SOMBRAS AO MEIO DIA



A comida havia acabado e a fome começava a atormentar Jonas. Ele não tinha nenhuma esperança de encontrar alimento nas ruínas daquela cidade. As lojas e supermercados tinham sido saqueados por bandos de famintos e mesmo os sobreviventes da guerra, partiram e não voltaram mais. Emigraram para outros lugares em busca de alimento. Vagando pelas ruínas dos prédios, Jonas não encontrou mais ninguém, tampouco nenhum alimento para aplacar a fome. Resolveu também partir. Seguiu pela rodovia margeada por campos secos. Havia muitas semanas que não chovia. Ao entardecer, ele avistou uma casa de alvenaria que parecia estar intacta ao lado de um grupo de árvores desfolhadas e dirigiu-se para lá, achando que seria um bom lugar para passar a noite. A casa estava praticamente inteira, apenas a porta havia sido destruída, provavelmente por alguém com um machado. Na entrada estava um capacho com a saudação escrita; Seja Bem-vindo! Por instinto, Jonas limpou os sapatos antes de entrar. O soalho poeirento estava marcado com sinais de pegadas. Os saqueadores já estiveram no local, tudo estava fora do lugar. Sobre os trapos de uma cama jazia o esqueleto de uma pessoa. Jonas não se perturbou, estava acostumado com tais cenas. Enterrou o esqueleto no quintal, onde encontrou alguns nabos. Não era grande coisa, mas serviu para enganar a fome. Naquela noite ele dormiu na casa e partiu logo que o sol nasceu. A cidade mais próxima ficava a oitenta quilômetros de distancia. Talvez estivesse também em ruínas, mas Jonas esperava encontrar um pouco de civilização em algum lugar. Uma hora depois, andando pela rodovia esburacada, avistou uma coluna de fumaça subindo para o céu. Deixando a estrada, ele seguiu naquela direção esperando encontrar pessoas de boa índole. No campo atrás de uma colina, havia uma cabana e a fumaça saindo pela chaminé indicava que alguém morava ali, e esse alguém estava cozinhando algum alimento. Restava saber se eram pessoas civilizadas, cordiais. Descendo por uma trilha entre urzes ressequidas, Jonas chegou a uma pequena horta onde estavam sendo cultivados feijão e hortaliças. No meio da horta estava um homem, descendente de negros, capinando o mato. Ao ver Jonas, parou o seu trabalho e cumprimentou-o. - Seja bem- vindo! Disse ele. - Como tem passado? Jonas estacou na beira do canteiro, olhando para as primeiras vagens que nasciam nos pés de feijão. - Um pouco cansado e com muita fome. Respondeu ele satisfeito pelo outro ter perguntado. - Então, fique para almoçar conosco e descansar um pouco. Faz muito tempo que não recebemos visitas. Meu nome é Lázaro e o seu? - Jonas. Lázaro encostou a enxada numa cerca, lavou as mãos num córrego e secou-as nas calças. - Vamos, vou apresentar minha filha. Que belo dia, não? Jonas olhou para o alto e só então notou que o céu parecia mais azul e o sol mais brilhante. Seguiu o homem até a casa, onde uma jovem de pouco mais de vinte anos recebeu-os à porta. O coração de Jonas bateu mais forte, pois fazia muito tempo que não via uma mulher tão de perto. Ela tinha cabelos pretos, revoltos, os olhos eram pretos, a pele um pouco mais clara que a do pai. Perto do olho esquerdo tinha uma cicatriz em forma de meia lua, começava na sobrancelha e terminava na maçã do rosto. Fora isso ela era bonita e de belas formas. Usava um vestido floreado com a barra acima dos joelhos. Apesar de ser muito usado, o vestido estava limpo. - Esta é Rosa. Rosa este é Jonas, um viajante cansado e com fome. Seguindo o costume das pessoas educadas e civilizadas, Jonas estendeu a mão e cumprimentou-a. Após as apresentações, eles entraram. Na cabana havia uma mesa com quatro cadeiras, um armário sem pintura, alguns utensílio domésticos pendurado na parede e um fogão de pedra, com chapa de ferro onde estavam duas panelas fumegantes. - Sente-se, que eu já vou servir o almoço. Disse Rosa. Ela serviu um ensopado de legumes para cada um, e eles começaram a comer. - Ha quanto