Por que desconstruir práticas punitivas?



POR QUE DESCONSTRUIR PRÁTICAS PUNITIVAS?

Fábio Fernandes do Nascimento

"Para descobrir quanta escuridão existe em torno, é preciso concentrar o olhar nas luzes fracas e distantes."
Calvino


Por que desconstruir as práticas punitivas? Não seria a punição o sustentáculo de nossa sociedade, marca indelével de nossa organização/evolução? Sinto dizer-lhes que não. A punição é uma forma de criminalizar, estigmatizar, rotular e excluir os ineficientes (improdutivos) ao sistema capitalista.

Tentaremos elucidar essa afirmação com os ensinamentos apreendidos por ocasião do IIIº Seminário Antiprisional: Desconstrução das Práticas Punitivas, que ocorreu no Centro Universitário Newton Paiva em Belo Horizonte. Onde tivemos a oportunidade de assistir à brilhante palestra do pioneiro da Criminologia Radical ? professor Juarez Cirino dos Santos.

A pena de privação de liberdade veio em substituição às práticas de punição imputadas ao corpo, datadas de períodos anteriores à Idade Média . A mudança do local de imputação da pena do corpo para o tempo, em síntese, decorre da mudança da percepção da sociedade em relação à severidade das penas que eram aplicadas e à necessidade crescente de mão-de-obra disciplinada, decorrente da expansão das cidades e do nascimento da indústria. A privação de liberdade surge, assim, em analogia às horas de trabalho dispensadas nas fábricas. Era uma forma, nos dizeres de Foucault, de educar o corpo insubordinado ao trabalho condicionado :

"Digamos que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo de ônus reduzida como força ?política?, e maximizada como força útil. O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade específica do poder disciplinar, cujas fórmulas gerais, cujos processos de submissão das forças e dos corpos, cuja ?anatomia política?, em uma palavra, podem ser postos em funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de instituições muito diversas". (Grifo nosso)

O ser humano, em nossa sociedade, é julgado em virtude de quanto ele pode consumir ou produzir. Quanto mais eficiente e eficaz à perpetuidade do sistema capitalista menos rotulado, etiquetado e criminalizado ele será.

As prisões praticadas pela "polícia-política" é uma forma de calar e mascarar as exacerbadas diferenças sociais prevalecentes em nossa sociedade. É como tirar a voz daquele que está para gritar e acusar o sistema pela exclusão da maioria em virtude e benefício de uma minoria.

Como não percebemos isto? Será que somos tão cegos a este ponto?

Não somos cegos! O sistema cuida de tudo, desde o etiquetamento do excluído com os estigmas da "periculosidade" e do "inimigo" até a sua eventual "ressocialização". Acreditamos que aquelas pessoas, no qual o Sistema Penal atingiu, precisavam realmente da aplicação severa das penas à elas impingidas. É uma maneira de reinseri-las numa sociedade "boa" e "virtuosa".

Percebemos que nossa bondade e virtude se encontram em retirar esses indivíduos do convívio social ? uma vez que já estavam excluídos ? e colocá-los (encarcerá-los) em um ambiente propício à sua "reinserção" na sociedade. E, ao saírem do cárcere a sociedade os recebe de braços abertos com a sensação de que cumpriram sua pena e que estão preparados para um convívio mais humano e fraterno. Fatal ilusão! O que fazemos é justamente o contrário. Transformamos pessoas desejosas de oportunidades mínimas em nosso capitalismo selvagem em criminosos e criminalizados por nosso egoísmo e hedonismo.

Quem são realmente os selvagens? Eles que foram, por nós, excluídos. Ou nós, que ao excluí-los, retiramos deles a oportunidade de uma vida digna em nosso meio e, assim, se viram obrigados a agir às margens do sistema. Neste ponto, como os adeptos da escola positivista, arriscamos dizer que não há livre-arbítrio para estas pessoas. E, sim, uma única e visível possibilidade de seguir o "destino pré-determinado" por uma sociedade que estigmatiza e rotula desde o nascimento.

Pode parecer uma opinião reducionista. Mas, são poucos os que conseguem escapar desta espiral imposta pelas estruturas de nossa sociedade.

O Sistema Penal exerce seu poder sobre o povo (a maioria ? excluída, etiquetada e sem oportunidades). E isto é mascarado através do que chamamos meritocracia e defesa social. O cárcere da atualidade não quer disciplinar o corpo ao trabalho, uma vez que já há uma considerável massa de trabalhadores excluídos do sistema capitalista em virtude de sua "precoce" industrialização. Quer, isto sim, retirar a massa, que não consegue inserir-se neste sistema, do convívio social, uma vez que ao perceberem esta exclusão seriam impingidos à uma reação por vezes radical. Mais uma vez a intenção de retirar a voz daquele que está para gritar. A pena "cumpre", desta forma, sua função social: proteção dos privilégios de uma elite dominante e manutenção da perpetuidade do sistema de castas.

Temos, desta forma, um estado mínimo ou Estado de direito para os "capitalistas" e um estado máximo ou Estado de Polícia para os que estão às margens deste sistema. Que, ao utilizar-se da máscara de que é igualitário e equitativo, maximiza a sua capacidade de justificar a severidade das penas aplicadas aos despossuídos pelas elites econômicas.

Nosso ideal, neste momento, seria a redução do Direito Penal ao mínimo necessário. Onde, de acordo com Juarez Cirino dos Santos , o crime e a criminalidade são problemas de políticas públicas de redução das condições sociais adversas (desigualdades), no qual a prevenção só será possível através de uma democracia real (redistribuição de riquezas). Temos que promover a redução dos preconceitos perpetrados pelos meios de comunicação de massa em todos os tempos. A criminalização está diretamente relacionada à questão de etnias e poder econômico. Iniciemos nossas reflexões com os ensinamentos do principal defensor do minimalismo penal, Alessandro Baratta :

"Nós sabemos que substituir o direito penal por qualquer coisa melhor somente poderá acontecer quando substituirmos a nossa sociedade por uma sociedade melhor, mas não devemos perder de vista que uma política criminal alternativa e a luta ideológica e cultural que a acompanha devem desenvolver-se com vistas à transição para uma sociedade que não tenha necessidade do direito penal burguês, e devem realizar, no entanto, na fase de transição, todas as conquistas possíveis para a repropriação, por parte da sociedade, de um poder alienado, para o desenvolvimento de formas alternativas de autogestão da sociedade, também no campo do controle do desvio."

Autor: Fábio Fernandes Do Nascimento


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