SOMOS TODOS CANALHAS



SOMOS TODOS CANALHAS

De dentro de meu carro confortável, passo pelas ruas. Os vidros escuros que mantenho fechados e o ar condicionado ligado conseguem me isolar de um mundo do qual eu quero distância. Vejo pela rua, mendigos, pedintes, crianças vendendo balas e demais bugigangas, buscando um pouco de bens materiais que me são fartos. Acabo de tomar um excelente café da manhã. Sem a preocupação normal do dia a dia saio de casa onde tudo parece funcionar para o meu conforto. O apartamento espaçoso, o carro de luxo, a vida sem privações. Na rua, pouco olho para os lados, onde nas avenidas, ruas e esquinas todos são iguais. No sinal, um garoto feio e com os cabelos despenteados, faz malabarismo com três bolas encardidas. Nada de excepcional na sua arte. Nada que possa credenciá-lo a pedir alguns trocados. Não abro o vidro diante de sua presença sorridente. Acelero o carro deixando-o para trás com sua habilidade. Em outro sinal crianças vendem balas. Jamais me perguntei onde eles conseguem a mercadoria; roubaram, eu imagino. Não me interesso pelas suas balas, nem por seus chicletes gosmentos. Deparo, em seguida com um engarrafamento. Já me aborreço com tantas paradas obrigatórias, como sinais e coisas sobre as quais não tenho controle. Percebo que é uma manifestação de rua. Cercam a avenida, queimam pneus e incomodam as pessoas que têm pressa e que nada tem a ver com seus problemas. Descubro, por acaso, que ontem a noite um motorista atropelou uma criança, não prestou socorro e o atendimento no hospital foi de má qualidade. Morreu nos braços do pai e poucos foram solidários com ele.
Espero que o tumulto acabe, mudo de avenida ou desço e participo com eles de seu protesto racional? Por que existe isso em nosso país? Por que eu me escondo no meu mundo, dentro de minha condição de canalha procurando me esquivar dos que sofrem, dos que pedem e são oprimidos? Mas eu pergunto; apenas eu? Onde estão os que deveriam amenizar a dor, a fome e dar um conforto mínimo aos que sofrem? Onde estão os religiosos que constroem seus templos suntuosos e arrebanham mais e mais fiéis que sacrificam parte de seus parcos salários para que se efetive a fé? Onde estão os governantes que apenas na época das eleições sorriem para os desabrigados e descamisados dando-lhes o mísero conforto de uma camisa de malha ordinária, onde, no lugar do nome do candidato, deveria se ler: "este é aquele que agora precisa de você, pobre diabo." Onde está o médico que atendeu a criança atropelada e determinou que se entregasse o corpo ao pai sem pelo menos se aproximar, tocar-lhe o ombro e dizer: "Sinto muito, fiz o que pude". Onde estão os que discutem, de dentro de seus gabinetes refrigerados, a tão sonhada e apregoada igualdade social? Onde está o país emergente das páginas dos jornais? Enfim, onde está o poder legislativo que se corrompe, enriquece, visa aos seus únicos e próprios interesses, vive uma vida confortável, apenas se lembrando do seu povo sofrido, de quatro em quatro anos?
Acelero o carro, observo as poucas pessoas que ainda protestam e concluo conformado; não sou o único canalha!

Autor: Miguel Lima


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