tempo moram aqui? Perguntou Jonas. - Mais de dez anos. Desde que o governo tinha uma base militar aqui perto. Tivemos que fugir quando a guerra começou. Uma bomba caiu aqui perto e quase morremos. Quando a guerra acabou, voltamos, construímos esta cabana e aqui ficamos por que tem boa água e boa terra. - Mas, é um lugar solitário. Disse Rosa. - Minha filha não gosta de solidão... - È melhor só do que mal acompanhado. Sentenciou Jonas. - Para onde está indo? Perguntou Lázaro. Jonas ergueu os ombros. - Não sei. Perdi minha família, minha casa foi destruída... - Se quiser, pode ficar conosco e ajudar no rancho, temos muito trabalho. Disse Lázaro. Jonas olhou para Rosa e ela baixou o olhar, encabulada. - A moça não se importa que eu fique? Sem tirar o olhar do prato, Rosa sacudiu a cabeça, dizendo que não. - Então, eu fico. Quando eles acabaram de comer, Lázaro convidou Jonas para dar um passeio e conhecer a propriedade. Saíram pelos fundos e atravessaram um pomar, onde novos brotos começavam a nascer nos galhos das árvores. Subiram a encosta de uma colina e chegando lá no alto, Jonas deparou-se com um desfiladeiro de paredões de arenito, desgastado pelo vento, com rochas cinzentas despontando no solo seco, coberto de seixos. - A melhor hora é agora. Disse Lázaro sentando-se no chão. Jonas não entendeu o que o outro queria mostrar, mas mesmo assim sentou-se ao lado dele. Lázaro ficou olhando para o despenhadeiro, como se esperasse ver algo mais do que areia e pedras. Era meio dia quando a claridade do sol se tornava mais forte, mais luminosa. Uma brisa começou a soprar do sul, movimentando as ondas de calor que vertiam das rochas e através daquela névoa as formas da paisagem se tornavam oscilantes. Jonas começou a distinguir no perfil das sombras dançantes, reflexos luminosos. Ele continuou observando e teve a impressão de ver homens e cavalos no fragor de uma luta armada. A luz do sol se refletia nas peças de metais dos arreios das montarias, nas armaduras dos cavaleiros e nas lâminas de suas armas. No desfiladeiro parecia estar ocorrendo uma batalha, e o som do combate ecoava pelas escarpas dos montes. A ilusão durou alguns minutos, cavalos e cavaleiros se desvaneceram lentamente enquanto a sombra da escarpa alcançou o outro lado. Mas o som continuou som de metais, lamentos de feridos e moribundos. Por fim, Jonas descobriu que o vento sacudia metais retorcidos, destroços antigos de um aeroplano, que havia caído no fundo do desfiladeiro. Lázaro ergueu-se, Jonas fez o mesmo e eles voltaram para a cabana. O homem convidou Jonas para trabalhar na horta. Fizeram valas para irrigar os pés de feijão, arrancaram ervas daninhas e prepararam novo terreno para semeadura. Ao entardecer, encerrando o trabalho, banharam-se no regato. Entrando na casa, Lázaro disse para Jonas: - Tem roupas limpas no quarto. A maioria das coisas eu peguei na base militar. Amanhã iremos lá para ver se encontramos mais alguma coisa útil. Precisamos de ferramentas e de um gerador de energia. Jonas entrou no quarto e encontrou as roupas num baú. Havia apenas uma cama ali, e um roupeiro sem portas com roupa feminina nas prateleiras. Um espelho quebrado estava pendurado na parede e Jonas espantou-se com a própria imagem refletida nele. Estava magro, com a pele áspera, a barba era espessa, batiam no peito, os cabelos compridos chegavam aos ombros, os olhos fundos nas órbitas tinham um brilho febril. Ele encontrou uma roupa que lhe servia, vestiu-se e foi para a cozinha, jantar. Conversaram fazendo planos para o futuro. Rosa dormiu no quarto e os dois homens na cozinha, em colchões de palha de milho. Na manhã seguinte, Jonas levantou-se cedo. Encontrando uma tesoura, cortou a barba e os cabelos. Rosa ainda dormia quando ele e Lázaro saíram. Depois de comerem o desjejum afastaram-se da cabana, contornando a colina. Atravessaram um antigo bosque. As árvores estavam secas, com os troncos queimados por um incêndio, talvez causados por