruminante ou os alfabetizados por incunábulos idiotas são indivíduos de insipiência irreversível, pensamento ignóbil, torpe, de mente nefasta, beócio, de quem não esperamos absolutamente nada.
Por alguns instantes os dois passaram a trocar amabilidades veladas. Abusavam da verborréia e deixavam os presentes sem entender patavina do que falavam. O tom era de agressividade. Em meio àquilo, Mariana propôs ao deputado que a levasse para outro local. Ele concordou. Entraram no carro e foram para a Ilha do Pacuio, uma faixa de terra escondida entre Porto Seguro e Arraial d?Ajuda. É um complexo turístico de 4 milhões de dólares, local de diversão e entretenimento. É chamada de "ilha da fantasia", pelo fato de ser um dos poucos lugares na Bahia onde o axé não toca.
A caminho, trocavam idéias.
? Deputado, de uns tempos para cá, vocês políticos estão sendo cobrados pela população no tocante a falcatruas. Existe um dito popular que diz: "No princípio vem o verbo, depois, as discordâncias verbais; por fim, os desvios de verba."
Fugindo do assunto, como bom político, ele diz:
? Ontem li um pensamento interessante de uma mulher kung, africana, do deserto de Kalahari: "Quando fores mulher, não fiques aí sentada, sem fazer nada, arranja amantes. Não fiques apenas com o homem de tua choça, um homem somente. Um homem pode te dar muito pouco."
Ele parou o carro num local deserto e completou:
? É um crime contra a humanidade encerrar uma mulher nova e bonita entre quatro paredes, como se ela fosse prisioneira. Ela tem mais que se libertar do mundo machista e viver plenamente a sexualidade.
Mariana pensou: Os homens pregam a liberdade da mulher, principalmente quando a mulher não é a dele.
As nuvens que cobriam a lua deixavam o céu escuro. Ali, no carro, sabedora que ele queria "comer na corte", ela, feito Eva, deslizou na "prancha de Adão"; e assim como a rainha de Sabá permaneceu imóvel e em silêncio até "perceber inteiramente a madeira." Homenageou-a e devido a essa honra, pelos poderes de Deus, seu corpo se moveu e sua carne respirou até "ficar fora de si".
A noite já terminava, e a luz da manhã começava a iluminar a barra. O deputado pegou sua agenda, retirou a caneta do porta-luvas e passou a escrever:

Ao sumir no horizonte, o sol espalhava os últimos raios sobre o mar. Pássaros voavam sobre o coqueiral e saudavam a noite que caía lentamente. No céu, nuvens cinzentas se perfilavam em reverência à beleza escultural do corpo nu de minha amada, que, tomada de desejo, caía mansamente nos meus braços. O sol descambava atrás da floresta, deixando-nos a sós. A suave fragrância dos mangues e as curvas maravilhosas do seu corpo me excitavam. Dos nossos corpos, unidos e quentes de tanto prazer, fluíam feixes de energia sexual, que, direcionadas para o universo, se transformavam em mentalizações positivas. No silêncio da madrugada, ouvíamos apenas os murmúrios do matagal, o tilintar dos vaga-lumes, o assobio dos ventos, o roçar da lua nas nuvens e o pulsar acelerado dos nossos corações. A noite se foi rápida como um pensamento. O galo-de-campina, em melodioso trinado, anunciava o raiar do novo dia. De um escarlate rutilante, o arrebol ensejava o crepusculário. O astro-rei iluminava os contornos daquele belo corpo nu, que dormia na areia da praia. Em saudação ao sol, pássaros pairavam no ar e cantavam hinos de louvor. Toda a natureza reverenciava o Criador. O vento frio e brando, que ali soprava, enchia de areia fina a vulva rosada daquele corpo doce e macio com o qual me deliciei durante a noite. As manchas esbranquiçadas, espalhadas em nosso corpo, eram as únicas testemunhas do nosso amor. "Te quero!", ela murmurou. Seu beijo molhado, seguido de sussurros, invadiu o meu ouvido, causando-me arrepios e ondas de prazer. Espalhando beleza, numa imensa profusão de cores, o sol, que deslizava no verde da mata virgem, resplandecia nos olhos verdes da morena. Irradiando desejo e sensualidade, ela me induziu a passear no seu corpo feito um beija-flor nas pétalas das margaridas. Enquanto meu bigode se confundia com os pêlos de sua genitália, seu batom carmim tatuava as minhas glândulas seminais. Ali, sedentos, presos um ao outro, amamo-nos em reverência aos povos árabes, pela invenção do mais amoroso de todos os números: o meia-nove.

As dunas começavam a esbranquecer pelo crepúsculo cada vez mais claro. O vento chiava por entre as palhas do coqueiral, e havia ao longe canto de pássaros. Quando a luz da manhã apareceu completamente, viu-se que não havia sequer uma nuvem no céu. O deputado ligou o jipe e saiu. De repente diminuiu a velocidade e passou a olhar um casal, dentro de um carro, namorando.
? Patife!
? Você conhece o casal, deputado?
? Conheço, sim. A garota é minha filha, e o cara que está com ela é meu pior inimigo político. Ele é vereador; é aquele mesmo com quem discuti no bar, ontem à noite. Ele é casado, sou amigo da mulher dele, mas, hoje, vou dar um jeito nesse filho da puta.
Ele pega o celular, liga para seu motorista e diz: "Capeta, pode mandar fazer o serviço; não esqueça de avisar ao pessoal que a garota é minha filha."
Apreensiva, Mariana diz:
? Veja lá o que você vai fazer.
? Deixe comigo... Esse cachorro barbado vai saber com quantos paus se faz uma suruba.
Roendo as unhas, ele acrescenta:
? Para todos efeitos você não viu nada, não sabe de nada.
Ao chegarem na chácara, onde ela deixara o carro no dia anterior, ele diz:
? Amanhã essa história do seqüestro sairá em todos os jornais. Provavelmente, ainda hoje, a televisão e o rádio darão a notícia.
Despediram-se, e o deputado viajou para Salvador.
Tal como ele previra, na manhã do dia seguinte, terça-feira de carnaval, o jornal Diário Soteropolitano trazia reportagem sobre o seqüestro da filha do deputado cujo nome era Sylvia. O matutino noticiava que os seqüestradores haviam exigido resgate de duzentos mil dólares para libertá-la. À noite anterior, pela tevê, o deputado fez um apelo aos seqüestradores para que não causassem nenhum mal a sua filha. Na Quarta-Feira de Cinzas, Sylvia foi libertada sem que a polícia tivesse informação se o resgate fora pago ou não. Segundo o depoimento dela, três homens encapuzados, empunhando armas, saltaram dum jipe e anunciaram o assalto. Ela e o vereador foram amarrados, amordaçados e obrigados a sentarem no banco traseiro. Um assaltante assumiu o volante e partiu em disparada. Adiante pararam e ordenaram ao vereador que descesse do carro e entrasse numa caminhonete, parada no acostamento da estrada. Segundo Sylvia, durante dois dias em que esteve em poder dos seqüestradores, ficou com os olhos vendados, mãos atadas e em nenhum momento foi molestada por eles. Um mês depois, como os seqüestradores não fizeram contato com a família do vereador, a polícia decidiu intimar o deputado. Ao prestar os esclarecimentos devidos, a polícia desistiu de investigar o caso. No entanto, arquivou o inquérito, pelo fato de não ter havido crime. (Se não existe corpo não existe crime).

















Autor: Francisco Carvalho


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