uma bomba. Jonas notou que em algumas arvores, despontavam brotos e no chão, começava a nascer nova vegetação. Uma hora depois eles chegaram a uma elevação coberta de arbustos espinhentos. - Vamos por aqui. Disse Lázaro subindo por uma antiga trilha. Jonas seguiu-o, evitando espetar-se nos espinhos. Do outro lado da elevação havia dois barracões de madeira e um prédio de alvenaria em ruínas. Lázaro começou a descer. - Já estive aqui algumas vezes, depois da guerra. Rosa tem medo desse lugar, ela acredita que tem um ogro morando por aqui. - Ogro? Se não me engano esse é o bicho papão que assusta as crianças... - Isso mesmo. Rosa é ingênua, muito inteligente, trabalhadora, mas ainda uma menina. - Como aconteceu aquela cicatriz no rosto dela? Perguntou Jonas. Lázaro parou e esperou que ele o alcançasse. - Uma bomba caiu no quintal de nossa casa. Rosa se feriu no rosto e eu estou com um estilhaço de metal nas costas. Felizmente não me incomoda. Lázaro calou-se e continuou a caminhar. Entraram num barracão cheio de escombros. - Creio que na parte dos fundos ficava uma despensa para os soldados. Talvez possamos encontrar alguma planta no chão, de alguma semente que tenha germinado. Lázaro começou a vasculhar o chão entre os destroços de madeira e telhas e Jonas fez o mesmo. Não encontrando nada, examinaram o outro barracão e depois o prédio. Havia vidro quebrado e restos de aparelhos eletrônicos entre as pedras, papéis amarelados, chamuscados pelo fogo, louça quebrada e nenhum esqueleto. Provavelmente os sobreviventes enterraram seus mortos e partiram. De repente, Jonas descobriu uma pegada no chão poeirento. Pensou que fosse dele mesmo aquela marca de calçado, mas não, era uma marca de bota militar. Estava bem ao lado de um caixote quebrado. Debaixo do caixote havia um alçapão de metal. Ele abriu o alçapão e encontrou uma escada de ferro que descia para o subsolo. Chamou Lázaro e os dois desceram para um corredor curto e estreito. Havia uma pesada porta de aço no fundo. Estava entreaberta e do outro lado via-se uma luz amarelada. Jonas empurrou a porta e entrou num compartimento cheio de painéis eletrônico. Sobre uma mesa no centro da sala havia restos de alimentos e uma caneca de plástico. Avançando por outro corredor, Jonas e Lázaro seguiram calados, observando tudo. Um segundo corredor levava a outros aposentos, uma cozinha, uma despensa cheia de alimentos enlatados, bebidas e doces, uma sala com vários tipos de jogos, outra continha muitos livros. Havia ainda cinco dormitórios pequenos com uma cama em cada um. Somente uma das camas estava vazia, as outras tinham um esqueleto. Provavelmente seus ocupantes haviam morrido ainda dormindo. Faltava o quinto ocupante. - O que era esse lugar? Perguntou Jonas. - Um abrigo subterrâneo. Respondeu Lázaro, retornando para a saída. - Provavelmente aquela gente tinha intenção de passar muito tempo escondido, mas não daquela forma. Quando voltaram para a sala principal, os dois companheiros encontraram o quinto ocupante do abrigo. O homem vestia um uniforme militar rasgado e sujo. Puxou uma pistola da cintura e apontou para os invasores. - O que querem aqui? Perguntou ele dando um passo na direção de um painel com um cronômetro digital. O cronômetro marcava quatro zeros. - Somos de paz. Disse Jonas. - Mentira! Retrucou o sujeito irado. - O inimigo voltou! Percebi isso faz alguns dias. - A guerra acabou. Afirmou Lázaro. - Fique calmo. - Vocês querem me enganar! Gritou o homem e puxou o gatilho, disparando a arma. Lázaro emitiu um gemido, cambaleou e caiu no chão. Jonas avançou contra o homem agarrou-o pela roupa e derrubou-o. A arma escapou da mão dele e deslizou pelo piso até o pé da mesa. O homem era forte, ergueu os pés e derrubou Jonas com uma pancada no peito. Em seguida ele correu até o painel de controle e apertou uma serie de botões. Voltou-se para Jonas com uma expressão alucinada. - Vocês vão morrer! Todos os inimigos que estão nesta região vão morrer. Acabei de acionar um dispositivo que detona uma bomba nuclear. Não há como reverter o processo, ninguém pode escapar!... O homem riu. Jonas olhou para o cronômetro que iniciou a contagem regressiva; 09min e 56 seg., 09min55 seg., 09min54seg. ... De repente sentiu o aço frio da pistola na mão. Ele pegou a arma, apontou para o sujeito e apertou o gatilho. O homem inclinou a cabeça para olhar o peito, onde uma mancha vermelha começava a se alastrar e caiu para frente, ficando inerte. Jonas correu para Lázaro e descobriu que o amigo não respirava. Por um momento permaneceu imóvel, sem saber o que fazer. Ergueu-se e olhou para o relógio no painel. Não sabia como parar o movimento sinistro dos números, mas sabia o que ia acontecer. Lentamente encaminhou-se para a saída e deixou o abrigo. Quando chegou à horta, olhou ao redor e considerou que aquele era um bom lugar para viver. 08: 01. Rosa surgiu na porta da cabana. Ela estava elegante, com uma fita azul nos cabelos. 05: 57. - Onde está meu pai? Perguntou ela. Jonas passou perto dela e respondeu: - Ele não demora. 05: 55. - O almoço está quase pronto. Jonas contornou a cabana e encaminhou-se para a colina. 04: 23. No alto da colina ele olhou para o desfiladeiro. Era quase meio dia. O tempo corria. O relógio marcava o fim de todos os sonhos. 03h11min. Talvez em outro lugar, outras pessoas possam recomeçar. Pensou Jonas. 02: 15. Pessoas sensatas, lúcidas e boas. A natureza tem maneiras de contornar as dificuldades. Não existe sorte, e sim oportunidades, escolhas e decisões. 01: 13. A natureza não tem pressa, não se importa com o tempo. 00h59min: Quando a guerra acabou, ele não tinha esperança de nada. Sabia qual eram as conseqüências de uma explosão nuclear. 0: 48. O mundo se tornou um caos e os sobreviventes tornaram-se espectros no meio dos escombros. 0: 40. O tempo passou e a natureza contornou as dificuldades. 0: 38. Jonas inclinou a cabeça e chorou. Voltou a olhar para o fundo do desfiladeiro. Era meio dia. Dentro da névoa no fundo do despenhadeiro as sombras estavam imóveis, como se esperassem algo acontecer. Jonas também esperava. 0: 05. O tempo... 0: 04. Um ano, parece passar muito rápido... 0: 03. Às vezes um minuto, chega a ser uma eternidade... 0: 02. Talvez aconteça algo, um defeito, um fio solto... 0: 01. O vento soprou de repente, e as sombras e os reflexos se movimentaram lá em baixo. A explosão! Pensou Jonas. Ele Sobressaltou-se ao ouvir a voz de Rosa. - Jonas! Olhando para trás, viu a moça na encosta, com uma expressão aflita. - Meu pai está ferido, ele precisa de ajuda!... Jonas esperava a explosão da bomba. Sabia que o homem estava falando a verdade, apesar de estar mentalmente perturbado. Rosa tinha pressa. O pai estava ferido. - Lázaro? - Ele chegou à casa ferido!... Jonas ergueu-se rápido. Lázaro não estava morto, apenas desmaiado. Junto com Rosa, ele seguiu para a cabana. Lazaro estava deitado na cama, sem camisa, com um ferimento no peito. Por sorte a bala ricocheteou numa costela e saiu por trás do ombro. Jonas sabia como tratar o ferimento. - Nós temos sulfa e mercúrio. Disse Lázaro. - Traga o remédio e água limpa. Pediu Jonas para Rosa. Quando a moça se afastou, ele olhou para Lázaro. - A bomba. Já devia ter detonado!... - Não. Respondeu Lazaro, fazendo uma careta de dor. - O homem mentiu, havia um dispositivo para cancelar a explosão e eu tive a sorte de apertar o botão certo... Agora, temos que desmontar aquilo e deixar sepultado. Vamos esquecer o passado e pensar no futuro... Jonas sorriu, podia agora, pensar no futuro e com a possibilidade de ver os seus sonhos realizados. Fim Antonio Stegues Batista
Autor: Antonio Stegues Batista


Artigos Relacionados


A Baleia Não Vomitou Jonas Na Praia De Nínive

A Baleia NÃo Vomitou Jonas Na Praia De NÍnive

Te Amo Enquanto For Pobre

O Chamado Para A Missão

O Esoterismo Na Literatura Imparcialista

PeÇa De Teatro Infantil (a Vida De Luana)

A História Dos Jonas Brothers